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INÉDITOS. 31

24-10-2014 10:54

aDeus*

 

Na visita que fiz pela primeira vez à casa de Teixeira de Pascoaes, vi que a última palavra que o poeta escreveu foi a palavra aDeus, assim com o D maiúsculo. A família não tocara em nada no interior dos aposentos que, no grande solar, eram exclusivamente dele. Sobre a sua mesa de trabalho, a sua mesa de arte, conservava-se, amarelecido pelos anos, o papel com as últimas linhas que escreveu.

Soube que as últimas palavras por ele proferidas foram “até amanhã”. Nesta expressão, o primeiro a é aberto e não fechado. “Até amanhã”, isto é “até à manhã”. Fazendo reflectirem-se uma na outra a última palavra escrita e a última palavra falada, não deve ser errado presumir que Teixeira de Pascoaes, ao dizer esta, terá de facto pensado: até ao nascer de um novo Sol que é Deus.

 

António Telmo

____________

* Título da responsabilidade do editor.

VOZ PASSIVA. 35

23-10-2014 09:46

«Somente desembarcando na Ilha somos forçados a reconhecê-la como realidade»

(Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, de António Telmo)

Eduardo Aroso

 

Desembarca para saberes

Que a terra é terra

E entre ela

E para além

O céu é céu.

 

Chegar, seja em que tempo for

No oceano ou no ápice do ar,

Para saberes que existe Ilha

Ou o que seja ela toda,

A Terra florida e armilar.

 

Desembarca e chega

Para conheceres

O que é haver onde a alma for

Para tocares a árvore da vida:

Folhas, raízes do chão;

Raízes, frutos de amor.

 

Desembarca para corrigir

O reflexo da realidade,

Separando o chumbo do tempo

Que há entre esquecimento e saudade.

 

(Santa Clara-a-Velha, 21-10-2014)

INÉDITOS. 30

22-10-2014 13:07


Genealogia de Pascoaes[1]

 

A genealogia de Teixeira de Pascoaes é como se segue:

O Canto da Pérola dos Actos de Tomé gerou Prisciliano, este gerou Dinis e Isabel e as festas do Espírito Santo, Dinis e Isabel geraram Luís de Camões e a sua Ilha, Luís de Camões gerou Sampaio Bruno e os Cavaleiros do Amor. Teixeira de Pascoaes é um deles. Dizia que, no seu tempo, só havia em Portugal doze homens superiores. Dizia também que os restantes portugueses eram divinamente estúpidos. Os sergistas, entre os quais Salazar, tiraram o divinamente: ficou só o estúpido. Assim o afirmou o poeta, sem referir Salazar a quem não ligava, e assim aumentou de cinco para doze o número dos eleitos.

José Marinho era bem mais generoso. Calculava uns quinhentos. Com este número, temos mais probabilidades de sermos um deles. 

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 29

19-10-2014 16:52

Teixeira de Pascoaes[1]

 

Quando eu era moço, pelos meus vinte anos, enviei a Pascoaes um soneto que tinha como tema a magia poética da Lua Cheia, da Lua Plena, sem quebra ou defeito, e digo assim pois acreditava que nos meus doze versos ela estava presente exactamente assim e que, por isso, o Príncipe dos Poetas Lunáticos não deixaria de reconhecer um igual. Não obtive resposta. Envergonhado, não contei nada aos amigos.

Andávamos todos então pelos arredores da filosofia portuguesa. Líamos o Teixeira de Pascoaes uns aos outros, ansiando ser em espírito levados nas ondulações dos misteriosos versos. A Elegia do Amor, As Sombras, o Marános e o Regresso ao Paraíso eram os poemas preferidos. Fernando Pessoa disse desses versos, sem nomear o autor, que eram extraordinários, mas que uma vez lido um estavam lidos todos e Unamuno numa carta aconselhava Teixeira de Pascoaes a encurtá-los, pois cansavam pela monotonia. Um e outro não eram decerto capazes de passar horas a olhar o mar, a vê-lo onda após onda desfazerem-se na praia, procurando observar a diferença qualitativa de cada rebentação, o tom de verde e azul na espuma branca.

Todavia, eram ambos admiradores de Pascoaes.

Tornou-se famoso o verso «a folha que tombava / era alma que subia» da Elegia do Amor, por ter sido interpretado por Fernando Pessoa como o exemplo supremo do mistério da relação da vida com a morte na unidade dos contrários, unidade que se realiza pela simultaneidade da materialização e da espiritualização, o que sempre acontece, mas que só raramente se reflecte na opaca brutalidade da alma.

O Álvaro Ribeiro fez editar pela Editorial Inquérito com prefácio seu e com o título de A Nova Poesia Portuguesa um pequeno livro reunindo uma série de escritos de Fernando Pessoa n’A Águia onde colhi a ideia (…)[2]

Quando dois ou três anos mais tarde vim a pertencer ao grupo dos dois filósofos portuenses, José Marinho e Álvaro Ribeiro, fomos todos avisados de que Teixeira de Pascoaes vinha a Lisboa falar no Grémio Literário.

Ficámos à porta, à espera da chegada do carro que o trazia. Vinha com uns amigos. Dirigiu-se imediatamente ao Álvaro e ao Marinho, que bem conhecia de se encontrarem na Renascença Portuguesa e, em seguida, foi-nos apertando as mãos um a um fraternalmente. Um de nós deixou-se ficar como estava e disse-lhe: Não o conheço de parte nenhuma. E Pascoaes prontamente: Dê-me sua mão. Todos nos conhecemos do Paraíso.

 

António Telmo

 


[1] Título da responsabilidade do editor.

[2] António Telmo interrompe neste ponto o manuscrito, para o retomar no parágrafo seguinte.

 

VOZ PASSIVA. 34

15-10-2014 10:41

O comentário de Eduardo Aroso à Arte Poética de António Telmo que agora publicamos é parte integrante da Marginália do II Volume das Obras Completas de António Telmo, Gramática Secreta da Língua Portuguesa precedida de Arte Poética, que sairá a lume, no trimestre em curso, com a chancela da editora Zéfiro e o apoio institucional e científico do projecto António Telmo. Vida e Obra. António Cândido Franco assina o prefácio deste novo volume, que foi organizado e anotado por Pedro Martins.

O voo da metáfora (de uma leitura de Arte Poética de António Telmo)

Eduardo Aroso

                                   «Não há progressão sem movimento triádico» Arte Poética

 

No que o título sugere, pode imaginar-se algo que está numa posição fronteiriça, podendo assim ir a um ou a outro lado. Imagens de salto na horizontal e o de um outro na vertical podemos vê-las na poesia do seguinte modo: a de um género superior, ou a que simplesmente se emaranha num jogo de espelhos multiplicado de tal maneira que a sua diluição deixa-nos sem uma saída redentora ou movimento de alma. Assim, no desconforto dessa posição fronteiriça o salto da metáfora pode ser novamente para a terra e para as águas que Heraclito não queria, e então há um tombo como quem escorrega e se vê aflito para sobreviver, sem esperança de ali sair, «formas em que cai o espírito que perdeu o poder», no dizer do filósofo de Estremoz. Há, nos antípodas disto, o salto para o que se poderia dizer o abismo, mesmo sendo ele para cima, salto esse sem qualquer espécie de paraquedas, apenas com asas de Ícaro. Este salto ou voo poético pode ter correspondência no que Telmo chama «filosofia raciocinante, a que não corresponde nenhuma espécie de transmutação interior e que constitui, afinal de contas, uma efémera evasão do mundo da acção». Disto abunda um certo género de poesia actual, tema este que não cabe aqui desenvolver.

Seja como for, a realização do «movimento triádico», apontado por António Telmo, se o considerarmos na poesia, vemos então que o salto é voo, desígnio maior da metáfora, que não se perde no caos do espaço nem se despenha na terra, mas que traz o Sopro de Deus para a carência humana, inquietação provocada pelo roubo do fogo de Prometeo. A metáfora é então aspiração sublime, transposição do ponto original, em que, como no exemplo da semente, permanece todavia sempre algo de essencial, sejam quais forem as metamorfoses e plástica do poema. Tudo isto como num outro exemplo, o das naves espaciais que no seu percurso vão perdendo módulos para poderem alcançar o longínquo ponto desejado, pois importa chegar com o essencial e não com toda a bagagem de início.

 

O que lemos no Propósito de Arte Poética, o «duplo intuito de animar a filosofia e de reintegrar a poesia no pensamento» pode significar também que, para além da ideia que na poesia deve viver, porventura a soberania da metáfora ou o voo em todas as direcções (para o céu e para a terra) é que se torna decisivo para a floração última do poema, esse que não vagueia no caos, mas que traz o Sopro Divino à inquietação humana. Nietzsche tinha essa aguda consciência da possibilidade de uma caída do pensamento ou corte com a natureza superior, mesmo a do lado de fora dos românticos (hoje abusada ilusoriamente na palavra ecologia). Por isso, num equívoco de apenas nomes trocados, a essa metáfora superior o alemão chamou Deus, na sua polémica afirmação da “morte de Deus”, sendo esta a metáfora que cai desamparada de tudo. É nuclear a seguinte passagem de Arte Poética: «o movimento da filosofia deverá consistir, pois, não em fugir para um mundo suprassensível, mas em tomar consciência da imensa força na qual vivemos e somos, - em encontrar o dissolvente universal». Dir-se-ia que do mesmo modo a poesia. O terreno do sensível (e, no caso da poesia, acrescentaria um certo conceito de “poesia social”) é uma espécie de matéria-prima disponível, dada a nossa condição de seres incarnados. Todavia, neste campo tem-se verificado dois modos de agir diversos: há, digamos assim, os mais ou menos materialistas e ateus, não afeitos ao que se pode dizer transcendente, e também os intelectualizados de tal modo que confundem mente com espírito. Uns e outros vivem no equívoco do visível-verdadeiro-real. No poeta superior, que tem asas diferentes das que usou o malogrado Ícaro, a seta sobe até onde pode e inverte o movimento até onde for necessário: «o espírito que desce dentro de si mesmo para se conhecer nas diversas formas que assume», descida que é «um movimento activo». Ou seja, todo este trajecto parte do mundo sensível para a ele regressar, sem que se despenhe no espaço labiríntico sem paraquedas. É a parábola do Filho Pródigo que sabe por que quer viajar e volta com a virtude da experiência.     

 

O automatismo das imagens que é tratado no capítulo «Mnemónicas» pode actuar na metáfora que há nessa poesia que se lança no espaço sem paraquedas, ou na outra que salta e cai, numa densidade plúmbea, trazendo mais peso ao planeta. Acontece quando há transposição de associação de imagens em que o espírito pode estar alheio, condicionado e enredado seja pelas imagens soltas e em jacto das modas várias, seja pela atitude do poeta na admiração e até fascínio por algum congénere seu, ou ainda na auto-ilusão do próprio poeta sobre o que é a representação da sua escrita enquanto acto de comunicação no leitor, ou seja, quando não há a autenticidade condição da singularidade do poeta que, tendo ou não disso consciência, no fundo de si alberga apenas uma forma (estilo) de escrever que é (ou deveria ser) o seu. E convém lembrar que a questão da autenticidade foi tema do contemporâneo de Pessoa, Adolfo Casais Monteiro. O poeta superior - leia-se o que de algum modo tem o fio de Ariadne que não o deixa perder definitivamente no labirinto das imagens – para atravessar todos estes desertos do condicionamento luta ainda numa frente (essa afectando tudo e todos) que é a das tão faladas imagens subliminares, «resistências ao poder do espírito», no dizer de Telmo, à maneira da magia negra, dirigidas nos tempos presentes e manifestamente contra a vontade da pessoa, inculcadas por forças obscuras que se esforçam por ludibriar o fulgor do espírito. Proliferam em todo o lado: na imprensa, nas televisões, nos discursos políticos e até pseudo-religiosos, e ainda nos economicistas e plutocratas.

 

Se tomarmos o que Fernando Pessoa escreveu sobre o movimento serpentino, não se descortina bem que sentido António Telmo queria dar à expressão em epígrafe do movimento triádico. Seja como for, o filósofo, que nasceu na Beira Alta, que andou pelo Brasil e viria a falecer no Alentejo, aponta para a dualidade não resolvida na busca de um terceiro elemento. Contudo, pode haver neste processo não apenas uma questão quantitativa de mais um elemento, mas uma espécie de “destilação” simultânea de tudo ou uma transdisciplinaridade em vez de uma interdisciplinaridade.

Diz Pessoa: «Ella [a serpente] liga os contrários verdadeiros, porque, ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita, ou da esquerda, ou do meio, ella segue um caminho que passa por todos e não é nenhum. Ella parte, como o caminho direito e o esquerdo, do Instincto para Deus, mas não sofre a quebra onde os triângulos se unem; não fôrma angulo comsigo mesma». Seja qual for a análise que se faça, estamos em presença de um processo holístico, que superiormente resolve todos os contrários, todas as dissonâncias e antíteses. Se, como já alguém disse, o primeiro pensamento e acto da Criação foi (é) uma afirmação, o mundo em que vivemos é fértil na negação, sob o piscar de olhos de Satan, porque sabe que o mundo sensível é um mundo de oportunidades pelo esforço, senão… o céu seria um céu de medíocres!

 

Outubro de 2014

 

VOZ PASSIVA. 33

14-10-2014 10:18

Testemunho da sessão de 3 de Outubro último, na Capela do Espírito Santo dos Mareantes, em Sesimbra, onde se procedeu à audição do registo sonoro da conferência télmica de 3 de Março de 1984, este poema de Teresa David evoca a atenção contínua que o filósofo dispensou à figura do ceifeiro na tábua de Nossa Senhora da Misericórdia, de Gregório Lopes, onde  António Telmo entreviu um autoretrato do pintor, figurando-se como um iniciado... 

O Ceifeiro!

Teresa David

 

A

Abrir-Nos o Caminho

para o Céu

O Espírito do Universo

na Terra

na Semente

na Espiga

na Ceifa

de séculos e séculos,

O Poeta-Filósofo

olha para o Segredo,

e, ledo,

Veifa[1]

ingente

a Graça

e

Anuncia

luzente

a Misericórdia!

 

                                                                  Quintinha, 7 de Outubro de 2014

 

 



[1] Forma do verbo veifar, que, entre o arcaísmo e o neologismo, pode ter uma tradução de "tecer" (to weave) do Inglês Antigo, e, até, incluir o significado de criar poemas em público, assim como "to wave". E, mais próximo do latim, ter o significado de "vibrar”.

 

 

VOZ PASSIVA. 32

10-10-2014 11:13

Amar mais a hipótese do que a verdade[1] – Teixeira Rego: filólogo esquecido, filósofo desconhecido[2]

Rui Lopo

I

Talvez venha este número dos cadernos a contribuir para se constatar a importância do tema do discipulado e do magistério na tradição filosófica portuguesa contemporânea em que António Telmo se filiou. Mereceria este tema um longo volume em que se apontassem os sentidos teóricos da relação discipular e da importância do conceito e da experiência da transmissão de uma tradição (ou várias) nesta corrente de pensadores.

É de facto algo que merece amplo e seguro tratamento devendo assinalar-se, por exemplo, o aspecto comunitário de uma filosofia que é entendida como eclodindo em reuniões, mais ou menos abertas, e que criavam um campo ideal de liberdade pensante num contexto institucional pouco propício a inovações pedagógicas ou experiências ensinantes de novo tipo;

Por outro lado, atente-se ao modo como eram estas reuniões presididas por um grande e inspirado orador dotado de grande rasgo raciocinante e fulgor discursivo – José Marinho; e por uma outra figura tutelar que, discreta e subtilmente, orientava os discípulos mediante silêncios e metáforas ou aguardando momentos oportunos onde intercedia de forma pessoal e secreta – Álvaro Ribeiro. Nesta dualidade magistral muito se decidia;

Acrescente-se, em terceiro lugar, que apesar do cariz independente e não oficial deste movimento que viveu como tertúlia mas também como escola, logrou-se realizar uma intervenção cultural pública notória;

Por último, aponte-se que a reflexão de Álvaro Ribeiro sobre o clássico problema do ensino da filosofia, a que se dedica de forma sistemática, é inseparável da sua proposta de reactualização de uma tradição filosófica nacional. Neste como noutros tópicos, a reflexão de Álvaro estava em diálogo com a teorização de José Marinho, que ao mesmo tema dedicará a obra Filosofia, Ensino ou Iniciação? Publicada em 1972, pela Fundação Calouste Gulbenkian, cenário onde Telmo situa um dos seus contos secretos, relembrando não só dados pessoais da vida de ambos como fragmentos de ditos orais de Marinho. A valorização da oralidade é, aliás, outra das características que estatuem a originalidade deste movimento, na sua dupla e mista dimensão de transmissão discipular directa, vertical, e de conversabilidade, horizontal dialogia.

 

No momento em que estes Cadernos se detêm sobre o oportuno tema das confluências, entendido este conceito como designando a convivial relação de ressonância pensante havida entre aqueles que se designaram ou foram designados como mestres, discípulos e condiscípulos, haveria que conceptualizar, questionar e esmiuçar a problematização do que seja este magistério, correlato ou contrapolar daquele discipulato. Ainda que agora não seja o momento de o fazer, concedamo-nos, pelo menos, recuar a Platão e às suas aporias sobre a ensinabilidade da filosofia, aliás, bem meditadas por António Telmo, seguindo a lição de Álvaro Ribeiro, e expressas em diversos, ainda que parcos e crípticos, comentários ao Crátilo, ao Filebo ou ao Ménon. E está por aferir e explanar de forma exaustiva a presença de Platão na tradição da filosofia portuguesa, de Sampaio Bruno a José Marinho e de Leonardo Coimbra a Agostinho da Silva.

O movimento cultural de que Telmo como um elo nos surge afasta-se do sentido habitual do exercício da razão filosófica, na medida em que assume nexos com outras instâncias mentais e por isso se manifesta em disciplinas também outras, conforme Ribeiro nos adverte:

 

A razão, por si só, não é inventiva ou criativa. O mestre é senhor de segredos que só revelará aos iniciandos e aos iniciados. Situado no seu quadro sacerdotal, Pitágoras figura evidentemente como o precursor de Platão, filósofo capaz de ver para além do visível[3].

           

Isto é, se a imaginação e a intuição são valorizadas como faculdades apreensivas, ou de outro modo dotadas de potencialidade gnósica, assumindo que incidem sobre uma realidade intermediária, entre o mundo sensível e o inteligível, será necessário conferir à filosofia âmbito mais amplo que a circunscrição lógico-gnosiológica a que costumeiramente se restringe, auto-reduz ou é constrangida. Neste sentido, a par deste pressuposto, o labor de leitura que caracteriza o exercício exegético, tantas vezes presa de estudos culturais dissolventemente desligados de adequada fundamentação filosófica, é aqui assumido como propiciatório de uma postura hermenêutica aberta ao mistério.

A importância que Álvaro Ribeiro atribuía à reflexão sobre estes temas fica expressa, por exemplo, em carta a Telmo de 30 de Março de 1971[4], onde promete publicar um escrito de ocasião fogoso e piramidal, um protesto contra o mal que se diz na imprensa sobre ensino exotérico e esotérico. Tal escrito surge aí planeado como um opúsculo que, significativamente, se deveria intitular mestrado e magistério.

Com esse preciso título não terá publicado esse trabalho, ao que julgamos saber, mas aferimos o cuidado com que o mestre declarado do discípulo assumido tratou a questão do ensino da filosofia, teorizando-a simultaneamente como uma disciplina cultural: um acervo dado, feito e aprofundável (segundo regras bem explanadas de um trívio e quadrívio redidivos e reinventados), mas também como uma arte a cultuar. Uma arte sempre im-perfeita, isto é, nunca já-dada mas sempre por-fazer e actualizar, arte que nos faz no momento mesmo em que a fazemos, participando de um património tradicional que nos constrói na hora em que a ele acedemos, segundo uma relação dialéctica. Isto é: aparentemente diádica, mas circular; tensional, mas motriz; dinâmica e ininterrupta em ordem a um ascensional movimento perpétuo.

A este propósito não podemos deixar de citar a já referida obra de José Marinho, imaginando-o, a ler em voz alta o seguinte passo a António Telmo:

 

Importa (…) sugerir a relação de pedagogia, paideia e anagogia, com magistério iniciático, educação e ensino.

A primeira via é ascendente, descendente a segunda. Não é fácil, porém, determinar o ajustamento e correspondência dos respectivos estádios. Resulta a dificuldade de a via ascendente ter mais possibilidades de determinação filosófica, sendo mais propriamente uma via de razão, não perturbada pela acidentalidade das relações humanas, objectivos sociais e programas. A pedagogia será o estádio da razão indiferenciada, a paideia, da razão diferenciada, a anagogia, da razão sublimada. Assim se explicaria que as múltiplas formas do saber não cientifico, saber poético, ou mítico-poético, as artes em geral, a mística, a religião nas suas diferentes formas, e ainda em muitos casos as que se consideram vulgares ou supersticiosas, possam ter sentido e valor anagógico ali e onde o saber da razão razoável se detém. Admitimos assim que pode haver mais fecundo saber anagógico na mãe que ensina o seu filho, do que em tantas formas de filosofia estritamente lógica ou lógico-empírica[5].

 

 

II

No sentido do que vimos dizendo, ouçamos o próprio António Telmo, no epílogo do seu trabalho dedicado às tradições heterodoxas da filosofia portuguesa, e vejamos o modo como tudo o que até aqui foi dito se concretiza:

 

Álvaro Ribeiro deu Sampaio Bruno como o fundador do movimento e acabou por revelar que a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde foi discípulo de Leonardo Coimbra, Teixeira Rego e Aarão de Lacerda, constituiu “o exemplo de como uma sociedade secreta pode funcionar aberta ao público”. Não se deve falar de “filosofia portuguesa” sem ter absolutamente em conta o conceito que dela formou o seu criador. Álvaro Ribeiro foi o nosso último filósofo; depois dele, a filosofia que criou tornou-se uma “coisa pública”, sujeita às vicissitudes sociais. Tudo depende agora de Hermes. José Marinho nos últimos meses de vida, costumava dizer: “Tudo já foi pensado; agora só precisamos de hermeneutas.”[6]

 

O texto que foi citado conclui uma longa apresentação de uma figura de seis vértices que correspondem a Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, José Régio, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Teixeira de Pascoaes em cujo centro se encontrariam Sampaio Bruno e Guierra Junqueiro. O que aqui chamamos a atenção é que Teixeira Rego não consta como um dos vértices desta ogdoada que figura os oito medianeiros da humanidade portuguesa, peninsular, euro-africana com o sobrenatural[7].

Este mestre de Agostinho da Silva (que chega a afirmar ser dele mais próximo que de Leonardo), de Álvaro Ribeiro e José Marinho, mereceu de António Telmo leitura atenta e olhar decifrante, explicitada em dois momentos bem marcados. Vejamos. Em 1955, publica António Telmo um longo e denso artigo[8], cujas últimas e conclusivas palavras qualificam o autor de Nova Teoria do Sacrifício de filólogo esquecido e filósofo desconhecido que urgiria memorar e compreender. A sua teoria explicita que a origem do estado humano actual radicaria na experiência traumática da mudança de alimentação, do regime frugívoro para o carnívoro, a qual seria rememorada por lendas e mitos de todo o mundo que fazem corresponder à ingestão de um alimento a queda de uma condição humanal anterior e superior decaída naquele conjunto de caracteres que definem a humanidade actual.

No seu artigo, Telmo prefere apontar para a existência de uma teorização (ainda que apenas implicitamente formulada) da renascença na obra de Teixeira Rego, que funcionaria como contraponto especulativo das tomadas de posição poético-doutrinárias de Pessoa e Pascoaes. Apesar do seu trabalho ser eminentemente erudito e de escopo etnográfico, a sua concepção seria tanto mais importante por, parecendo centrar-se no problema do mal, da sua origem e fim, afinal visar o renascimento do homem, ou a recuperação de capacidades julgadas perdidas. Telmo faria assim justiça à afirmação do autor que via na sua Nova Teoria apenas uma base preparatória de um futuro sistema filosófico. Telmo procura então defender o autor das simplificações que o qualificavam como um positivista, rigorosamente o qualificando de materialista, mas apenas na medida em que, preocupado em descobrir os segredos da matéria visava alcançá-la no grau em que já não aparece como sinal negativo de Deus; é neste sentido que se compreende a sua oposição à metafísica tradicional, não sendo todavia possível qualificá-lo como ateu, não só por Rego se auto-definir como agnóstico, mas por afirmar a origem metapsíquica das religiões, firmadas em experiências já não (imediatamente) acessíveis ao homem actual.

Raciocinando por analogia, e vendo a geração da Águia, de algum modo como o renascimento da geração de 70, Álvaro Ribeiro compara Leonardo Coimbra a Antero de Quental e Teixeira Rego a Teófilo Braga:

 

De Leonardo Coimbra se poderia dizer o que foi dito de Antero de Quental, a saber que a acção comunicativa da sua palavra filosófica parecia ter o condão de abrir a inteligência de quantos o ouviam, como se também fossem como o poeta homens superiores. Mas se o grupo dos colaboradores de A Águia tinha o seu Antero de Quental, também era dotado do seu Teófilo Braga, pois seja dito que a erudição séria, exacta e ampla do professor Teixeira Rego fazia o contraponto grave, terrestre e humano de todas as investigações tendentes para uma conclusão angélica ou divina.

Leonardo Coimbra acusava Teixeira Rego de “amar mais a hipótese do que a verdade”. Em suas lições de filologia portuguesa, o autor de Estudos e Controvérsias fazia nítida distinção entre as leis fonéticas e as leis gramaticais, ou gráficas, na intenção de explicar o fenómeno literário ou poético. Aludia depois às regras elementares da cabala, compendiadas nos capítulos de nomes singulares como Guematria, Notaria e Themuria.

O ilustre professor acreditava no sopro benéfico ou maléfico que da ordem sobrenatural desce à ordem natural, e admitia a inspiração na origem das obras dos génios. Deste modo aventava hipóteses temerárias sobre os relatos da Bíblia, que, no seu dizer autorizado de hebraísta e helenista, provinham de permutações das letras e das sílabas[9].

 

Álvaro Ribeiro acabou de nos informar que, apesar de se estatuir como elemento contrapolar de Leonardo Coimbra (apresentado como metafísico cujas investigações tendiam para conclusões divinas) assim preparando os discípulos de ambos para a alta compreensão do que sejam opostos especulativos, foi Teixeira Rego quem os iniciou nas regras da cabala. Além disso, apesar do seu pendor grave, terrestre e humano, o seu interesse era todo para os temas da tradição mito-poética universal, assumindo a tradução e a interpretação como modos por excelência de humanização do homem, e crendo na intervenção de elementos superiores na evolução histórica, de ordem ainda incompreendida.

Álvaro Ribeiro continua sua recordação dos tempos em que assistia às conversas entre os dois sábios, confessando a sua juvenil perplexidade não só quanto à diversidade das suas opiniões, mas também perante as aparentes contradições em que por vezes pareciam incorrer:

 

Causava-me surpresa, espanto e até indignação observar que cada um daqueles intelectuais, tão coerentes no pensamento artístico e político que haviam exposto nos seus livros, formulassem por vezes paralogismos, paradoxos e opiniões aberrantes só para terem ocasião de elevar o “verbo escuro” a uma luz que o tornasse fogoso e brilhante. As contradições licenciosas cruzavam-se no ar com os mais estranhos absurdos.

 

É notável que tanto Agostinho da Silva como José Marinho admitam a importância do influxo de Teixeira Rego na formulação dos seus pensamentos próprios. E sublinham que tal influxo confluiu com outros para se manifestar. O seu alto contributo é ainda maior quando visto no quadro contextual que o ampara e confere sentido. Álvaro Ribeiro atribui a Teixeira Rego o alto mérito formativo de o levar a adiar o juízo e a suspender conclusões: a partir daí seria necessário não recuar ante paralogismos, não excluir aparentes contradições nem fugir de paradoxos ou filosofias extravagantes. Algum sentido figurado ali deveria estar insinuado e importaria desocultá-lo e decifrá-lo. Foi a partir desta escola de contrapontos que pôde progredir da matemática para a poesia, segundo a injunção leonardina.

É denso e rico o longo trecho memorial que acabámos de citar, mas talvez ele nos ajude a compreender o tom algo áspero de Telmo em artigo que, sendo dedicado à Obra de Pinharanda Gomes, muito se debruça sobre Teixeira Rego, por se centrar no importante estudo que aquele lhe dedicou:

 

Não se vê pela leitura do livro de Pinharanda Gomes sobre Teixeira Rego se o biógrafo aceita ou não a doutrina do biografado sobre as origens da humanidade. Deve, porém, tê-lo seduzido pelo que nela se envolve da doutrina de Moisés no Génesis. Teixeira Rego situa o antropóide, que descreve coberto de pêlos, feliz entre os outros animais e fruindo dos frutos, no centro do Paraíso. A descrição do homem primitivo não condiz, como se vê, com a de um homem feito à imagem e semelhança de Deus. Uma trapalhada, em que se enreda o seu pensamento e o do seu biógrafo.

Pior do que isto é quando vem dizer-nos que o antropóide perdeu o estado paradisíaco em que vivia por ter cometido um crime horrível, o de ter morto um animal e comido a sua carne. A palavra que, no Génesis, as traduções dizem designar a maçã significa de facto carne. Em consequência deste acto, caem-lhe os pêlos, transforma-se num homem mais à nossa imagem e semelhança e, de frugívoro que era, passa a carnívoro.

O desejo de se querer conciliar o ensino bíblico com o ensino científico, neste caso com o evolucionismo materialista, leva forçosamente a estes disparates[10]

 

Parecendo ironizar com a posição de Teixeira Rego, na verdade Telmo reitera aqui certos pontos capitais do seu próprio pensamento, deixando no entanto ao leitor o trabalho de o esclarecer e explicitar totalmente. Telmo parece ter-se servido deste pretexto para alertar para os perigos da confusão entre planos de realidade e níveis de significação (do histórico ao alegórico; do erudito, exegeticamente explanado, ao sapiencial só de forma a-racional vislumbrável) e para a necessidade de, tratando de certos autores, manter cautelas interpretativas redobradas, evitando literalismos e precipitações. Recordemos as já citadas Notas sobre Teixeira Rego em que fortemente se valorizava a teoria filosófica do renascimento ainda que ela estivesse apenas implicitamente presente no seu estudo sobre o mito da queda e do pecado original. E o mesmo tema é aqui aflorado, agora em clave interrogativa:

Só há religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Mas, no passar do antropóide ao selvagem e do selvagem ao homem, cindiu-se alguma coisa do divino? A Religião é uma Renascença, um nascer de novo em quê? No antropóide?[11]

 

Mais que uma mudança de perspectiva sobre Teixeira Rego, quase cinquenta anos depois de sobre ele ter escrito o incisivo ensaio a que aludimos, preferimos sublinhar a constância temática da obra de Telmo, pautada pelo prolongado olhar para uma mesma estrela, deixando sinais aos vindouros, e nunca deixando de lembrar os mestres ou, melhor ainda, o que deles foi ficando para que possamos nós agora enfrentar a noite do mundo e prosseguir a demanda. Numa entrevista intitulada “Pensar o Irracional”[12], pedindo-lhe que comentasse uma sua expressão literária de um desejo de renascer, Telmo relembra que

na tradição esotérica do Cristianismo, e não só do Cristianismo, o que conta é a doutrina de que nós somos seres decaídos, em virtude de um mistério tremendo que não se sabe o que seja, a que chamam o pecado original e que eu penso terá sido o aparecimento da antropofagia. Mas isso é apenas uma conjectura. E então nós nascemos para esta vida, mas é como se morrêssemos (…).

Quando, perante qualquer fenómeno, acontecimento, pessoa ou estado de alma, sentimos que está ali qualquer coisa enigmática, que nós não sabemos o que é, e que temos a sensação desse enigma, então isso para mim é que é o saber, o saber autêntico, ou o princípio do saber, que é o que ensinam Platão e Aristóteles. (…) É o que eu digo… não sei como, começo a saber qualquer coisa disso. Mas isso é intransmissível, não é? 

 


[1] Expressão de Álvaro Ribeiro, recordando um dito de Leonardo Coimbra sobre Teixeira Rego, adiante reproduzido no seu contexto.

[2] Expressão de António Telmo sobre Teixeira Rego, adiante retomada.

[3] Álvaro Ribeiro, Memórias de um Letrado, Lisboa, Guimarães editores, 1977, volume 1, pp. 34-35.

[4] Recentemente divulgada por estes mesmos Cadernos no volume Interiores, pp. 133-134.

[5] José Marinho, Filosofia / Ensino ou Iniciação?, Lisboa, Instituto Gulbenkian de Ciência - Centro de Investigação Pedagógica, FCG, 1972, página 103, nota 3.

[6] António Telmo, Filosofia e Kabbalah, Lisboa, Guimarães Editores, 1989, pp. 97-98.

[7] Filosofia e Kabbalah, p. 84

[8] “Notas sobre Teixeira Rego” in Diário de Noticias, ano 91º, nº32185, Lisboa, 29 setembro de 1955, pp. 7 e 6.

[9] Álvaro Ribeiro, Memórias de um Letrado, Lisboa, Guimarães editores, 1977, volume 1, pp. 55-57.

[10] Referimo-nos ao artigo de António Telmo “Pinharanda Gomes – O Filósofo Autodidacta” (incluído em O Pensamento e a Obra de Pinharanda Gomes, Lisboa, Fundação Lusíada, 2004, pp. 193-200). Grande parte do artigo centra-se no facto de P. Gomes ser autor do importante volume: A Renascença Portuguesa: Teixeira Rego, Lisboa, ICLP, 1984. 

[11] Op. cit. p. 195.

[12] Entrevista concedida a Américo Rodrigues em Praça Velha, nº 16, Guarda, 2004, reproduzida no volume destes Cadernos dedicado a António Telmo pp. 12-22. V. esp. p.13.

 

DOS LIVROS. 21

09-10-2014 16:03

ÁLVARO RIBEIRO, 33 ANOS DEPOIS

Oarística

 

“Cada idioma é um órgão invisível que pode ser configurado mediante sinais gráficos e tipográficos, mas que exerce também funções indiscerníveis pela análise literal ou gramatical. No âmbito de cada idioma vão dialogando os seres humanos, e realizam conhecimento ou ciência, na medida em que continuam a relação de espírito a espírito. Fácil será inferir, portanto, que o diálogo mais profundo, de maior alcance gnósico, sófico e pístico, tem a designação clássica de oaristo.”

A palavra oaristo deriva de oar, termo grego para companheira e para esposa, correspondente ao latino soror. Significa, pois, conversa íntima do homem com a mulher. Sendo que língua é o mesmo que diálogo e dado que o diálogo de maior alcance gnósico, sófico e pístico, mais profundo, é o oaristo, à linguística de Álvaro Ribeiro devemos dar o nome de oarística, fazendo coincidir no neologismo o conceito e a assonância de heurística, termo que designa a arte de encontrar, procurando. 

Tudo está orientado, no domínio do aperfeiçoamento da linguagem, segundo duas linhas de educação, a masculina e a feminina, para o supremo  acto de conhecimento que é o encontro do homem com a mulher. A identificação do acto sexual com o conhecimento (“E Adão conheceu Eva”), própria da Cabala, não deve deixar-nos julgar que a distinção de sexos é apenas física. Quando se diz ou escreve “acto sexual”, há que imaginar uma relação em que as almas também são sexuadas e só isso permite identificá-lo com o conhecimento. A carne é o envolvimento, a manifestação ou, talvez, a projecção no plano natural de uma alma sexuada e os órgãos de criação também são psíquicos. Analogia activa ou dado da observação profunda, isto explicará, do ponto de vista oarístico, a afirmação de que “cada idioma é um órgão invisível”, em cujo âmbito “vão dialogando os seres humanos”; vão dialogando, “e realizam conhecimento ou ciência, na medida em que continuam a relação de espírito a espírito “.

As almas encarnadas ou as “razões animadas” (“a razão é o espírito do homem”) buscam-se atraídas pelo amor, mas para se encontrarem na mais elevada e profunda comunicação é necessário que a língua não funcione como obstáculo, degradando o pensamento, para que o diálogo assuma a dignidade de relação sexual superior. Daqui o imperativo de uma educação linguística para o rapaz e para a rapariga, diferenciada até à puberdade, a necessidade de que o ensino seja uma oarística.

As doutrinas que explicam a existência de línguas como o resultado de uma evolução animal do grito ou do gemido para a palavra, do desejo para a razão, foram completamente destroçadas pela linguística do século XX. Álvaro Ribeiro teve de mostrar e demonstrar que a língua é um órgão invisível, um órgão do espírito. As palavras que os amantes trocam não são o acompanhamento dispensável de um acto puramente animal.

A língua portuguesa, por ser aquela em que escrevia, pensava, conversava e orava, por ser a língua que a mãe lhe ensinou, aparecia a Álvaro Ribeiro como um perpétuo socorro e é fácil avaliar a repulsa que sentia pela doutrinação gnóstica contra toda a palavra e todo o pensamento, dados nela por impedimentos ao conhecimento que identifica com o inefável. Imagine-se um mundo em que a palavra está ausente, um mundo sem logos, extático na contemplação abismática do próprio não-ser e que, subitamente, no grande silêncio cristalizado, uma palavra soa e mesmo que tenha apenas quatro letras como a palavra Deus eis que tudo estremece e se agita, despertando do sonho para o movimento, da estagnação sublime para a acção criadora. 

A oarística estuda os movimentos pelos quais os fonemas, as palavras e as frases atraem o pensamento durante o diálogo entre o homem e a mulher. Neste sentido, constitui-se na forma que a linguística do século XX recebe, quando a estudamos à luz da doutrina cabalista do amor. É possível este desenvolvimento porque o estruturalismo deve ser interpretado como uma adaptação da Cabala às exigências científicas dos anos em que foram publicados o Curso Geral de Linguística de Ferdinand Saussure e o livro sobre A Linguagem de Eduardo Sapir. Não é porque os linguistas mais famosos que desenvolveram e aplicaram os princípios dos dois fundadores do estruturalismo em linguística, como Roman Jacobson, Noam Chomsky, Benjamim Lee-Worf e Emílio Benveniste, tenham nomes judaicos. O modelo dado pela estrutura das sephiras é a forma ideal para que tendem as várias interpretações da fonética, da morfologia e da sintaxe, mas no modo como relacionam língua e pensamento, modo que vai até à identificação, devemos ver a reacção da Cabala recuperando-se da derrota que sofreu da linguística alemã, dominadora de todo o século XIX.

Com efeito, o descobrimento do sânscrito constituiu o instrumento indispensável para estabelecer a Gramática Comparada das línguas indo-germânicas, para abrir um abismo entre as línguas europeias e as línguas semitas e para substituir o mito cabalista do hebraico como língua primordial pelo mito pseudo-científico do indo-europeu. Ao mesmo tempo, foi fundada a Fonética em termos tais que por completo ficaram desacreditados os métodos da Themuria, da Notaria e da Guematria. Trataram Franz Bopp, os Schelegel e os Grim de mostrar que somente os fonemas, pela sua materialidade separável da significação e do pensamento, constituem o fenómeno linguístico, só eles podem constituir o objecto de um estudo rigorosamente científico. Para tanto, havia que os considerar em completa independência das letras ou gramas que os significam. A sintaxe, que relaciona forçosamente a língua com o pensamento, quase foi esquecida durante todo o século XIX.

Eduardo Sapir, fundador com Ferdinand Saussure do estruturalismo em linguística, leva até à evidência o facto de que as próprias interjeições e onomatopeias não podem ser explicadas como a expressão de reacções instintivas, mas, como verificamos pela comparação das diversas formas nas diversas línguas da mesma interjeição ou da mesma onomatopeia, são verdadeiras criações artísticas do génio fonético que as compõe em harmonia com um grande conjunto, em que tudo joga entre si, no grande e no pequeno. Mas Álvaro Ribeiro preferiu utilizar o argumento do mesmo linguista, destinado a mostrar que “a linguagem é um sistema funcional completo que pertence à constituição psíquica ou espiritual do homem”. Esse argumento é o seguinte : “Não há, a rigor, órgãos da fala. Há, apenas, órgãos que são incidentalmente utilizados para a produção da fala. Os pulmões, a laringe, a abóbada palatina, o nariz, a língua, os dentes e os lábios servem todos para esse fim ; mas não podem ser considerados órgãos primordiais da fala, do mesmo modo que os dedos não são órgãos de tocar piano nem os joelhos órgãos da genuflexão religiosa”. No desenvolvimento, Eduardo Sapir rebate a tese dos psicofisiologistas que defende a localização da fala no cérebro.

D’A Arte de Filosofar até às Memórias de um Letrado vão vinte e cinco anos. Nos dois livros, a refutação por Bergson da tese que localiza no cérebro o órgão da fala e o órgão do pensamento se segue à menção do argumento de Sapir. O cérebro é um órgão de acção, de atenção à vida, de escolha de direcções activas para imagens e palavras sem lugar físico. Nenhum cientista sério, observa o filósofo citando Ombredanne, aceita hoje a teoria da localização cerebral das palavras. O pensamento é uma actividade invisível que se incorpora em palavras, por um processo análogo ao descrito na Carta sobre a Santidade para a formação do sémen.

Língua é o mesmo que diálogo ; o que nos engana é o prestígio do monólogo e do monoideismo, possíveis porque há sempre outro imaginado em nós mesmos, e é essa a razão porque o lirismo no plano mental e o narcisismo no plano físico são possíveis. A moderna linguística, ao centrar o acto de comunicação na relação de um emissor com um receptor pela mensagem, e ao determinar em que condições a fonética, a morfologia e a sintaxe tornam possível esse acto, pôs o fundamento sobre o qual Álvaro Ribeiro estabeleceu a sua oarística. Sendo, pois, o diálogo uma relação de espírito a espírito, até quando o homem parece falar só, as doutrinas gnósticas que desvalorizam a palavra, julgando-a impeditiva com o pensamento que transporta e movimenta, da união inefável com que identificam o conhecimento, actuam como um obstáculo ao progresso da filosofia na república dos homens.

Língua e diálogo são o mesmo. Fora da relação de espírito a espírito não há língua, mas, diz-nos Álvaro Ribeiro, se os animais falassem diriam o mesmo que dizem os homens que comunicam entre si diariamente. Diálogo não é, pois, o mesmo que comunicação. Se o acto linguístico é, como o determina a moderna linguística, a relação de um emissor e de um receptor pela mensagem, a qualidade desta é que decide de tudo e tal qualidade é a resultante do encontro de dois verdadeiros espíritos. Por isso mesmo, o oaristo é o diálogo mais profundo, de maior alcance gnósico, sófico e pístico. Por isso mesmo, isto é, porque na conversa íntima entre o homem e a mulher há todas as condições para tornar actual o amor.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

DOS LIVROS. 20

08-10-2014 09:43

Pinharanda Gomes, o Filósofo Autodidacta

 

 «Há, para além do natural e do social, do herdado e do partilhado, um jardim secreto onde ninguém entra, a não ser o próprio homem. Mesmo em Igreja, cada homem tem um modo de dialogar com o seu Deus, onde a igreja não entra: o fiel tem a sua vida de comunidade eclesial, onde a igreja entra e ensina; mas há, no íntimo do homem, um local onde só ele e Deus sabem o que importa. É a vida pessoal inalienável. É o miolo do sobrenatural»

Pinharanda Gomes

O Filósofo Autodidacta do andaluz Abuchafar Abentofail é a história de Hay Benyocdan, o misterioso mestre de Avicena, contada aqui como a de um homem abandonado, após ter nascido, numa ilha deserta de outros homens, cujo espírito atingiu os mais altos conhecimentos especulativos, tendo por primeira e única mestra a gazela que o amamentou. No plano do conhecimento instrumental, o seu itinerário foi em tudo semelhante ao que arqueólogos e historiadores imaginaram para a humanidade: progressiva entrada na civilização por sucessivos aperfeiçoamentos da adaptação ao meio, passando pelas fases que o raciocínio deduz para que a investigação no terreno as confirme. Há só uma diferença: a criança era de ascendência régia, se não divina, inconfundível com o antropóide imaginado pela arqueologia por evolução da matéria.

Teixeira Rego era um autodidacta como autodidacta é Pinharanda Gomes, que o biografou. Causou escândalo nos meios universitários coimbrões ter sido posto por Leonardo Coimbra na Faculdade de Letras da Universidade do Porto a ensinar algumas disciplinas fundamentais. Do ponto de vista universitário, um autodidacta é um analfabeto. Pinharanda Gomes nunca foi chamado a ensinar na Universidade, nem até na Universidade Católica, apesar da sua perfeita ortodoxia e da sua obra monumental. Também é certo que, na Universidade actual, não há nenhum Leonardo Coimbra.

O homem primitivo foi também imaginado por Teixeira Rego como um autodidacta. Aprendeu tudo por si próprio, até o falar, reagindo ao meio e reflectindo. Tivemos que esperar muitos milénios até que viesse a fundar a Universidade e a tornar-se um inimigo dos autodidactas, isto é, de si próprio. Todavia, pelo caminho que assim tomou, parece que se impediu, como veremos, de atingir conhecimentos tão altos como os de Hay Benyocdan.

Não se vê, pela leitura do livro de Pinharanda Gomes sobre Teixeira Rego, se o biógrafo aceita ou não a doutrina do biografado sobre as origens da humanidade. Deve, porém, tê-lo seduzido pelo que nela se envolve da doutrina de Moisés no Génesis. Teixeira Rego situa o antropóide, que descreve coberto de pêlos, feliz entre os outros animais e fruindo dos frutos, no centro do Paraíso. A descrição do homem primitivo não condiz, como se vê, com a de um homem feito à imagem e semelhança de Deus. Uma trapalhada, em que se enreda o seu pensamento e o do seu biógrafo.

Pior do que isto é quando vem dizer-nos que o antropóide perdeu o estado paradisíaco em que vivia por ter cometido um crime horrível, o de ter morto um animal e comido a sua carne. A palavra que, no Génesis, as traduções dizem designar a maçã significa de facto carne. Em consequência deste acto, caem-lhe os pêlos, transforma-se num homem mais à nossa imagem e semelhança e, de frugívoro que era, passa a carnívoro.

O desejo de se querer conciliar o ensino bíblico com o ensino científico, neste caso com o evolucionismo materialista, leva forçosamente a estes disparates. Pinharanda Gomes, enquanto expunha a doutrina de Teixeira Rego, deve ter pensado em Teillard de Chardin, pois não reagiu opondo-lhe qualquer objecção:

«O aparecimento da Nova Teoria do Sacrifício provocou surpresa e originais comentários. Basílio Teles, em seu rigorismo ascético, mostrava dificuldade em entender o emaranhado da floresta de enganos em que o amigo se metera. Bruno, afoito mas precavido, numa fase de ascensão para a ideia de Deus em sua transcendente pureza, evitou dar parecer, por andar molestado. Teófilo Braga, em seu positivismo, adianta que Teixeira Rego deveria ter descrito as três fases nutritivas da Religião: o mito do Éden, ou religião ctoniana; o mito da Serpente, ou o rio gelado; e o mito do Fruto Perdido (sic), ou da bebida fermentada. Não tinha que fazer isso, o autor do livro, para quem a Religião só surgiu após o Pecado Original, sendo, por isso, uma das provas da queda. Segundo a lógica, Rego estava mais certo do que Teófilo: só há Religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Só há Renascença por importar nascer de novo.»

Será isso. Só há religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Mas, no passar do antropóide ao selvagem e do selvagem ao homem, cindiu-se alguma coisa do divino? A Religião é uma Renascença, um nascer de novo em quê? No antropóide?

Terá reparado Pinharanda Gomes num dos textos de Teixeira Rego que escolheu para figurar no fim do livro, onde ele chama a atenção para “a serpente e esse alimento proibido que foi a causa da civilização e da ciência, esse alimento que foi a origem de todo o mal mas que foi também a origem de todo o bem”? E, se reparou, terá recordado ao mesmo tempo as palavras de Jesus Cristo no Evangelho aos discípulos, “sois Deuses”, que repetem as palavras da serpente no Paraíso?

Não podemos saber se reparou, porque os autodidactas, crescendo e aprendendo sozinhos na sua ilha, têm segredos. É pena, porém, que não tenha explicado melhor o silêncio de Sampaio Bruno sobre o livro do “discípulo amado”. “A ideia de Deus em sua transcendente pureza” era assim tão oposta ao mistério redentor da Encarnação que levasse o filósofo a preferir calar-se, “por andar molestado”, a ter de dizer “não” a uma doutrina que punha nocomer carne a origem de todo o mal e de todo o bem?

Teixeira Rego exerce sobre Pinharanda Gomes um fascínio irresistível. Sente-se irmanado com ele no seu autodidactismo. Protesta. Diz que Teixeira Rego não foi um autodidacta. Teve como mestres Basílio Teles e Sampaio Bruno, assim como ele, Pinharanda Gomes, teve Álvaro Ribeiro e José Marinho… e a Igreja, onde floresceu o seu espírito à semelhança do de Hay Benyocdan naquela ilha paradisíaca donde não precisou de sair para conhecer todo o Universo e, através dele, Deus.

Protesta e tem razão para protestar. No domínio da cultura exterior ao mistério, não há autodidactas. Isso é o que nos querem fazer acreditar instituições que, por fortes e legítimas razões do Estado, têm o monopólio do ensino, no direito que têm de só elas poderem conferir diplomas.

Se tivéssemos de considerar autodidactas Teixeira Rego e, com ele, nobilíssimos espíritos como Eudoro de Sousa e Amorim de Carvalho e tantos mais, porque não passaram da instrução primária ou de alguns anos do Liceu, não obstante terem escrito magníficos livros, então teríamos de aplicar igual critério a todos os escritores. Não se ensina nas Faculdades de Letras para fazer poetas, dramaturgos, filósofos, mas professores e bibliotecários. Ninguém é preso por se apresentar como escritor, mas pode sê-lo se exercer a medicina ou o magistério sem diploma. Ou sê-lo-á um dia?

Houve, porém, uma excepção: a Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra. Ali se fizeram escritores filósofos; ali se ensinava, não para que o aluno obtivesse licença para ganhar dinheiro, mas para que pudesse vir a compreender o grande mistério do homem, do mundo e de Deus. Por isso mesmo a calaram. Agostinho da Silva, Sant’Anna Dionísio, Casais Monteiro, Eugénio Aresta, José Marinho, Álvaro Ribeiro ali nasceram de novo. E não foi Pinharanda Gomes discípulo dos dois últimos e, portanto, não se formou, através deles, na gloriosa Escola de Leonardo Coimbra?

Pinharanda Gomes protesta, mas sabe que isso não é o essencial. Ele sabe que o essencial é ser um perfeito autodidacta, isto é, um homem capaz de pensar por si próprio, mesmo quando ensinado por outros, mesmo quando esses outros são Álvaro Ribeiro, José Marinho ou Orlando Vitorino. Como Hay Benyocdan, aquilo que sempre fez e faz é procurar o segredo de salvar a sua própria existência e a dos outros pelo que aprende na sua ilha, orando e interrogando, na sua ilha que, para ele, tem sido a Igreja, cercada pelo mar revolto da humanidade inquieta, onde se viu estar após ter nascido. No andaluz, a ilha é a cifra de um centro iniciático, não de uma organização religiosa, mas de algo que lhe anda intimamente ligado.

E é pelo que nela vê e aprende que se pôs a estudar Teixeira Rego e outros muitos. Tudo ali está porque não conhece mais nada nem precisa de conhecer. A filosofia portuguesa que tanto ama aparece-lhe como uma árvore gigantesca no centro da ilha, mas desgarrada. Avistam-se barcos à deriva, feitos da madeira que os ventos da heresia lhe arrancaram. Sulcam o grande mar da humanidade portuguesa, uns mais próximos, outros mais distantes. Teixeira Rego é um desses barcos. Buscam, em vão, outros portos onde possam atracar. O mais belo de todos, o de Leonardo Coimbra, andou sempre próximo, temendo rochedos e feras para atracar. Um dia, o timoneiro teve a coragem de desembarcar e descobriu que onde havia feras e rochedos estava o Paraíso.

É assim que Teixeira Rego lhe aparece como um católico que se ignora e por isso se diz agnóstico, como alguém que vive fascinado pelo Mistério da Encarnação, de Deus envolvido connosco, e que procura entendê-lo pelo espiritismo, pelo ocultismo, pela teosofia, por tudo quanto lhe proporcione explicar a misteriosa relação do espírito com a matéria. Pinharanda não gosta dos maniqueus, que põem uma espada flamejante entre os dois, deixando a pobre matéria abandonada, sem socorro, consumindo-se no seu exílio de Deus. Não é exílio uma palavra que significa fora da ilha? E não sabemos já o que é a ilha para o nosso filósofo autodidacta?

O regresso de Leonardo Coimbra à Igreja foi tardio. Álvaro Ribeiro, que o conhecia bem, comparou um dia o itinerário espiritual do mestre ao de Huysmans que passou pelo ocultismo, pela teosofia, pela cabala antes de se converter. Mas não foi só Leonardo a cultivar as ciências proibidas. Já o vimos para Teixeira Rego. Pascoaes terá percorrido caminhos análogos. O que é espantoso observar é que, entre os homens da Renascença, os dois que mais parecem ligados ao ocultismo, Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, são os únicos que o refutaram.

Sampaio Bruno, para quem a existência e a intervenção dos anjos são factos positivos, não gosta do espiritismo que denuncia como uma prática grosseira geradora de sombrias miragens, troça de Papus, repele o lema idealista da analogia do microcosmos com o macrocosmos, considera ilegítima e ímpia a sistematização matemático-cabalista de Wronski; Fernando Pessoa, que só admira Sampaio Bruno entre os seus contemporâneos, segue-o no trilho, atacando espiritistas, ocultistas e maçons menores.

Os dois, e também Teixeira de Pascoaes, sabiam que é no mundo intermediário que tudo se decide, mas que a maioria das suas manifestações não ajudam o homem. Sabiam, sobretudo, que não está lá quem decide. Por não saber isto ou não querer sabê-lo, Teixeira Rego mete-se “no emaranhado de uma floresta de enganos”, entrelaçando ciência da época e ocultismo. O materialismo, fortalecido pela ciência, e a ciência, fortalecida pelo positivismo, dominavam os espíritos. Para homens religiosos, sem Igreja por se terem decepcionado com os modos de intervenção social do clero, o ocultismo aparecia a abrir caminhos para o sobrenatural. Fenómenos parapsicológicos pareciam provar que havia outro mundo intimamente ligado a este. Só muito tarde Leonardo Coimbra descobriu que esse outro mundo não era o que procurava. Como se vê pela Razão Experimental, pratica a observação, a experimentação e a correlação dos fenómenos espiritistas, aplica aos seu estudo o método científico, que se lhe impunha pelo superior grau de certeza conseguido no estudo dos fenómenos físicos. Viria a combater a ciência, já para o tarde, com A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, não porque a dialéctica científica lhe aparecesse agora errada, mas por cousar na antropolatria.

A posição de Sampaio Bruno perante a ciência é bem diferente. Vê nela uma disciplina teológica, mas não a aceita tal como é dada. A noção de inércia, que funda todo o mecanicismo e que Leonardo Coimbra integra na sua cosmologia para afirmar a proximidade de Deus, refuta-a demoradamente, assim como o correlativo cálculo de probabilidades e a noção de zero, sobre que assenta toda a matemática moderna, não pitagórica. Não há inércia; há energia. Não há probabilidade, há angelogia. Não há o nada, há o pleno. O movimento é a espontânea reacção nascida de sucessivas rupturas: pela primeira produziu-se o mundo intermediário; pela segunda, o mundo físico. Tudo, porém, converge para “a transcendente pureza de Deus”.

Mas Pinharanda Gomes prefere a todos Leonardo Coimbra e já sabemos porquê. Ele não ama os desinsulados e tem bons motivos para isso.

Há cinco razões, segundo Abd El-Kader, que impedem o espírito, comparado a um espelho, de receber a verdade. Descreve assim a quarta: “existência de um véu interposto entre o espírito e a verdade, véu que pode interpretar-se como uma crença recebida anteriormente, muitas vezes na infância, por via de imitação, e recebida com uma aceitação favorável; um tal obstáculo mete-se entre o espírito e a verdade, impedindo-o de a receber, repelindo o que seja diferente do que aprendeu por imitação.”

Abd El-Kader era perfeitamente ortodoxo dentro do islamismo. É o aviso de um homem sério. Será, talvez, assim. Mas há mais quatro razões e a terceira delas é a que se define pela “orientação do espírito numa direcção que não é a que leva à verdade desejada”.

Voltamos de novo a pôr o problema do autodidacta. É ele por si só capaz de encontrar a verdadeira direcção? Abd El-Kader dá uma quinta e última razão que é o desenvolvimento da terceira: “a quinta razão, diz ele, é a ignorância da direcção que se deve seguir para obter o que se procura (com efeito, quem procura alguma coisa não pode encontrá-la se não tiver na memória as regras das ciências que conduzem ao objecto desejado, por tal modo que a representação e a ordenação destas regras no seu espírito lhe permitam, segundo um processo secreto bem conhecido dos sábios, encontrar a direcção que leva à verdade)”.

Porque será que, neste escrito, já nos apareceram dois muçulmanos a ensinar portugueses? Não escreveu Pinharanda Gomes dois monumentais volumes a pôr na ordem muçulmanos e judeus? Os primeiros, desde que o Corão os criou, já estão meio convertidos ao cristianismo; os segundos é de tradição que, no dia em que reconheçam Cristo como o Messias, será a redenção de toda a humanidade. Entretanto, vamos conversando uns com os outros a ver se nos entendemos.

Um dia, Hay Benyocdan encontrou onde vivia outro solitário, que tinha fugido de uma ilha próxima, povoada pela humanidade do Corão. Aquele tinha atingido a perfeita visão de Deus, mas não aprendera a língua dos homens. Era como um anjo que só por gestos e símbolos comunica a sua divina ciência. Asal, o novo habitante da ilha, ensinou-o a falar com palavras e, depois, ouviu-o. Espantado com a sua sabedoria, instou com ele para que viesse até à outra ilha ensinar e acordar os seus habitantes adormecidos pela religião e pelos prazeres do mundo. Foi e só encontrou hostilidade. Uns ficaram ainda mais arreigados aos seus hábitos; alguns, mais abertos ao que ouviam, tornavam-se piores porque a sabedoria do autodidacta era veneno que os tresloucava. Os dois filósofos regressaram à ilha, persuadidos por experiência de que a prática exterior da religião era o único caminho que convinha àquela gente. Teixeira Rego, com um gesto displicente, obteve mais tarde e quando quis um diploma que lhe permitia ensinar em qualquer Universidade. Foi-lhe tão fácil obtê-lo como a Hay Benyocdan aprender a falar. Infelizmente, a generalidade dos homens só aceita quem fala a sua própria linguagem.

Pinharanda Gomes nunca quis frequentar a Universidade. Ou o querem como filósofo autodidacta ou, se não o querem, que passem muito bem.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

VERDES ANOS. 08

06-10-2014 09:23

Notas sobre Teixeira Rego[1]

Teixeira Rego é, como Bruno, de quem aliás muito significativamente foi amigo, um pensador obscuro. Pertence ao grupo inumerável daqueles que o positivismo combateu e quis fazer esquecer, embora, por um curioso mas frequente mal-entendido, seja em geral considerado um positivista. A ilusão ou engano de que há pensamento claro e expressão clara – criada e prestigiada pelo iluminismo e pelo positivismo que este preparou, continuada –, ilusão ou engano que sustém a existência de certas seitas pensantes e actuantes, tornou difícil o entendimento do que etimologicamente significa obscuridade do pensamento e do estilo. Entre a coerência de sons, que caracteriza a chamada expressão clara, coerência sempre dependente de uma palavra obscura, e a simpatia de significações que se estabelece nas zonas recônditas e cognitivas da alma humana, não há oposição apolínea de luz e treva, mas gradação especulativa, sem termo, pelo menos sentido, de comparação. Teixeira Rego foi um pensador obscuro, quer dizer, alguém inteligente, alguém que primeiro soube toda a verdade do lugar-comum de que o pensamento só vale enquanto profundo.

Consideremos nele, além do pensador, ou a par dele, o professor, o conversador e o escritor.

Ensinou na extinta Faculdade de Letras do Porto, ali onde ressoava a palavra persuasiva de Leonardo Coimbra. Aí mestrou as disciplinas de História das Religiões, Grego Elementar, História da Literatura Portuguesa e Filologia Portuguesa. Possuía conhecimentos vastíssimos que lhe permitiam ensinar os mais variados assuntos. Houve discípulos que, durante conversas fora das aulas, souberam entrever que pensador se escondia no professor que, na Faculdade, preleccionava somente. Esta Faculdade, a de Letras do Porto, foi criada com o fim de continuar o ensino da Renascença Portuguesa. Só Teixeira Rego, entre os professores que nela ensinaram Literatura, cumpriu tal fim.

Infelizmente nós, os leitores de hoje, dispomos de poucas e breves publicações suas. Ao publicar, fê-lo em revistas e jornais, na «Águia», no «Dionisos», no «Diário de Notícias», no «Primeiro de Janeiro», tendo depois reunido em volumes, intitulados, um de «Nova Teoria do Sacrifício», quase toda a sua colaboração na «Águia», dois de «Estudos e Controvérsias», grande número de artigos dispersos, versando sobre linguística, estilística, literatura, arqueologia, religião, etc. Existe também uma «Pequena Antologia Clássica», em que recolhe textos de autores antigos e recentes, textos que se podem encarar como versões e repercussões literárias da teoria do pecado original. De resto, a meditação do problema do mal, da sua origem e do seu fim, é o que motiva e orienta fundamentalmente o seu pensamento.

De passagem, observemos que a sua colaboração na «Águia» pode fazer luz sobre o autêntico espírito do movimento significado naquele símbolo. Terá de ter em conta as figuras de fundo, de ponderar e meditar a sua acção, quem, no intuito de uma apreensão aprofundada, se proponha estudar qualquer movimento literário ou não literário, de irrecusável efectividade. Assim, lendo neste sentido Teixeira Rego, muito se nos revela sobre as autênticas causas e os verdadeiros fins da Renascença Portuguesa. A teoria da «renascença», que adquiriu superior expressão poética em Pascoais e Fernando Pessoa, recebe em Teixeira Rego o tratamento especulativo que nos permite hoje entrelaçar os nomes do «movimento» e da «revista» em significativo monograma.

Vejamos agora a acusação de positivista, a que já nos referimos, e de ateu, que em geral pronunciam aqueles que falam ou escreveram sobre Teixeira Rego, acusação que, a ser verdadeira, anularia o que acabamos de dizer. Admitamos e concordemos, porém, com o seu inegável materialismo.

A confusão entre materialismo e ateísmo é exterior à filosofia, embora penetrasse no domínio do senso comum por intermédio de professores chamados de filosofia. Se o senso comum fosse, de facto, o bom-senso, toda a gente veria que nada tem que ver uma coisa com outra. Vemos Teixeira Rego preocupado em descobrir os segredos da matéria, mas essa interpretação visa alcançá-la no grau em que já não aparece como sinal negativo de Deus.

A acusação de positivismo parece-nos derivar da sua oposição à metafísica. Tal oposição não traz, porém, o sinal do positivismo. O problema que obsidiava o pensador era o problema do mal. Várias vezes dá a entender que a metafísica, visando separar o espírito das suas condições psíquicas e somáticas, contribui assim para o aumento da dor no mundo do homem e da natureza, contrariando a evolução natural dos seres. Representa, com efeito, a metafísica, sempre uma acção violenta contra a natureza, que, hoje, se encontra referida particularmente a cada ser. E, reflexamente, atribui-lhe a origem de todos os nossos males. Há, porém, que distinguir cuidadosamente entre mal e sofrimento, entre malefício e corrupção, a fim de evitar que, por inversão e subversão dos termos, se dêem novos malefícios.

Não nos surpreende a incompreensão que aqui referimos para com o inteligente, obscuro pensador. Raramente não atinge os homens superiores. Atinge-os, com o propositado esquecimento, pois se vemos citados e elogiados hoje, em trabalhos feitos por linguistas e outros especialistas, homens como Leite de Vasconcelos, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Adolfo Coelho, filólogos talentosos mas sem génio, raramente lemos o nome de Teixeira Rego. Vemos frequentemente os homens superiores acusados de defenderem teses e assumirem posições que toda a vida combateram. Assim acontece ao pensador que ousa e sabe pensar na sua língua, mas apresenta nas línguas diversas dos diversos leitores o que foi pensado na origem. Na língua dos positivistas se exprimiu demasiadamente o autor da «Nova Teoria do Sacrifício».

Todavia, o seu estilo, correcto, sóbrio, sombrio e grave, menos descritivo do que narrativo, lembra o dos ingleses, particularmente o do americano Edgar Pöe. Profunda, se entrevê, em Teixeira Rego, intérprete original e representante da nossa tradição atlântica, a influência dos pensadores da ilha, como, aliás, acontece também com o autor das «Notas do Exílio». Com eles e também com Max Müller adquiriu aquele saber filológico, para o qual possuía excepcionais dons. Temos, por isso, de encará-lo mais cingidamente neste aspecto.

Para Teixeira Rego, a filologia era fundamentalmente uma arte de decifrar. Quem escreve, inscreve, grava, grifa, cifra, porque o escrito nunca é expressão e pressupõe sempre o oral e o auditivo, numa gradação em que apreendemos o conceito de personalidade e tradição. Descobrir a personalidade e a tradição que se escondem e se revelam ou velam repetidamente, constituiu o fim da investigação literária de Teixeira Rego. Assim aconteceu com o problema da personalidade de Bernardim Ribeiro, que ele dizia ser a de Cristóvão Falcão, apoiando a tese de Delfim Guimarães, como também a do filósofo Leão Hebreu. Estes três seriam heterónimos do judeu Abarnabel, nome que é anagramático de «Bernardim».

O problema dos heterónimos que, como é sabido, tem ocupado para com Fernando Pessoa os modernos investigadores da literatura, relaciona-se com o problema dos pseudónimos. Se, no caso de Fernando Pessoa, este houvesse sido considerado também um heterónimo, diversa teria sido a posição do problema. De resto, personalidade é conceito somente vivo e fecundo dentro de uma teoria evolucionista e, por isso, não nos surpreendem as posições a este problema dadas pelos passadistas.

Evolucionista, Teixeira Rego, da nossa literatura, pôde apresentar uma visão só comparável à de Teófilo Braga. Não copiou, para isso, os métodos lá de fora, nem as fórmulas de decifração que utilizou podem ser aprendidas em qualquer manual estrangeiro de interpretação literária. Os seus estudos de literatura, na sua brevidade e sucintez valem, por isso, muito mais do que muito trabalho extenso. A divisão da história da nossa literatura em períodos paralelos aos que dividem a história da literatura francesa, falsamente embandeirada de universal, não se coaduna nem explica os actos pelos quais evolui o génio do povo. Demonstrou Teófilo Braga que na história da língua e da literatura, no campo evolutivo das formas políticas, na arte e nas ideias, combinam-se sempre dois elementos – um, íntimo, orgânico, criador, outro, exterior, mecânico e separativo. Do primeiro, a apreensão da evolutiva forma somente se alcança por entre dificuldades e erros. Aqueles que não querem errar, porque temem o perigo, preferem fazer história, à sombra protectora do universal fictício, embora, no plano da sentimentalidade subjectiva se mostrem contra os inimigos da pátria, os quais, por vezes, se chamam por um nome derivado deste vocábulo. O bosquejo de «História da Literatura Portuguesa», que Teixeira Rego publicou na «História de Portugal» de Damião Peres, é, na orientação, comparável à «História da Literatura» de Teófilo Braga. Cremos que isto já sugira ao leitor uma ideia deste trabalho.

Impossível referirmo-nos aqui a tudo o que o pensador português escreveu. Não deixamos contudo de observar que essa obra segue um movimento unitário, emerge de uma doutrina única. É a própria doutrina pensada e atingida na meditação audaz e concentrada do cosmos, do homem e de Deus. Alguns elementos demos que pretendem ser introdutórios. Terminamos estas notas, com o desejo e a esperança de que tenham, porventura, a virtude de levar alguém a ler e a estudar a infelizmente restrita obra do filólogo esquecido e do filósofo desconhecido que foi Teixeira Rego.  

 

António Telmo     

 


[1] Diário de Notícias, Lisboa, 29 de Setembro de 1955.

 

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