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DISPERSOS. 20

21-08-2023 00:00

À semelhança de “A esfera armilar”, que os leitores de António Telmo bem conhecem das páginas de Filosofia e Kabbalah, “O segredo de Os Lusíadas” surgiu no primeiro número de Escola Formal, revista de que, sob a direcção de Afonso Botelho e Orlando Vitorino, se publicaram seis números, de Junho de 1977 a Junho de 1978, e na qual Telmo publicou ainda diversos outros escritos marcantes, como “Gramática Secreta da Língua Portuguesa”, “O best”, “Mãos e palavras” (depois reintitulado com o seu primitivo subtítulo, “Como a perversão na linguagem leva à demência na sociedade”) ou, então sob o título “Da teologia para a filosofia”, o notável conjunto de aforismos definitivamente conhecido por “Louvor da matéria”.

Com excepção do artigo camonino, todos os textos referidos foram reunidos no já acima mencionado livro de 1989. Note-se, a propósito, que “O segredo de Os Lusíadas” não deve ser confundido com o texto que serviu de base à conferência homónima que Telmo proferiu em 20 de Junho de 1980, no Palácio Foz, em Lisboa, a convite de Afonso Botelho, no âmbito das comemorações do quarto centenário de Luís de Camões, e que figura em Filosofia e Kabbalah. Tal como “A esfera armilar” surge nas páginas de Escola Formal sem estar assinado (um e outro tendo estado omissos, até agora, na bibliografia activa do filósofo), mas a sua atribuição a António Telmo será, por certo, inquestionável. Trata-se apenas de um breve apontamento, porém sinalizando o superior interesse do seu autor por uma temática – o esoterismo de Camões – que praticamente o obsidiará até ao final da vida.      

 

O segredo de Os Lusíadas[1]

 

 

Aqui, minha Calíope, te invoco
Neste trabalho extremo por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo.

 

Despertai já do sono do ócio ignavo,

Que o ânimo de livre faz escravo…

Pondo na cobiça um freio duro,

E na ambição também…

e no torpe e escuro

Vicio da tirania infame e urgente…

E dai na paz as leis iguais, constantes,

Que aos grandes não dêem o dos pequenos,

e numerados

Sereis entre os heróis esclarecidos,

E nesta Ilha de Vénus recebidos!

 

De longe a Ilha viram, fresca e bela.

Dá Veloso, espantado, um grande grito:
«Mais descobrimos do que humano esprito
Desejou nunca; e bem se manifesta
Que são grandes as cousas e excelentes,
Que o mundo encobre aos homens imprudentes.»

 

Depois que a corporal necessidade
Se satisfez do mantimento nobre,
Tethys, de graça ornada e gravidade,
Pera o felice Gama assim dizia:

«Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, com os olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, e com prudência».
Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava
De modo que o seu centro está evidente
Como a sua superfície, claramente.

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.


Diz-lhe a Deusa: «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas».

 

 

O carácter epopeico e patriótico de Os Lusíadas tem iludido historiadores e professores da nossa literatura, que lhe dão a interpretação mais imediata: Os Lusíadas não seriam mais do que a poetização da história pátria e, simbolizado na viagem do Gama, o destino ou a missão dos portugueses estaria todo, como se diz (ou dizia) nas escolas, na descoberta do caminho marítimo para a Índia. Já ironicamente um poeta observou que, descoberta a Índia, os portugueses ficaram sem emprego embora, na conservação do império, ainda tivessem do que, como povo, irem vivendo, ainda tivessem razão para serem povo. Agora, porém, o Império desfez-se, e terá então deixado deter sentido a existência deste povo. 

Acontece, todavia, que o vaticínio de Os Lusíadas vai bem mais longe do que «os feitos valerosos» de alguns heróis para «da lei da morte se irem libertando». Não se limitam eles a poetar a história já vivida de um povo, mas vaticinam aquele fim onde reside sua «verdade, condição e destino». A simbólica viagem do Gama não se esgota, não termina, na descoberta da Índia. Alcançada ela, logo o herói a deixa para, já não guiado por deliberação ou prudência humana, chegar onde se diz que «mais descobrimos do que humano espírito desejou nunca? Os versos, extraídos dos cantos IX e X, aí estão para «os que sabem ler».  

 

António Telmo


 



[1] Nota do editor - Publicado originalmente em Escola Formal, n.º 1, Lisboa, Junho de 1977, p. 11.

 

CORRESPONDÊNCIA. 62

20-08-2023 14:42

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 19 de Junho de 1977


 

Lisboa, le 19-06-77

 

Cher António Telmo,

Ici les poèmes français.

Je suis content. – malgré tout – d’avoir été chez vous, je vous remercie de toute votre attention et vous prie de dire à votre femme aussi mes remerciements cordiaux.

N’attendez pas trop longtemps pour fixer la prochaine réunion.

Une prière : je voudrais savoir tous les noms des participants (et leur âge, sommairement, sans blancs de discrétion), et l’adresse avec ?, numéro de tél.

Je pars demain, mais j’espère de pouvoir revenir dans un délai pas trop long. 

Tous mes vœux, pour vous et votre travail – amicalement

M. H.

 

VOZ PASSIVA. 131

15-08-2023 10:50

António Quadros e António Telmo: um diálogo entre livres-pensadores[1]

Pedro Martins

 

 

1. «Lá para Outubro, vou-me embora. Não deixe que me convertam». Estas são palavras de Álvaro Ribeiro para Francisco Sottomayor, a quem as ouviu António Telmo. Foi deste que as escutei e não podem deixar de evocar a tentativa de confissão, por um sacerdote, de um Sampaio Bruno às portas da morte, prontamente repelida pelo portuense ilustre. A conversão aventada refere-se ao catolicismo e só quem estiver desatento ou pensar com a vontade poderá persistir na ideia de que Álvaro tenha observado qualquer ortodoxia, mormente a da Igreja de Roma, ele que, em A Literatura de José Régio, confessa aos seus leitores que «em vão formulou novo pedido de aliança ou de casamento» por, entre as razões apresentadas para as recusas recebidas, se deparar com esta: «ainda não se convertera à religião da maioria». Vale a pena a demora numa página memorial daquele livro:

 

«Fascinado efectivamente pelo patriotismo eloquente e apostólico de Leonardo Coimbra, hesitava eu todavia em segui-lo, intimidado perante a leitura de seus livros incomparáveis, onde se efectuava a polémica mais notável contra todas as doutrinas que erroneamente assentam na falsa hipótese de que no princípio era o cáos. Acontecia, porém, que a minha alma sempre preocupada com a vida religiosa, que sobrepunha à cultura filosófica e à curiosidade literária, estava então incapaz de compreender a historificação positivista da teologia francesa em três capítulos, três estados e três factos correspondentes à tríade Deus, Cristo, Igreja. Cansado de ouvir ou ler, nas orações homiléticas e nos artigos jornalísticos, as frases contundentes de que a Igreja proíbe, a Igreja reprova, a Igreja condena, perguntava-me perplexo se tal ignorância era professada por homens católicos e por mulheres católicas, consultava e estudava a documentação eclesiástica, recorria a livros estrangeiros, e no fim verificava que as ciências proibidas não iam contra a vontade da Igreja, a doutrina de Cristo, a ideia de Deus.

A heresia, significando etimologicamente procura de outra fé, deixou de me intimidar, quanto mais o exemplo de Leonardo Coimbra nos assegurava confiança no melhor caminho, já que o filósofo, relacionando sempre a liberdade com o amor, nos dava uma interpretação do cristianismo que transcendia os limites da dogmática católica.»

 

Só na aparência me afastei do tema proposto, que abordarei do prisma do livre-pensamento religioso. António Quadros e António Telmo, de quem Álvaro Ribeiro foi o primeiro mestre, souberam-no cultivar.

 

2. A conversão de Leonardo abalou alguns espíritos. Pela inoportunidade do momento político em que ocorreu, Pascoaes viu nela a obra do diabo. E, sem jamais pôr em causa a sinceridade do mestre, Álvaro Ribeiro, passados já dez anos sobre a morte daquele, podia afirmar:

 

«Quanto a mim, confesso que divergências profundas, especialmente em teologia, me impedem de estudar a obra de Leonardo com aquela sincera adesão que me levou a receber e a admirar o seu magistério filosófico.»   

        

Na geração seguinte, Telmo sugere que o regresso de Leonardo à religião da infância, se interpretado pela parábola do Filho Pródigo, haveria, possivelmente, de se traduzir num enriquecimento do cristianismo exotérico patenteado na ortodoxia católica, pela vivência experiencial do martinismo que o filósofo re-velara nalgumas obras da sua fase criacionista, mormente em A Alegria, a Dor e a Graça.

A hipótese é plausível. Álvaro Ribeiro lembra que «a conversão é sempre integrativa e integrante». E é significativo que o faça num escrito de imprensa em que afirma ter sido Bruno «o nosso primeiro filósofo, ou seja, o nosso primeiro-livre pensador», para, em seguida, demonstrar que livre-pensador, verdadeiramente, só o poderá ser o pensador religioso.

Definindo a liberdade como a «coexistência pacífica dos diferentes», Álvaro afirma também que «o livre-pensador, ao contrário do positivista, avança por um domínio delimitado pelos escolásticos, mas acelera a evolução espiritual da Humanidade».

A derradeira frase consente versão para a teurgia martinista. E é ainda, uma vez mais, com Álvaro Ribeiro, agora em Apologia e Filosofia, que a hipótese de Telmo se robustece. Pois não será o itinerário espiritual vislumbrado no trajecto de Leonardo uma modelar realização operativa da escala triádica em que, pela mediação do pensamento sófico, o pensador ascende do plano gnósico ao plano pístico? É que sem essa mediação, no caso leonardino assegurada pela experiência martinista, a tentativa de relacionar directamente a razão com a fé nunca desenvolveria as virtudes nem suscitaria as graças que os crentes esperam da apologética religiosa, como Álvaro observou. E por isso o livre-pensador vai para além da escolástica: avança no terreno que esta delimita, mas acelera a evolução espiritual da humanidade, como da lição alvarina se poderá ainda retirar.

 

 

3. «O António Quadros foi o único e creio que eu também um pouco que viu serem inseparáveis a Igreja de Pedro e a Igreja de João.» Assim escreve Telmo ao amigo em carta de 2 de Junho de 1986. Logo no ano seguinte, a 22 de Janeiro, afirma-lhe noutra missiva: «O António Quadros é dos que restam, o único que não «repele» a minha Teima ocultista, que não a teme, que a inclui numa das direcções da sua vida espiritual». E em Março de 1990, em novo lance epistolar: «De facto, há entre nós dois uma fidelidade ao ensino que recebemos que tem muito de comum: daí o sermos, sobretudo, hermeneutas.»

Constituem estas últimas palavras uma resposta à pergunta que Quadros, dias antes, em carta de 27 de Fevereiro, lhe dirigira: 

 

«Sei que você andou muito por baixo, e creia que pensei muito em si. Afinal de contas, mesmo pesando todas as diferenças, não seremos nós dois, os mais afins de entre os discípulos de A. [Álvaro Ribeiro] e M. [José Marinho], da primeira geração? De certo, eu sou mais “ortodoxo” (talvez por falta de ousadia intelectual interior), decerto, você foi sempre mais fundo do que eu, em todas as vias por que enveredou. Você tem a capacidade de ir ao âmago dos problemas e de estabelecer sínteses fulgurantes, em palavras concisas. Será de fogo, o seu signo? Se não é parece. O meu é claramente aquático, o caranguejo: derrama demasiada literatura, embora, como as ondas do mar, bata sempre as mesmas praias, com certa monotonia. Você atinge verdadeiramente um conhecimento hermético, ajudado pela cabala e pela associação, singular entre nós (rara alhures) entre o esoterismo e a filosofia. Eu permaneço nos arredores, fascinado do lado de fora, sem contudo atravessar o umbral da porta. Você conseguiu concentrar-se, meditar a sério (tudo isto são afinal observações sugeridas por Filosofia e Kabala), enquanto eu navego como posso em águas de uma média cultura, de uma pequena capacidade de filosofar e (o que me vale) de uma certa intuição e encarniçamento relevando mais do dever do que da arte de pensar.

Apesar destas diferenças, em ambos há o interesse pela poesia e pela simbólica artística, pelo oculto e pela filosofia em todas as suas formas (mas sobretudo por uma filosofia do Espírito), sendo também de notar que, ao contrário da maioria dos nossos companheiros, reconhecemos os mesmos mestres, Leonardo e Bruno, Pascoaes e Pessoa, Álvaro e Marinho, integrando-os, com as suas antinomias, na nossa vivencialidade gnósica.»

 

Importa recordar que Quadros, ao contrário de Telmo, não era um iniciado. Mas a iniciação parecia sobre ele exercer um fascínio que, não raro, o levava a colocar-se na posição do esoterista. Ao amigo, em carta de 29 de Janeiro de 1997, dirá: «Não tenho pois nenhuma vocação para esotérico, embora tenha uma grande inclinação para todas as formas de esoterismo, que não só constituem um desafio, como prometem um saber outro do que o daqui, só daqui».

Para melhor se compreender o posicionamento de Quadros, importa considerar que, na mesma carta, se irá definir como «um católico liberal». Estamos, na verdade, diante de um livre-pensador religioso:

 

«Não me sinto no mínimo inibido, em minha liberdade espiritual. Nem clericalista nem anti-clericalista. Faço hoje uma vida de sacramentos, embora o meu espírito flutue muito e se dirija para paragens aventurosas, faço-o fundamentalmente porque os sinto como constituindo laços vivos, concretos, tradicionais com o sagrado, com Deus, exigindo da nossa parte reverência e humildade, uma aproximação do povo, dos simples que só por aí acedem a uma vida de espírito superior à dos interesses quotidianos. Como o pão que Cristo partilhou com os apóstolos e sinto-me sentado à sua mesa. Ajuda-me a vencer o egocentrismo e a sujeição aos interesses próprios.» 

 

Linhas depois, em passagem do maior significado, afirmará:

 

«Concebo um Deus-Espírito, muito superior às nossas pequenas contabilidades e prejuízos terrenos. Muito superior às nossas estreitas ortodoxias, que aliás já foram heterodoxias e heresias para outros, ou são-no.»

 

É justamente aqui que a sua atitude de aproximação ao esoterismo melhor se define, por admitir um Deus que transcende as diversas religiões. Não fora outro, de resto, o desígnio do Império segundo Avis, como no Livro II de Portugal, Razão e Mistério se pode verificar. Tal

 

«era o projecto político da sinarquia templária, herdada pela Ordem de Cristo, o Império (do Espírito Santo) acima dos Reinos e dos vários Cultos de origem bíblica monoteísta e até dos pagãos. Mas tal projecto só seria verdadeiramente viável através de uma teoria laicista, qual a preconizada por um Dante, que sob o domínio carismático de um Imperador directamente ungido e coroado por Deus-Espírito, pudesse esbater o poder radicalista das ortodoxias religiosas. Se todo o domínio espiritual fosse destas, o diálogo tornar-se-ia impossível devido ao rigorismo teológico dos eclesiásticos. Mas se, mesmo com o predomínio religioso do Cristianismo, o acento recaísse sobre o Espírito Santo, sobre a Terceira Pessoa, sobre o Quinto Evangelho ou sobre o Evangelho Eterno, quiçá fosse possível aceder à concepção de um Deus / Homem de outro Deus maior, no verso de Pessoa, de um Deus-Espírito no qual coubessem o Deus trinitário do Cristianismo e ainda Jeová e Alah, e mesmo o Deus Desconhecido ou aqueles Deuses únicos e recônditos cujo Mistério subjaz a todos os Politeísmos.» 

 

A carta de Janeiro de 1987 reflecte em vários aspectos a passagem agora transcrita. O que não surpreende. Quadros concluíra já o segundo volume da sua obra-prima, e daí que naquela deixasse transparecer o entusiasmo com a próxima aparição desta. Pela conjugação de ambas se comprova que o desígnio ecuménico do filósofo firma raízes no esoterismo templário da Ordem de Cristo.

É ainda naquela missiva que anuncia a Telmo:

 

«Você verá talvez melhor a minha posição no vol. II de “Portugal…”, onde defendo um trinitarismo de predominância paraclética, mas… sem heresia, como penso que foi o de Dinis e Isabel, dos franciscanos espirituais e da Ordem de Cristo. Coincido pois com o que você diz sobre os templários e sobre a aproximação do catolicismo e do ocultismo – pelo menos do ocultismo de sinal cristão, isto é, não oriental –, embora eu penda pessoalmente mais para um criacionismo cristão-liberal.» 

 

É de crer que Quadros se encontre a meio caminho entre o profetismo místico e ecuménico do Agostinho da Silva de Educação de Portugal, e o desígnio unitário revelado nos derradeiros parágrafos de A Literatura de José Régio, em que a angelologia judeo-cristã de Álvaro Ribeiro encontra cabal expressão, ou no fundo espiritualismo maçónico que viria a culminar, como corolário, a obra de António Telmo.

 

4. Em 1998, a iniciação de Telmo no Rito Escocês Rectificado foi, pela própria natureza deste rito, um acto de coerência de quem, na senda de Bruno e de Álvaro, exaltara o martinismo. Deste prisma, será muito significativo que, na já citada carta de 22 de Janeiro de 1987, tivesse escrito:

 

«Não que não me toque de profunda emoção religiosa o supremo Esplendor da Igreja de Cristo em que todos nós fomos criados, mas em cuja doutrina, dogmas, sacramentos, ritos não vejo incompatibilidade com a «cabala» martinista pensada pelo nosso primeiro Mestre. Se não fosse assim, a obra de Joseph de Maistre, um dos chefes ocultos da maçonaria martinista, onde usava o nome, veja o António, de Josephus a Floribus, teria sido uma impossibilidade.

Não vejo ninguém, a não ser o António Quadros, capaz de acompanhar Álvaro Ribeiro e de comigo o seguir neste ponto crucial. Ocultismo sem catolicismo, como talvez o entendesse F. Pessoa, não está dentro dos planos da «Ordem Templária», a que ele dizia pertencer. O prestígio que se fez à sua volta e o silêncio tumular que sempre se faz à volta de Álvaro Ribeiro explicam-se, talvez, assim. Afigura-se-me impossível separar dois relativos: a ortodoxia e a heterodoxia.»

 

Reconhece-se a doutrina alvarina. Mas será mesmo assim? Não haverá incompatibilidade entre a doutrina católica e a «cabala» martinista pensada por Álvaro Ribeiro? A resposta, de extrema dificuldade, dependerá do modo de entender o exoterismo da enunciação dogmática…

Não obstante, farei notar que o Tratado da Reintegração dos Seres, de Pascoal Martins, principal fonte do martinismo, acolhe essencialmente a cristo-angelologia ebionita do Verus Propheta, conforme a lição de Robert Amadou. Nenhum papel desempenha ali, ainda, o dogma da Encarnação, absolutamente impensável para o cristianismo originário da comunidade de Jerusalém, anterior às enxertias helénicas e romanas, e portanto goim, de Paulo e de Constantino.

A entificação do Absoluto, como demonstrou Henry Corbin, é pura impossibilidade lógica. Não será outra a doutrina d’A Literatura de José Régio. Álvaro não aceita a divindade de Jesus, de quem, com significativa insistência, afirma ser um profeta religioso, ou sagrado, para o comparar a Moisés e a Maomé:

 

«Enviado de Deus, profeta, comparável a Moisés, Cristo usufrui de um atributo mais dignificante. Toda a messiologia se nos afigura como campo deficientemente cultivado pela responsabilidade dos teólogos. Se, conforme a tradição judaica, espírito messiânico só poderá ser espírito superior, ou espírito angélico, então compreenderemos certas feições extraordinárias da figura que de Jesus nos apresentam os evangelistas, e compreenderemos que Cristo haja sido, nos momentos altamente religiosos da sua vida na Terra, perfeitamente assistido pelos anjos.»

 

Por mais de uma vez se refere ali Álvaro Ribeiro a Jesus Cristo como «o último profeta». A expressão, que evoca irresistivelmente a noção islâmica do selo da profecia, melhor esclarece qual seja o atributo mais dignificante de Cristo perante Moisés: o primeiro, sobre ser profeta, é também o Messias, mas jamais Deus encarnado. Nesta encruzilhada se define o judeo-cristão em que Álvaro, converso sefardita, se projecta.   

Na senda da apologia feita por Bruno, constitui-se o martinismo como o fundo secreto da ideação alvarina, com o que porventura se desenha uma cadeia tradicional viva e actuante. Sibilinamente, lembra Álvaro Ribeiro em A Literatura de José Régio que os gnósticos ainda existem na actualidade. Não quaisquer, mas à guisa dos ebionitas, como gnósticos dessa nova gnose que n’A Ideia de Deus Bruno nos apresentara: uma gnose eminentemente judaica com uma soteriologia propriamente gnóstica, nas palavras de Corbin.

Não será de crer – e ele próprio o admitiu – que Quadros pudesse levar tão longe o seu pensamento. A ênfase paraclética do seu cristianismo é um limite intransponível de onde, porém, dada a unidade essente do Espírito – se quiserdes, do Espírito Santo –, se vislumbra já o monoteísmo puro de um Álvaro Ribeiro, ou o teomonismo de um Henry Corbin.      

Em 7 de Abril de 1987, escreve-lhe Telmo: «Entre “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa” refiro-me ao Paracletismo de Joaquim de Flora e aí aproveitei a ocasião para lhe mandar um recado.» O recado pode ser lido em Filosofia e Kabbalah:

 

«Quanto a Joaquim de Flora, cremos que ao leitor inteligente não escapou o que há de significativo no facto de Joseph de Maistre ter escolhido como nome iniciático Josephus a Floribus. Tanto basta para estabelecer uma relação suficiente com tudo quanto escrevemos. Aliás, a presença do paracletismo italiano em terra portuguesa foi já largamente estudada ou reflectida por Agostinho da Silva ou António Quadros, para cujos notáveis estudos remeto o leitor interessado. Há, porém, que distinguir entre os autores que são atraídos para certas doutrinas cristãs pelo seu subconsciente hebraico e aqueles que as perfilham com inteira e clara consciência da relação.»

 

5. Entre estes dois espíritos de escol houve, por certo, alguns desencontros. Pouco importa.

Cristão liberal, Quadros propugna necessariamente a «coexistência pacífica dos diferentes»; e releva, por certo, de uma exemplar saúde moral e ética a condenação, em Portugal, Razão e Mistério, do «odioso Tribunal do Santo Ofício», um símbolo do «contra-reformismo estreito, fanático, racista, intolerante», próprio da «clerocracia» entre nós instalada com D. João III, e «que quase ia queimando, nos seus Autos-de-Fé e na sua psicologia inquisitorial e delatora, se é que não a devorou de forma irreparável, o espírito da nação portuguesa». É reconfortante poder citar António Quadros, nestas passagens daquela sua obra, com o antigo Palácio dos Estaus e a Igreja de São Domingos tão próximas, aqui ao lado…

E das diferenças dirá Telmo, na História Secreta de Portugal, que «sempre constituíram a base e a condição do que será, para a Ordem do Templo e de Cristo, a conversação universal dos espíritos»; e daí que alerte para o facto de estarem «sendo desfeitas pelo que aparece como o intento de produzir a homogeneização geral das matérias».

Exemplar diálogo entre livres-pensadores religiosos foi o destes espíritos de escol. Receio bem que se trate, em nossos dias, de uma conversa acabada.  

 



[1] Comunicação apresentada, em 13 de Julho de 2023, no Palácio da Independência, em Lisboa, ao Congresso nos 100 anos de António Quadros.

 

VOZ PASSIVA. 130

23-06-2023 09:57

António Telmo e Tomé Natanael, ou a contemplação de si

Risoleta C. Pinto Pedro

A Literatura Portuguesa está repleta de manifestações em que os poetas revelam a sua divisão interior. Atribui-se este estado de ser à perseguição feita aos judeus na Península, convertidos à força, a partir do século XVI, sacrificados nas prisões e nas fogueiras. Mas talvez tal condição seja prévia a este contexto temporal e já estivesse escrita na história, na epigenética, nas múltiplas perseguições, nas múltiplas conversões. Desde o princípio. Por alguma razão, uma das entrevistas fictícias que António Telmo escreve é à revista Princípio, que pretensamente entrevista Tomé Natanael, anagrama de António Telmo.

Ao longo de toda a linhagem da nossa escrita literária, está patente a bipartição, a cisão do eu, a dilaceração da alma de um povo, a ferida profunda na identidade, a duplicidade, mas não só: o próprio antagonismo interior, a violência da partida, o êxodo e a saudade.

No Renascimento, Bernardim Ribeiro afirma que «Entre mim mesmo e mim não sei que se alevantou que tão meu imigo sou»; ou na novela pastoril Menina e Moça, de 1554, editada em Itália por Abraão Usque, judeu emigrado: “Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe”. Mãe humana, Mãe Pátria.

Sá de Miranda canta: «Comigo me desavim,/ Sou posto em todo perigo; /Não posso viver comigo/ Nem posso fugir de mim./ Com dor da gente fugia,/ Antes que esta assi crecesse:/ Agora já fugiria/ De mim, se de mim pudesse.» Fuga provocada por inimigo externo que se interioriza num palco interno que a literatura revela.  Como se resolve este drama? António Telmo perseguiu esta ideia na sua obra.

O próprio Camões se queixa: «Alma minha gentil que te partiste»; já ali tem tudo, a partida do lugar e a partida do eu.

Bocage, poeta do século XVIII, sintetiza a despersonalização do eu e os problemas de identidade em quatro palavras: «Já Bocage não sou».

Para criar a distância que permita o reconhecimento, os poetas procedem à fase inicial do trabalho alquímico, a fragmentação do todo e a análise das partes para poderem ver a imagem, e com ela a múltipla identidade.

Fernando Pessoa, no século XX, levou a fragmentação a um limite quase inimaginável do fulgor da separação, com os heterónimos em número considerado inédito.

Mário de Sá Carneiro, seu contemporâneo, afirma-o genialmente:

«Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio»

Exemplos que são gota de água num oceano.

A diáspora é transversal aos poetas e forma um único texto em que cada autor representa uma palavra, contribuindo, através desta aparente divisão, para a superior síntese de uma identidade em movimento de espiral.

António Telmo, relativamente a esta linhagem que também é a sua, traz a novidade da proposta de cessação de uma relação agónica no eu, o fim da luta e casamento entre as partes do sentir-se judaico com o sentir-se cristão. A superação da separação sem hostilidade, através do movimento integrador espiralado. A boa vertigem.

No outro lado da Europa latina, na Roménia, pois somos os dois países de línguas latinas dos extremos, a oriente e a ocidente da Europa, Marin Sorescu escreve “Há muito suspeitava de mim mesmo/ e hoje persegui-me durante todo o dia/ a uma distância que evitasse suspeitas”.  O conflito interior no seu apogeu, o perigo interiorizado, e a Roménia como espelho de nós mesmos, a fuga do país. Como nós, a impossível vida sob uma ditadura, neste caso política, no caso dos judeus, também religiosa.

António Telmo provém de ramos familiares contrários, liberalismo e conservadorismo, judaísmo e cristianismo, mas neste pensador, as religiões não se contradizem, levando o Espírito de Síntese à formulação de que um mais um não são dois, mas pela alquimia da iniciação maçónica, o marranismo ascende ao três e a partir daí ao infinito.

De formação literária e académica clássicas, cria uma obra profundamente filosófica, na senda de filósofos da chamada filosofia portuguesa e de poetas com ela empáticos, integrando na sua escrita o ensaio e a ficção: dissertação, reflexão, conto, drama, diálogo e poesia. O ensaio é poético, a ficção é filosófica.

A sua personagem Tomé Natanael é motivo de poema, conto, reflexão, diálogo e entrevista. Criado a partir de anagrama do nome de António Telmo, desdobra-se em Tomé, o cristão, e Nathan, o judeu. Para além de emergirem do self de Telmo, é de recordar que Nathan era profeta de David e Salomão, e Tomé um dos doze apóstolos de Jesus. Para além de formar com Nathan uma polaridade, ele próprio é palco de sentimentos extremos: a dúvida receosa e a determinação amorosa, como um fractal que como parte contém em si o todo, pois ele próprio é judeu e ainda que nutrindo um profundo amor por Jesus, duvida da sua ressurreição. Os extremos criados por Telmo não estão exactamente equilibrados, há um desequilíbrio para o lado judaico, e tal como ele próprio afirma noutro lugar, há que buscar a irregularidade da obra, pois é ela que indicia aquilo que é importante do ponto de vista do conhecimento. Um sinal, um indício, um apontar. E talvez seja este o segredo do marrano: a sua imperfeição. E a sua grande e dilaceradora dor. Aquela que lhe permite manter-se vivo e lúcido. Porque tudo o que pode ser sentido pode ser curado: transcendido e integrado.

Esta personagem Tomé Natanael, o antiquário de Estremoz, ou o seu desdobramento em Tomé e Nathan, espraia-se pela obra do filósofo. Se António Telmo e Tomé Natanael já são duplos um do outro, criador e criatura, por sua vez Tomé Natanael também se reparte no judeu e no cristão, cujos diálogos são, ao contrário do que poderia acontecer, de uma elevação profunda e inspiradora, revelando uma cumplicidade gentil entre Tomé e Nathan. Existe ainda um outro nome anagramático, Nathan de Natanael, que assina as pranchas maçónicas e que parece mais um reflexo em espelho de Tomé Natanael. Ou de António Telmo. São tantos os textos onde estas personagens surgem unidas ou desdobradas, que terei de me ater a um conto e ainda assim não haverá tempo, nesta comunicação, para o aprofundar. Um estudo maior se seguirá e prolongado se prevê que venha a ser.

No conto das polaridades ou em busca da harmonia perdida “No Hades ou o Antiquário de Estremoz”, de alguma forma Platão e Aristóteles representam a unidade criada a partir dos aparentes opostos/polaridades.

Toda a sequência narrativa é exactamente erigida como um rigorosíssimo puzzle cujas peças se mantêm viradas para baixo até que estejamos preparados para as ver.

As personagens principais são o autor, que se assume também como narrador e personagem, e Tomé Natanael, antiquário de Estremoz. O centro de tensão e atenção do conto é uma reprodução do célebre afresco de Rafael, A Escola de Atenas. O lugar, a loja do antiquário que Telmo/personagem vai visitar.

A obra é conhecida. Por entre outros filósofos, destacam-se, ao centro, Platão e Aristóteles, um apontando o céu, outro mostrando os dedos virados para a terra. Afirma André Benzimra, que “o olhar do judaísmo é o culto de Elohim, o Ser criador. Distinto de El Elyon, que «olha» para o alto, em direcção ao Ein-Soph, o olhar de Elohim volta-se para baixo, para o que se afasta do Princípio supremo, para aquilo que vai ser criado”. A atitude judaica. Mas a dupla e oposta orientação tem sido apontada como representando ideias antagónicas. Por uma sequência muito bem encadeada de pares de polaridades, Telmo vai desenvolver uma outra e superior ideia:

«O que ali me aparecia era o símbolo do perfeito entendimento entre os dois filósofos. Eles conduziam e projectavam na nossa direcção a mesma energia urânica […]»

O narrador diz que «não ouvíamos o que diziam» não porque «nada diziam», mas porque «nada diziam que se ouvisse cá em baixo», o que pressupõe que algo diziam que fora do quadro não era possível escutar. É também quando o quadro já não se encontra presente na loja do antiquário, que se revela: «Durante um instante, a Imagem acendeu-se cheia de cor e de luz diante de mim», o que mostra, ou antecipa, o que pretendemos mostrar.

Num outro texto deste autor, intitulado “Platão e Aristóteles ou o Mesmo e o Outro”, Telmo declara que «a oposição que se diz existir expressa nos textos de Aristóteles não é entre os dois filósofos, mas entre platónicos e aristotélicos», os discípulos. Na essência, não há separação: «Ambos dizem o mesmo. Aristóteles tem em vista o homem natural. Platão o homem sobrenatural ou nascido segunda vez». O iniciado. Para Telmo, a chave é a iniciação.

Voltando ao conto objecto do nosso estudo, “No Hades”, Tomé Natanael, personagem do conto, é apresentado como «um dos discípulos actuais de Hermes». Se ele é um discípulo de Hermes, haverá uma loja oculta aos profanos. Oculta, e como tal não referida, mas com um lado visível: a loja “aberta”, como ali se diz. Nomeada e visitada.

Tal como o fresco de Rafael, “A Escola de Atenas”, apenas reflecte o mundo onde pensamos a três dimensões ou assim o percebemos: «A sensação de que têm três dimensões e não duas se deve a estares tu também reflectido nele».

Assim, Platão e Aristóteles da reprodução do fresco de Rafael só aparentemente pertencem a um mundo a duas dimensões, isso decorre de os vermos de fora. Logo, tudo é o mesmo. Ou um. Jogo de luz e sombra, de aparência e realidade.

O diálogo neste conto entre o autor/narrador/Telmo com a “personagem” Tomé Natanael é o diálogo de Tomé Natanael consigo mesmo, isto é: de Telmo com Telmo. O autor/narrador/ escritor/António Telmo (porque todos se confundem), procura Tomé Natanael na sua “loja aberta” encontrando-o a polir uma lente, objecto não casual nem inocente, pois o que se pretende mostrar é que é tudo uma questão de ponto de vista ou de incidência e de refracção da luz.

Tomé Natanael encoraja o visitante a olhar a cena do quadro sem focar. Até ver a realidade como um tapete persa. Ou de Arraiolos. A estrutura profunda.

O conto é um finíssimo, hábil e notável jogo de realidade e sonho, visão e ilusão, mundo a duas e a três dimensões, luz e sombra, visão ao perto e ao longe, presença e ausência, eu e eu/outro… Cruzamento e intersecção de mundos onde é possível «Platão nos entregar o seu Timeu ou Aristóteles as suas Categorias. Estou-me a ver a levá-los para casa, a folheá-los na minha secretária.» Categorias sobre as quais dirá Tomé Natanael, o antiquário:

“Como se trata de um filósofo grego, a ninguém ocorre interpretá-las pela kabbalah que é, como se sabe, a tradição sófica hebraica». No entanto, numa dimensão oculta, essa correspondência é perfeita, como no conto eloquentemente se explica.

As correspondências são praticamente a estrutura deste conto e da sua obra, ponte entre o visível e o invisível. Uma Misteriosofia. Platão representa o compasso ou o céu, Aristóteles o esquadro e a terra. Símbolos iniciáticos. Não se opõem, complementam-se.

Aquilo que pode ser visto como divergência entre as duas religiões, as coisas do céu e as coisas da terra, é, ao invés, “o perfeito entendimento entre os dois filósofos” pelo dedo de Platão que em ponta para cima recebe, e passa o que recebe, à mão com a palma para baixo de Aristóteles, como duas antenas ligadas, aquilo que Telmo refere em vários escritos como a síntese superior das religiões, o que a filosofia portuguesa procura resolver através, também na sua expressão, da razão poética. Na correspondência entre a orientação das duas mãos com «a relação ritual do esquadro e do compasso», temos a superior boda oferecida pela Maçonaria, onde as divergências entre os credos não só se atenuam, mas elevam.

Por isso, quando o narrador afirma que Tomé Natanael tem “loja aberta” não poderemos passar pela expressão sem um especial olhar. Mais tarde, o autor também personagem da diegese, encontrará “a loja fechada”. As lojas simbólicas encerram depois dos trabalhos, à meia-noite como ritualmente é pronunciado, e o trabalho deste aprendiz, pelo menos uma parte dele, que fora a meditação sobre a correspondência entre as Categorias e a árvore da Kabbalah, já estava concluído. 

As correspondências, forma perfeita de velar, revelar e desvelar, de descobrir cobrindo e encobrindo, constituem o mais desenvolvido talento sefardita, o disfarce, que ao mesmo tempo, neste processo de espelho que é a correspondência, melhor se reconhece na profunda essência. É o valioso privilégio que o marrano ou sefardita paga, preço bem caro, pois é na separação dos seus eus que melhor pode vir a conhecê-los e uni-los, na já referida síntese superior.

Talvez por essa razão, António Telmo vá usar, para interrogar Tomé Natanael sobre os dois “filósofos altíssimos” e “a prisão das figuras em que os imaginou Rafael”, o modo dórico. A prisão é a visão antagónica de ambos, o mundo plano. Mas na Grécia Antiga, a doutrina do Ethos (ou afectos) assentava na capacidade dos sons de influenciar e modificar a natureza moral do homem, por uma estreita relação com a alma, e os nomes com as coisas. Ora o modo dórico expressa o espírito intermédio, a circunspecção, o que permite superar a ilusão do antagonismo, e é precisamente nessa linha que a resposta lhe vai ser dada, encorajando-o a subir os quatro degraus que conduzem aos dois filósofos para transcender a ilusão do 2 e do 3 e a fixidez das imagens, e poder aceder à vida, ao movimento, às vozes e aos pensamentos inacessíveis.

O número simbólico da Loja Maçónica no seu primeiro grau é o três, que ele é encorajado a transcender subindo os quatro degraus para aceder à quinta dimensão, ou para entrar num mundo paralelo que é aquele em que se encontram as figuras de Rafael, sendo que é o cinco o número do 2º Grau ou do Companheiro, aquele que viaja. Trata-se do grau em que se encontra Tomé Natanael, pois numa próxima visita, o aprendiz encontra a loja fechada por o antiquário ter ido viajar por cinco dias, o número do grau do Companheiro. É após esta viagem do antiquário, o seu outro eu, que Telmo alcança entrar no mundo pintado por Rafael e, depois de subir os degraus, penetra num mundo anteriormente impossível até de almejar. 

Na linha do disfarce marrano (a designação mais comum para o sefardita ibérico), onde também se encaixa o nome simbólico dos iniciados, é dito de Tomé Natanael, o antiquário, que “ali em Estremoz é conhecido” por esse nome. Interrogamo-nos acerca do seu nome verdadeiro. Ou o verdadeiro é o simbólico? É o tema central, o poder e o valor da palavra, tão caro ao Cabalista. É quando, pela primeira vez que é confrontado com o nome de António Telmo, através de um cheque que este lhe passa por uma compra de dois candelabros, esses judaicos transmissores de luz, aqueles sobre os quais repousa o Espírito de Deus, que Tomé Natanael se apercebe que os nomes são anagrama um do outro, em espelho.

A escrita de António Telmo é da natureza das obras a que pertence o afresco de Rafael. Olhamo-la dezenas de vezes sem nos apercebermos até que ponto está viva e fala. A três e a cinco dimensões. Um dia, depois de muita contemplação, entra-se nela e percebe-se, é o caso deste conto, como palpita grávido de uma história que já descortinávamos, mas que resplandece apenas quando nela, finalmente, entramos. É aí que podemos travar conhecimento com Tomé Natanael e reencontrar António Telmo. Como este desvenda no conto seguinte, “A Minha História”, ficamos a saber que a partir de um encontro com alguém real, o pintor Délio Vargas, este o informara, para sua estupefacção, pois o antiquário nascera da sua imaginação, que o conhecia, e trocara com ele longas cartas em que o antiquário dissertava sobre Cabala. Era também casado com uma professora chamada Antónia, como a esposa de Telmo.

Tudo isto poderia ter ficado no limbo do género ambíguo que em Telmo flutua entre a ficção poética, a biografia e o ensaio, se eu própria não tivesse vindo a conhecer o pintor Délio e ouvido da sua boca o testemunho sobre a existência do antiquário de Estremoz estudioso da Cabala e companheiro de entrada em mundos. Seu nome: Rafael! O meu cérebro racional calcula que Tomé Natanael e António Telmo não sejam os únicos a conseguir entrar em outras dimensões. Também Délio Vargas, o talentoso artista, o consegue. Em vós, caros companheiros deste momento, sei que ficará uma dúvida: se não serei eu própria cúmplice desta trama misteriosa, inventando a existência do pintor. Acontece que tenho ao meu lado quem tenha assistido e ouvido o testemunho. Para além disso, poderão em qualquer altura dirigir-se a Lisboa e provocar um encontro com o pintor Délio e quem sabe?, cá organizar um congresso? Em Estremoz debalde procurarão pelo antiquário, a não ser que tenham mais sorte do que eu. Talvez pelo processo de Telmo e Tomé Natanael, eventualmente também do próprio Délio, possam encontrar a Loja. Até lá poderão ir treinando o método ensinado a Telmo pelo antiquário. Olhar através do dedo indicador apontando o céu como o de Platão, não focando o dedo, mas para longe até verem a imagem em duplicado e olhando pelo intervalo. Ou “qualquer coisa de intermédio”, como escreve Mário de Sá Carneiro na passagem do poema que li ao início. Tal como o modo de interrogação dórico, espírito intermédio. Foi assim que Telmo finalmente entrou no cenário da Escola de Atenas num dia em que a reprodução já tinha sido retirada, e apesar de tudo ali não só a viu, como nela entrou. Recomendo, a quem não conheça, a leitura destes Contos Secretos, parte da Obra Completa do filósofo, felizmente editada. Uma deslumbrante forma de entrar no pensamento marrano de um escritor e pensador superior.

 

Maio de 2023

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VOZ PASSIVA. 129

17-05-2023 11:31

Na foto, da esquerda para a direita do leitor: Paulo Brandão, Pedro Martins, Deolinda Fernandes e José Faro, durante a sessão de lançamento de A Glória da Invenção, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, no passado dia 2 de Maio, na ESMTC - Escola de Medicina Tradicional Chinesa, em Lisboa 

 

 

Apresentação de A Glória da Invenção – Uma Aproximação ao Pensamento Iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro

José Faro

 

Boa tarde

Cumprimento os autores do livro hoje apresentado e todos os presentes.

Aos autores confesso que fiquei sensibilizado com o convite para ser o apresentador – seguramente que é do seu conhecimento a minha profunda impreparação para o efeito, o que demonstra o seu corajoso à vontade perante o paradoxo e a sua estrutural segurança perante o risco, o imprevisível e imponderável. O livro que geraram, em qualquer caso, saberá apresentar-se e defender-se a si mesmo, saberá encontrar o seu próprio caminho.

Saúdo ainda os presentes pelo elevado nível da sua noção de permanência do objeto e pelo elevado grau de inefabilidade abstrata de alguns dos seus objetos de consciência.  Eu explico. Piaget falava deste género de coisas. Começámos todos, no berço, com o pânico da nossa mãe ter deixado de existir de cada vez que desaparecia, por exemplo, por ter saído da sala. Com o tempo descobrimos que ela, afinal, era permanente. Por extensão, a pouco e pouco, vimos a aceitar que todas as coisas existem persistentemente mesmo quando não as percecionamos. Muito mais tarde, parte de nós aplica esse axioma da permanência ontológica das coisas a objetos que nunca passaram pela perceção sensorial. São elementos intra-psíquicos, axiomas, crenças, intuições que nos habitam. Alguns são autênticas pedras de fecho estabilizando as cúpulas dos nossos processos interiores. Inefáveis, bem longe, lá no alto, mas tão concretos, tão sólidos, tão permanentes, muitas vezes tão indispensáveis para que a vida e o mundo nos mostrem sentido.

Fernando Pessoa escreveu algures “O mito, esse nada que é tudo”. Eu acho que filosofias que tentam verdadeiramente penetrar o desconhecido que ainda parece nada, como a de António Telmo, se enquadram entre os nadas candidatos a tudo. E, por isso, considero admirável estarmos aqui reunidos em torno de nada, um nada que sentimos como sendo ontologicamente concreto e talvez mais permanente que o resto. Na verdade, reunidos na mítica soleira de um pórtico antigo e invisível que, como se nada fosse, se abre escancaradamente para o tudo.

Voltando ao elemento terra.  Ao livro. Os autores colocam uma escrita maravilhosa ao serviço duma reflexão informada, simultaneamente abrangente e do mais exigente detalhe. Dez sonetos da Risoleta Pinto Pedro mapeiam elusivamente tesouros escondidos no mundo de Telmo e desenham numa neblina esboços de seres que o habitam. São sonetos que sabem a soneto: filosoficamente densos, com finais afinados em clave conclusiva, mesmo quando rematados em acordes de espanto ou em semibreves perguntadas. Perguntamos nós se foram construídos a propósito de Telmo ou se emanaram da mesma fonte que dessedentou o filósofo.

Na distância, Aquilino Ribeiro escuta, com deleite, o ranger ritmado da pena de Pedro Martins. A riqueza do vocabulário é posta ao serviço duma semântica fina, apta a ser expressão correta dos dados resultantes da pesquisa histórico-filosófica prévia, que tece e fundamenta uma rede interativa de conceitos e significados.

Lembrei-me de que tenho grande consideração e amizade pelo casal autor deste livro, que hoje veio à luz, mas que traz luz sobre muita coisa. Tenho de ser cuidadosamente objetivo, até por se tratar de um livro que, como vimos, e de um certo ponto de vista, tem como marca de água, o nada. O tal do Fernando Pessoa.

O trabalho de recolha e revelação (como nas fotografias antigas), anos a fio, de documentos da obra de António Telmo, ou dos muitos a ele referentes é, nos factos, uma tarefa pesada como o chumbo, que ensombra os que ousam a investigação histórica rigorosa. Mas, tanto quanto se sabe, Pedro Martins e Risoleta Pedro (reparem: quase faz capicua) deitaram juntos mãos a essa obra (reparem: música! Piano a quatro mãos) e transformam esse plúmbeo e amalgamado início em reluzentes pepitas editoriais como a que hoje é lançada ao mundo. É por isso que, a propósito deles me tenho lembrado ultimamente de Nicolas e Pernelle, famoso casal de alquimistas da história da Alquimia. É que, disse-me uma vez um alquimista, no laboratório só há uma coisa melhor do que trabalhar bem sozinho: é trabalhar bem acompanhado.

A composição em dez ensaios, sobre temas distintos ainda que relacionáveis torna a leitura do livro particularmente acolhedora. Dessa pluralidade não resulta a sensação de ser basculado de supetão um tema para outro sem relação na passagem de ensaio para ensaio. Cada ensaio é completo e chega-se ao fim com o prazer de ter concluído um caminho. Mas, mal se começa a percorrer o ensaio seguinte, logo se descobre-se que é uma continuação do caminho anterior. O resultado, para mim, foi uma leitura muito absorvente. “Bem, é só mais um ensaiozinho”, e assim sucessivamente. E parar antes do fim do livro? Claro que o momento presente me esperava. Mas o facto permanece – foi duma assentada e com sublinhados.

O que é apresentado é muito interessante. Na verdade António Telmo é um ponto focal duma vasta rede de simbiose teórica entre personalidades estruturalmente cúmplices no desvendamento filosófico do mundo mas, ao mesmo tempo, com individualidades muito marcadas. Como os designar coletivamente? Filosofia Portuguesa? Filosofia Marrana? Paracletismo? Filosofia Operativa? Ignoro e os especialistas que resolvam isso. O facto é que é praticamente impossível compreender qualquer deles sem falar muito dos outros, quer nas concordâncias quer nas discordâncias, quer sejam síncronos ou assíncronos. O facto é que eles se reconheceram uns aos outros e se reconheceram melhor a si mesmos  no conhecimento dos seus pares na aventura filosófica comum.

Por essa razão, ao longo dos seus ensaios, Pedro Martins faz o gesto olímpico e ancestral do mercante de feira que desdobra uma manta para mostrar o esplendor da vista de conjunto do estampado ou do bordado. Neste caso, numa visão abrangente de águia, o rendilhado incrível com que os bilros da história teceram a história dos que, por estes lados, usaram o pensamento filosófico inspirado como ferramenta para transformar o pensador, trabalharam numa síntese espiritualmente operacional dos aspetos mais relevantes, desse ponto de vista, das religiões abraâmicas, e procuraram, nos jogos de luz e sombra da história do nosso povo, os contornos duma alma nacional contendo os segredos do melhor do nosso passado e o mapa do nosso destino comum. A visão de conjunto, a pluralidade desvendada das articulações teóricas, históricas e pessoais, a fundamentação documental exaustiva levam-me, naturalmente a recomendar a sua leitura.

E agora, sendo eu alguém que, do tal ponto de vista acima apresentado, esteve a falar de nada, ou a falar do nada, é de considerar que já falei o suficiente.

Mas, a título de post scriptum: cruzei-me uma única vez com António Telmo e tudo entre nós se resumiu a uma troca de olhares. Mas que olhar tão doce, tão dirigido e tão atento. Que olhar tão de menino em alguém que, evidentemente, já era menino há tanto, tanto tempo. Ainda hoje recordo esse olhar que, há 25 anos atrás, durou um segundo, se tanto.

A minha admiração e reconhecimento para os autores, cordiais saudações para todos os presentes.

VOZ PASSIVA. 128

02-05-2023 00:00

António Telmo, o sentido do Sul e um acontecimento recente em Portugal

Eduardo Aroso

No dia em que se cumpre a data de nascimento de António Telmo (2/5/1927 – 21/8/2010) e em que é apresentada a obra «A Glória da Invenção» de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, acabo de reler uma das mais significativas páginas de História Secreta de Portugal de António Telmo, capítulo II, publicada em 1977. «Tudo indica que, sendo o Sul, como vimos [o autor descreve nas linhas anteriores o percurso pelos 20 medalhões dos claustros dos Jerónimos, começando pelo lado ocidental e acabando no sul, justificando a sua razão de ser] o termo da «viagem» no Claustro, esse ponto cardinal constituía, para os Templários e seus continuadores, a enteléquia do movimento. O portal do Mosteiro da Batalha e o da Igreja do Convento de Cristo em Tomar estão, como o de Santa Maria de Belém, voltados para o sul. (…) Fernando Pessoa também sabe que “o Sul sidério esplende sobre as naus da iniciação”. Entre o X [1º medalhão], * que está no início, e o Sol,** que se encontra no fim [20º medalhão], há uma relação da potência ao acto. Que espécie de potência e que espécie de acto?».

Há aqui três palavras-chave, SUL, MOVIMENTO e ACTO. Tudo leva a crer que esta tríade constitua a mesma relação para algo, e na qual António Telmo se interroga. No início da obra em questão, o filósofo alude a um ponto de partida interessante, ou seja, o facto da imagem da Santa Maria de Belém estar voltada para sul, pormenor porventura simbólico, pois o Mosteiro dos Jerónimos foi erguido sobre uma velha ermida, consagrada a Santa Maria, mandada construir pelo Infante D. Henrique.

No recente 25 de Abril deu-se um acontecimento entre nós, que, quer se queira ou não, envolveu o sul (o promissor sul carregado de História que nós sabemos, falando a Língua Camões). O que todos viram também sabemos: cenários meramente políticos. O que talvez muito poucos vissem foi a oportunidade perdida desse movimento para o sul (neste caso o Brasil), pela presença do seu presidente. Qualquer presidente é uma representação mais ou menos efémera de algo maior na história das nações, não deixando de ser símbolo desse trânsito no tempo. No meio da mais rasteira política da Assembleia da República, foi a oportunidade perdida da Língua Portuguesa - «quem não vê bem uma palavra, não vê bem uma alma» (F. Pessoa) – mas quiçá também tudo o que de oculto carrega esse movimento para sul.

O entendimento do que representa a nossa tradição no caminho do sul, decerto que não aconteceu. Ou algo se vai passando de menos visível. Todavia, o movimento continua até que Portugal se cumpra e que a pátria do Cruzeiro do Sul saiba quem é na verdade.

  *  A letra X, primeira letra grega do nome grego de Cristo.

** Sol símbolo de Cristo.

Maio, 2023

INÉDITOS. 106

02-05-2023 00:00

O presente escrito corresponde à parte inicial, nunca desenvolvida ou concluída, de um livro que António Telmo tencionaria intitular de O livro das minhas invenções, como o próprio refere no texto. Apesar da sua natureza brevíssima e fragmentária, reveste-se da maior importância para a compreensão da obra de Telmo. Nele, o filósofo da razão poética introduz-nos a noção de invenção, a qual, tomada na pureza etimológica da origem, nos remete para a dimensão criacionista de um pensamento que sempre se propôs pensar o irracional: a razão poética, justamente por o ser, é a razão que cria. Mas o sentido do novo tanto vem da e xperiência que conhece o mistério, e da expressão que, pensando, a re-vela, como da hermenêutica que a re-conhece. Nisto reside a glória da sua invenção.

 

O livro das minhas invenções[1]

 

A palavra invenção, como muitas outras palavras, sofreu um desvio do seu étimo pelo qual deixou de ser compreendida. E foi isto que levou muitos a dizerem, por exemplo, que os portugueses não inventaram o Brasil, mas sim o descobriram.

Invenção é o que vem (de venis) e o que sopra (ventum), é o que nos ocorre subitamente no espírito e nos faz ver o que não víamos e o que os outros não viam. Sublinhamos aquilo que explica o significado corrente da palavra.

Este é o livro das minhas invenções. Refiro-as por ordem fenomenológica:

 

1.º - O Claustro dos Jerónimos e o 4.º grau do Regime Escossez Rectificado.

2.º - A explicação dos fonemas da língua portuguesa pela árvore cabalista das sephiras.

3.º - Camões como discípulo de Zoroastro.

4.º - As dez categorias de Aristóteles explicadas pelas dez emanações divinas, tais como os cabalistas as representam na Árvore das Sephiras.

5.º - A interpretação do episódio do Adamastor a partir da bizarra etimologia do nome do Titan: Adão Astral.

E ainda a demonstração de que nele viu Vasco da Gama espelhada a sua natureza terrível. Um  e o outro são o mesmo: Téthis é-lhes comum.

6.º - O Velho do Restelo como o Velho Testamento em contraposição com os desvendadores do futuro. Uma sabedoria respeitável.

Claro que tudo isto é acompanhado de pequenas descobertas ou, por outras palavras, são uma nova luz que mostra outro Aristóteles, outro Camões, outra Gramática Portuguesa, outro Portugal.

7.º - O Monte abiegno como Teorema de Tales ou a Caverna Platónica.

(8.º - O nome de Aristóteles na raiz do seu pensamento.)

 

Como se vê, há uma constante nas sete bizarras interpretações, o serem todas de desvendamento do que está à vista e que por estar à vista ninguém vê.

Vou considerar cada uma delas pela ordem em que foram apresentadas.  

                                                                                                                              (...)    

 

António Telmo



[1] Nota do editor - O título é da nossa responsabilidade.

 

 

EDITORIAL. 29

02-05-2023 00:00

Tempo de (re)invenção

 

No dia em que se completam 96 anos sobre o nascimento de António Telmo, sai a lume o terceiro título da Colecção Thomé Nathanael – Estudos sobre António Telmo, com a proverbial chancela da editora Zéfiro.

A Glória da Invenção – Uma aproximação ao pensamento iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, põe singularmente em diálogo o ensaio e a poesia como modos de abordagem à obra do filósofo e busca novas e surpreendentes perspectivas para um corpus original, fecundo e sumamente avesso às baias de um qualquer sistema.

Nestes dias em que o anti-semitismo surdamente latente na vida cultural portuguesa teve, felizmente, de arrostar com as palavras de revelação proferidas por Chico Buarque ao receber o Prémio Camões, a via cabalística de Telmo, que o conduz em espiral do marranismo ao maçonismo, revela-se, uma vez mais, medularmente portuguesa, como bem sabe quem não desconhece que o puro-sangue lusitano é somente assunto para certas coudelarias.

Em Junho próximo, António Telmo (ou o seu anagramático alter ego Thomé Nathanael) estará em foco, pela mão de Risoleta C. Pinto Pedro, na Conferência Anual do Selma Stern Centre for Jewish Studies Berlim-Brandenburg da Freie Universität Berlin, este ano dedicada ao tema “Global Jewish Literatures in Portuguese – Transnational Networks, Histoires and Cultures”. Depois da tradução francesa de Filosofia e Kabbalah, o horizonte volta a alargar-se. É-nos grato constar que a reinvenção da filosofia portuguesa vai a par da internacionalização de António Telmo.

CORRESPONDÊNCIA. 61

30-04-2023 17:04

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 6 de Maio de 1977

 

Le 6 Mai 77

 

Mon cher ami António Telmo:

 

En espérant que vous n’êtes pas trop déçu, je dois vous dire que je devrais changer mon plan en ce qui concerne mon entrée au Portugal via Badajoz. Il y avait plusieurs raisons , entre outre « um cansaço » censé par le travail et des « affections locales ».

J’arriverai donc le jeudi 26, à Lisbonne avec un avion de TAP à 12.20, venant de Madrid. Carlos Silva m’a écrit qu’il veut venir me chercher ; j’écrirai avec le même courrier à Francisco Sottomayor et à Carlos Silva l’heure de mon arrivée. Je vais prier à Francisco Sottomayor de me faire réserver une chambre dans l’Hôtel Americano pour la première nuit. Il serait bon si nous pouvions être ensemble le même soir une première fois. Mais si vous n’êtes pas à Lisbonne, cela sera reparable, parce que je voudrais aller le vendredi à Borba et rester là, ou avoir un temps [?], avec vous ou près de vous pendant le Pentecôte. Cela vous irait-il ?

Ce qui concerne la conférence : peut-être, pour éviter toute limitation politique, dans le « Grémio Literário » ? – Au lieu de conférence, je préférerais « causerie ». – Cela n’exclurait pas qu’on se rencontre dans les autres cercles aussi, [palavra ilegível] après, dans la deuxième semaine après Pentecôte. Parce que la date, je pense qu’il serait mieux de la fixer dans la première semaine après Pentecôte, par ex. le 2 ou 3 juin (mais aussi à tel autre jour, selon es meilleurs conditions, les habitudes etc…). En ce cas, celui ou ceux dont on jugera qu’ils s’intéressent vraiment pour un ? travail personnel, pourrions [sic] participer à nos réunions la deuxième semaine.

Puisque j’estime que vous organise ces choses, je vous prie de les dire à nos deux amis Francisco S. et Carlos S.

Pour le temps où je reste à Lisbonne, je suis invité de demeurer chez Carlos Silva. 

 

Paris et son « air » m’a fait beaucoup de « mal » ces dernières années et surtout cet hiver : je vais donc chercher un endroit alure [?] et plus aéré pour quelques jours, après avoir terminé et tapé mon article sur Pessoa – que j’écrivais quatre fois, et que je pourrai vous montrer. Donc, ne m’écrivez plus à Paris : je téléphonerai un soir à Francisco S. pour savoir comment les choses vont. –

Votre lettre, et ce que vous me dite de Fr. S., m’a beaucoup ému. Mais n’attendez trop, dans ce sens, que le commencement nécessite avant tout, une tâche difficile qui consiste à désapprendre, et on ne peut pas savoir, d’abord, pourquoi au moins pas tout-à-fait. Mais je viens avec tout « ce qui m’est possible » donner. – Je ne sais pas bien interpréter l’acte de Qu. L. [?] – une lettre de lui, autrefois, m’a semblé très intelligente, concise, consciente. Alors ? Il vous l’a dit lui-même ? – Mais j’espère d’être bientôt chez vous. Avec toute mon amitié

Max H.

VOZ PASSIVA. 127

30-04-2023 16:46

O meu encontro com António Telmo

Francisco Soares 

Triplo lançamento dos livros O Bateleur, de António Telmo, Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, de António Quadros, e  Eleonor na Serra de Pascoaes, de António Cândido Franco, na Galeria Nasoni, em Lisboa, no dia 10 de Dezembro de 1992, com a chancela da editora Átrio, de José Manuel Capêlo. Da esquerda para a direita da foto, estão António Cândido Franco, Afonso Botelho (que apresentou O Bateleur), António Telmo, Artur Anselmo (que apresentou Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa), Francisco Soares (que apresentou Eleonor na Serra de Pascoaes) e o editor José Manuel Capêlo.

 

 

O meu encontro com António Telmo,

começou por uma indicação de um amigo, o Pedro Isidoro, relativa aos Teoremas de teatro. O livro, como se diz no Brasil, impactou-me! Até hoje. Como os bois e algum Nietzche, fiquei a ruminar: em silêncio. Mas não olhava para um palácio, olhava para um templo relativamente pequeno, entre a penumbra a proteger do excesso de luz, talvez um pequeno templo rural.

Depois li a História secreta de Portugal, livro com o qual mais me debati, encontrando clareiras, divergências, a par de afinidades até de pesquisa. E ficou tudo no ar, ainda hoje, falta-me tempo para respirar, o livro está ao lado do António Quadros e vocês calculam de qual título, sobretudo o primeiro volume.

Sigamos. Tendo a fugir de pessoas conhecidas e fiz o mesmo com António Telmo. Aliás, fugir não é o termo, nem ele nunca me procurou nem me pôs em situação de ter de fugir. Isso vocês conhecem, sabem que não era possível nem faria sentido. Evito, evito por mim, por timidez, para dialogar apenas com as obras, porque as pessoas, ah as pessoas cada uma são vários mundos e eu nunca sei muito bem qual, dos meus, há de encontrá-las e temo chocar-me, não ter as atitudes e falas adequadas. Além disso, a minha sensibilidade me torna muito frágil e turva-me, por vezes. A menos que esteja disposto a lutar, outra forma de amor que, no entanto, mal envolvida e sem se perceber, gera mortes. Aproveitando que falamos de um português e deste português concreto, ocorreu- me até pensar que D. Afonso Henriques amou a mãe e, se a prendeu, foi porque momentaneamente confundiu amor e posse.

Retornemos. O António Telmo um dia apareceu na livraria Universo, num dos eventos promovidos pelo João Carlos Raposo Nunes e aos quais acorria sempre com boas expetativas, nunca saindo fraudado. Pareceu-me ter um corpo estreito, magro mesmo, não muito alto e estar em torno dele aquele pequeno templo em que a penumbra não só protege como esclarece o excesso de luz. Eu vou também falar-vos, porém, de outro Telmo. Não sei se nesse evento, creio que em um posterior, ele disse-me que gostava de me ver, achava-se um bom português, dos antigos – e eu não percebia qual o ponto irónico onde ele queria que eu chegasse. Com aquele sorriso típico, de jogador de bilhar e de sábio discreto, onde a ironia era um dos rostos da bondade, ele me ajudou: “sempre que o vejo vem com uma nova mulher. E bonita!”. Rimo-nos os dois. Eu não me ri do elogio ao macho, ri- me da agilidade percetiva e do recado que vinha nas palavras e da amizade da achega. “E bonita” ele disse para ser também simpático à mulher que no momento me acompanhava. Mais tarde falou-me, em Estremoz, do José Manuel Capelo e percebi as virtudes que nele apreciava para além dos defeitos, apesar dos defeitos, que todos temos mas em pessoas como o Capelo são sempre mais visíveis, mais evidentes.

Outro dia, em Setúbal também e por ocasião de outro evento na Universo, fez-me umas breves perguntas sobre a Fábula da captação do elemento desvairado, uma pagela que o mesmo Capelo me publicou e talvez seja o único livro interessante que dei a ver, até pelo seu barroco, pela rudeza com que lá pus o começo e o fim das reflexões. Aquilo era para mim uma teoria do conhecimento e a parceira teoria política, pois o conhecimento e a política, tanto quanto o rito e a lei, não vivem separados. Um conhecimento etimologicamente etimológico.

O António Telmo, começando por muito me elogiar, perguntou-me do que resultara o livro. Eu fui-lhe respondendo, com metafísicas palavras pelo meio, o que tornava a resposta nublada em excesso. Ele sorria com aquele sorriso irónico e benévolo de parceiro mais velho. Logo em seguida, precisava a interrogação: mas eu perguntava-lhe era mesmo como foi que o escreveu, em que momento, estava sentado, em pé?, o que tinha feito nesse dia ou nesses dias, quando é que lhe ocorreram as primeiras linhas? E deu-me duas possibilidades. A segunda – os críticos literários dirão que era a da inspiração – ele a narrou com pormenores muito concretos: era a exata narração do que sucedera. Surpreendi-me. Como é que ele podia saber disso tão bem? Conseguindo repor-me e voltar ao diálogo, contei-lhe o que a memória guardou desse breve processo, com os pormenores que me pareceram momentaneamente pertinentes (lembro-me de que isso incluía a lua, a noite, essa noite específica e física, ou ambiental). Ele recolheu o rosto, sério, e murmurou: pois, era o que eu imaginava. Era mesmo. Depois ainda me perguntou: e o Francisco não pensa mexer nesse livro? Disse-lhe que não, que por insegurança quanto aos resultados, era melhor não mexer. O que ficou no ar, ou no silêncio e no olhar dele, acho que foi um percurso que eu me recusei, sem bem saber, a palmilhar. Um dia, um discípulo do António Telmo, que vi ocasionalmente em Vila Viçosa, disse-me, amigável, a mão sobre o ombro sem que isso me parecesse paternal (pelo contrário): “o Francisco também já é nosso”. Por um dos contextos da conversa, pensei que ele falasse dos alentejanos. Ele acrescentou: “não é propriamente nosso irmão, mas um parente muito próximo, digamos, um primo chegado.” Depois cada um seguiu o seu rumo.

Não vos venho, portanto, falar do sábio, não tenho competência para tanto. Comecei, confesso, a interessar-me pela pessoa. A pessoa dele era, para mim, simultaneamente, um mais velho e um lutador com sentido do jogo que é a luta. Vocês lembram-se da Natália Correia? O José Manuel Capelo falou-me da relação dele com ela por termos de domínio: cada um tentaria dominar o outro, ser preponderante sobre o outro e essa luta é que lhes dava gozo. Não se passava propriamente isso entre mim e o Telmo, passava-se quase o oposto: eu fugia (não é o termo certo, mas ainda não achei o trunfo), se eu fugisse ele acariciava, elogiava, chamava, dizia coisas interessantes, eu percebia o ardil do jogador e atirava-lhe perguntas que me inquietavam, ele percebia o ardil do tímido e respondia que essas perguntas requeriam (digo nos meus termos) uma aprendizagem e um convívio diferentes. E silenciávamos. Ele encontrou um ponto de contacto entre nós, a partir da geografia. Eu tinha ido morar muito próximo de Evoramonte e, a propósito disso e do facto de ter eu também ascendentes judaicos, ou hebreus, ou semitas, falou-me brevemente da origem possível daquela pequena vila, talvez um núcleo de marranos. Falou-me do ferreiro, que por acaso conheci e com quem conversei um pouco mais depois desta conversa. Homem de suas sombras e discrições, falando pouco e deixando no silêncio os recados. Mas a conversa vinha dar a um padeiro e, por ele, à arte de fazer o pão. Disse-me que me queria apresentar o sr. Inácio Ballesteros (acho que era Inácio). Pessoa doutrinada, cortês, discreta, com o sentido espiritual do pão. Conheci-o e gostei muito de o conhecer, embora tivesse convivido pouco, falado pouquíssimas vezes com ele. Curiosamente, as poucas vezes em que nos vimos cumprimentávamo-nos primeiro com os olhos, por um olhar quase cúmplice, familiar também. Depois o resto eram palavras breves.

As minhas conversas com o António Telmo andavam também por aí: pessoas concretas, comentários – nunca maldosos, mas por vezes maliciosos e sempre deixando reticências que me levavam a pensar, não nos enredos e nas intrigas, mas nas pessoas e na simbologia possível dos acontecimentos em que se manifestavam. Isso, porém, eu já pensava sozinho, quero dizer em silêncio, mas parecia-me que ele se apercebia e que me deixava ficar assim. Raramente esperto (quero dizer: esperto como raros o são), perspicaz, aquele filósofo-jogador – amigo da sabedoria, conhecedor do desconhecimento, ou do acaso caso prefiram. Talvez eu lhe tenha pedido para me falar mais dele como jogador. Eu sempre apreciei pessoas para quem a sabedoria nunca está separada da vivência. É como a hipótese e a experiência na metodologia científica de Popper: anda-se entre as duas constantemente aprendendo. Se quisermos aprofundar, é como o sujeito e o objeto do conhecimento na filosofia de Leonardo Coimbra: interpenetram-se, influenciam-se e conhecem-se melhor por isso mesmo. Disse-lhe que apreciava nele a ligação do sábio e da vida, a vivência do sábio nas atividades comezinhas, aparentemente insignificantes, ou nas distrações para, aparentemente, matar o tempo. Nem nos apercebemos da importância desta frase que agora me veio aos lábios e aos dedos: matar o tempo.

Bom contador, como demonstrou no Bateleur publicado pelo Capelo, sempre falando com pausa e sublinhando com o tal sorriso irónico mas amável, em tom baixo ou moderado me contava curtos episódios locais, com traços mínimos retratando personagens. Como quando lançava chistes, eram contações que deixavam no ar qualquer coisa. Mesmo a simples nuvem que passa deixa – quantas vezes? Inumeráveis (e não pela quantidade) – sim, deixa no ar qualquer coisa. É como o Espírito. Será que ele me falou disso também? Toca e só depois de nos tocar e ter ido nos apercebemos (bruscamente?) de que passou por nós algo não definível.

Nos curtíssimos contos, alertava-me para a perspicácia, o bom jogador, o bom caçador, não têm só pontaria no gesto, mas, antes e durante, pontaria na perceção do ‘inimigo’, do ‘rival’, do ‘outro’, da ‘caça’ ou do ‘parceiro’, da ‘manha’ (falou- me da etimologia de ‘manha’ e de ‘mania’), da simulação. Será que isso acontece nas touradas? Por acaso foi comentando as touradas que me falaram pela primeira vez no António Telmo. E depois ouvi-o falar nas touradas, ao vivo recolhi essa tradição de que elas ocorrem somente em países onde há tremores de terra. Não quer dizer que há sempre touradas em países onde a terra treme, mas que sempre treme a terra nos países onde se fazem, por tradição, touradas. Como é meu hábito, joguei-lhe alguns exemplos opostos. Ele explicou-me pacientemente que eram episódicos e impostas as touradas lá politicamente, a partir de fora. Eram, de facto, eu só lhe joguei uma simulação escorregadia como todo o jogador costuma fazer para testar o adversário. Não foi nunca falta de respeito, mas sentido de que a aprendizagem é também desafio, incluindo o desafio do aprendiz ao mestre. Porém, não me considerava um aprendiz, apenas um companheiro muito novo, um miúdo, perante um mais velho bastante sábio, que eu nunca venceria fosse qual fosse o jogo – o que mais ainda me estimulava.

Fomos jogando assim na vida, esporadicamente pois era raro nos vermos. Essa brincadeira de simulações e de avanços e de recuos (esses os meus) era a nossa brincadeira. Entretanto, ele desapareceu. Alguns tempos antes, eu dizia-lhe que o sentia (depois de uma crise que teve) como se renovado, o olhar mais vivo, mais brilhante, sentia-se uma energia rejuvenescida, falei-lhe nisso acompanhando o seu passo já pouco ágil e menos vigoroso do que o do caçador. Caminhávamos naquele extenso parque de automóveis naquela tarde sem carros, em frente à Câmara de Estremoz. Havia aquela bela Igreja do lado oposto à Câmara, com a porta grande voltada para Évora-Monte (mantenham a maiúscula do meio e o hífen, por favor), e dois cafés-restaurantes onde habitualmente nos encontrávamos, à direita do parque quem viesse da Igreja e de Évora, à esquerda quem viesse de Espanha e da Câmara Municipal. Mas isto não seria simbólico para mim. Sentia só, fisicamente, um excesso de luz e pensei que fosse de estar o parque deserto e brilhar um sol esplendoroso num céu limpo.

Sabem o que ele me respondeu? Fecho com isso o meu reles depoimento, aliás de jogador eterno aprendiz porque nunca cheguei ao fim de nenhum jogo. Ele disse: “sabe, Francisco, o corpo vai decaindo, conforme a alma se torna mais ágil.” E partiu. No sentido estrito em que nunca mais o vi. Para um bom jogador, o corpo é inseparável da alma, pelo que deduzo que ela o transporta consigo e não há razão para entulharmos os ossos num cemitério.

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