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CORRESPONDÊNCIA. 09

29-04-2014 10:27

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 04

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 03



Ler mais: https://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/news/correspond%c3%aancia-08/

 

Lisboa, 30 de Março de 1971

 

Meu caro António Telmo:

 

Motivo superior à minha vontade obriga-me a escrever-lhe de repente. O António Telmo foi citado por mim na palestra que efectuei a 23 de Março sobre “Filosofia e Filologia” no Círculo de Estudos Filosóficos, promovido e dirigido por António Quadros. Nas conversas das nossas tertúlias muitas vezes rememoramos o nome do autor da “Arte Poética”, infelizmente afastado de nós. Não sentirá o António Telmo o efeito da nossa invocação?...

Ser-nos-ia agradável que António Telmo viesse a Lisboa falar sobre “Filosofia e Kabala”. Sei que hoje conhece bem esse assunto, especialmente na feição sefardim. Lembro-me das nossas conversas sobre interpretação kabalista das doutrinas de Freud sobre a polaridade dos sexos e a mediação da libido, o prazer e a morte. Ultimamente, ao retocar nuns textos de Kant, verifiquei que a psicanálise descobre nos estudos do grande filósofo a profundidade do subconsciente judeu. Não deverá ser novidade para a erudição alemã. Certo é, porém, que o pietismo cristão em que o filósofo foi educado pela mãe admite a tradução para o hassidismo polaco. A leitura da obra de Martin Buber permite a fertilidade da comparação.

Kant dá, efectivamente, expressão laica a certas teses do judaísmo. Fichte, Schelling e Hegel são mais goim, pagãos ou cristãos. É útil rever e reler a obra de Kant.

Volto a pedir-lhe que reconstitua ou elabore o seu ensaio sobre a interpretação filosófica de “O Encoberto” de Sampaio Bruno. Vamos dactilografá-lo e editá-lo. Usaremos da melhor interferência junto da Sociedade de Expansão Cultural.

Espero publicar um opúsculo intitulado “Mestrado e Magistério”. É um escrito de ocasião, fogoso e piramidal. Protesto contra o mal que se diz na imprensa sobre ensino esotérico e exotérico. Não sei desistir. Pinharanda Gomes pôs em foco o meu nome ao editar “Liberdade de Pensamento e Autonomia de Portugal”. A querela da filosofia portuguesa ainda não terminou. Quando se pronunciará sobre o problema, António Telmo?

Os seus amigos esperam.

Eu abraço-o, mando cumprimentos a sua mulher e beijos aos seus filhos.

Creia sempre na boa amizade do

Álvaro Ribeiro

 

DOS LIVROS. 08

28-04-2014 16:47

De um caderno de apontamentos. 03

 

N’Os Cavaleiros do Amor ou a Religião da Razão, Sampaio Bruno mostra-se sempre mais interessado em tornar evidente que o amor, tal como foi vivido pelos poetas medievais e renascentistas, é uma cifra de anti-Roma e daí vai que neles vê uma espécie de revolucionários ao modo moderno, quando por este se entenda a realização do Reino de Deus na República dos homens. Amor é anti-Roma e a Inquisição a monstruosa máquina trituradora do amor. Não dá Sampaio Bruno quaisquer indicações, pelo estudo dos poemas, de qual seria o pensamento, «escondido nos véus dos versos» que estaria na origem da oposição à Igreja de Pedro e aos seus dogmas, talvez porque achasse que disso tinha dito o suficiente na sua Ideia de Deus

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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blicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)



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DOCUMENTA. 02

25-04-2014 10:24

Introdução

Pedro Martins

 

"Quando vim do Brasil, usava barba. E o ministério de Veiga Simão pediu-me para ir fundar a escola do Redondo. E eu vim. Nesse tempo ainda se fundavam escolas -- agora abrem-se escolas. E quem ia fundar uma escola tinha, também, de escolher os professores, etc. Quando lá cheguei, apareceram-me os políticos da terra a impor os professores, mas eu não deixei. Entre os que escolhi, pelo menos dois eram contra a situação, o que, aliado às minhas barbas, fez com que isto chegasse ao Governador Civil e, depois, ao ministério. Lá fui eu a Lisboa. O director-geral perguntou-me: «Você é a favor da situação?» E eu disse: «Não, sou contra.» E ele perguntou-me o mesmo que vocês agora: «Mas pertence a alguma coisa?» E eu disse que não. «Então, volte lá para o Redondo, que tem o nosso apoio», respondeu-me ele. A partir daí não tive mais problemas."

António Telmo in "António Telmo, O Último Cabalista", entrevista à revista LER - Livros e Leitores, n.º 41, Inverno/Primavera de 1998. 

 

Na conversa mantida com Francisco José Viegas e Diogo Queiroz de Andrade, de que acima se retirou um excerto bem significativo, António Telmo conta-nos ainda como, em 1965, anos antes da "saga" vivida no Redondo (vila alentejana onde, nas suas próprias e impressivas palavras, fundara a primeira escola pública democrática de Portugal, ainda antes do 25 de Abril), o célebre astrólogo e quirólogo Hórus, por entre vaticínios que o porvir confirmaria do maior rigor, lhe afirmara ser ele o único homem que podia derrubar Salazar, mas logo o instando, porém, a que o não fizesse. 

O 25 de Abril veio surpreender Telmo quando este, de novo a morar em Sesimbra, concluía o estágio do magistério em Almada. Nessa manhã, chegado ao portão da Escola D. António da Costa, o filósofo, desconhecendo o que se passava no país, deparou-se com um piquete formado por alunos, que logo lhe franquearam a entrada: "Este pode entrar", alguém disse, nele reconhecendo, porventura, o extraordinário didacta que já Agostinho da Silva, após visita ao Redondo, tanto elogiara, no tom superlativo que uma carta datada de 4 de Maio de 1973, e dirigida ao próprio Telmo, nos deixa perceber:

 

Já para não falar de mim, Maria Violante veio entusiasmada com sua Escola – a da liberdade, da familiaridade, da criação. Acho que há que acrescentar o louvor da sua pedagogia de gente adulta, inteligente e corajosa, coisa rara por estes lados. Suponho, pelo que vimos, que sua Escola será do melhor que jamais se fez. Para outro dia, que espero não longe, previno – e gostaria de ver a de Borba.

 

Nesse mesmo dia inaugural da Democracia, António Telmo regressa ao plaino transtagano, levando consigo sua Mãe, que vivia na camonina Piscosa. Tempos depois, em 1975, trará a Sesimbra o recém-formado Grupo de Cantadores do Redondo, onde já então pontificavam os irmãos Salomé, Janita e Vitorino, e o proverbial, inseparável Armando Carmelo. Pelas ruas da milenar póvoa arrábida soaram então, noctívagos, a Grândola, Vila Morena e os cantos solares do Baixo Alentejo, num périplo com prévia estação actuante no velho Grémio, então apinhado de gente, e a que muitos populares logo se juntaram, de braço dado. O regresso ao Alentejo fez-se pela alvorada.

Tempos febris, dias fervilhantes, estes, de que também nos ficou o rascunho, manuscrito pelo punho télmico, de uma declaração de apoio à Junta de Salvação Nacional, documento que, pela primeira vez, aqui se torna público. Não sabemos se a projectada declaração chegou a ser comunicada; não sabemos sequer se o seu esboço teve alguma sequência. Mas ficamos hoje a saber onde estava António Telmo no 25 de Abril.

O caso não é de estranhar. Já em 1962, quando leccionava na Escola Industrial e Comercial de Beja, Telmo se vira exonerado, conforme acta de 31 de Janeiro daquele ano, do cargo de Adjunto do Director dos Serviços de Concursos Literários do Centro da Mocidade Portuguesa. Motivo: 14 faltas injustificadas, pois que o filósofo se recusasse sistematicamente a colaborar com aquele Centro, deixando de comparecer a aulas que eram obrigatórias. A bravata trouxe-lhe ainda outras consequências desagradáveis: não haver obtido, como classificação de serviço, no ano lectivo de 1961-62, mais do que um sofrível "Suficiente", segundo reza uma outra acta, agora do Conselho Escolar daquele estabelecimento, de 11 de Agosto. Esta classificação era raríssima: nos anos anteriores sempre Telmo fora classificado com um "Bom"...

A acta de 31 de Janeiro transporta uma data simbólica. Evoca-nos, nesse mesmo dia do calendário, a "noite de esperança, noite de angústia, menos caliginosa e turva do que o claro dia subsequente, ensolelhado, em demoníaco sarcasmo", consoante Sampaio Bruno, n'O Brasil Mental, nos descreve as horas que perpassaram o frustrado golpe republicano portuense de 1891, na sequência do qual o filósofo d'A Ideia de Deus parte decisivamente para o exílio, na errância fundadora de uma viagem de que a Escola Portuense há-de emergir, entre nós, como o lugar supremo da Liberdade.

Em 1974, em Lisboa, diversamente do que no ano fatal de 1891 sucedera no Porto, o dia não desmentiu a noite; e a manhã que o inaugura há-de merecer a Telmo a elíptica alusão de um poema, somente saído a lume no volume, o terceiro, dos Cadernos de Filosofia Extravagante, que, titulado com o seu nome, rendeu homenagem ao filósofo no ano sequente ao da sua partida:

 

            A família é de noite quando se dorme

            Todos num sono só, juntos lá onde

            De Deus se toca a sua sombra informe

            Onde de nós secreto Deus se esconde.

            E como há crianças a dormir, o esplendor

            Diurno dos seus olhos brilha puro

            Num magnífico ponto interior

            Que é o reflexo de Deus no escuro.

            Mas amanhã há Sol. vamos passear a sós

            Na manhã tão nítida e clara, nesta manhã de Abril

            Vamos trazê-la para dentro de nós

            E levá-la para o sono obscuro e vil

           Tão límpida como uma gargalhada infantil.

 

____________

 

 

                                                                À

                                                                Junta de Salvação Nacional

 

Um grupo de democratas de Sesimbra vem manifestar o seu incondicional apoio e adesão ao programa político apresentado por essa Junta ao país.

                                O grupo de democratas:

                                António Telmo Carvalho Vitorino    

                                Aurélio de Sousa

                                Manuel Pereira Crespo    

                                António Baptista

                                Alfredo Marinheiro Cândido        

                                João Pereira Ramada Crespo

                                Augusto Cunha Pinto Covas

                                Manuel José Alves Pereira    

                                João António Carapinha Chagas

 

CORRESPONDÊNCIA. 08

24-04-2014 10:39

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 03

 

Lisboa, 16 de Fevereiro de 1971

 

 

Meu caro António Telmo:

 

De há muito que tenho desejado falar consigo. Faz-nos falta a sua convivência em Lisboa. Se no próximo domingo, dia 21 de Fevereiro, estiver o dia esplendoroso, descerei até Sesimbra depois do almoço, e à tarde irei bater à sua porta, para o abraçar, como também para cumprimentar sua Mulher e beijar seus filhos.

Não irei só, porque estou casado desde o dia 9 de Janeiro. (Acompanhar-nos-ão, se quiserem, o Germano, a Conchita e a Mónica). A Maria Júlia, leitora da “Arte Poética”, deseja felicitar o autor e conhecer o meu melhor amigo.

Esperando que motivo de força maior não seja impedimento a este projecto que lhe comunico, limito-me por agora a enviar-lhe um cordeal abraço e a subscrever-me com muita estima

Álvaro Ribeiro

 

DOS LIVROS. 07

22-04-2014 10:58

De um caderno de apontamentos. 02


Enquanto preparava a sua tese de doutoramento sobre Teixeira de Pascoaes, António Cândido Franco sonhou 97 vezes com o poeta. 95 sonhos foram provocados; o primeiro e o último espontâneos. Antes de adormecer deliberava sonhar com o poeta e o sonho acontecia. Mas o que é mais sensacional ainda é que tinha, enquanto dormia, plena consciência de que estava sonhando. O relato dos sonhos, feito num estilo estupendo, constitui a segunda metade de A Arte de Sonhar; a primeira metade vai de Freud até Novalis, por André Breton e Jean Paul, à procura da melhor teoria sobre o sonho que melhor funde a prática da segunda parte. Sente-se, porém, que por este detrás de tudo, poderá estar Carlos Castaneda. O autor não o diz, como não diz que, depois de certos sonhos com Pascoaes, acordava em pânico. Disse-o mais tarde, quando da apresentação do livro numa livraria em Évora, O Som das Letras.

As palavras de Carlos Castaneda que digo poderem estar por detrás da aventura onírica de António Cândido Franco são as seguintes:

 

«Vou ensinar-te aqui mesmo o primeiro passo para o poder. – disse D. Juan, como se me estivesse ditando uma carta – Vou ensinar-te como tornar lógicos os sonhos.                           

Perguntou-me, olhando-me nos olhos, se entendia o que ele queria dizer. Não o tinha compreendido. Soava-me a coisa contraditória. Explicou que tornar os sonhos lógicos significava ter um domínio conciso e pragmático da situação geral de um sonho, comparável ao domínio que uma pessoa tem dos seus próprios actos, decidindo isto ou aquilo.

– Tens de começar por uma coisa muito simples. Esta noite, nos teus sonhos, deves olhar para as tuas mãos.»

 

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)

 

VERDES ANOS. 04

10-04-2014 00:54

Dando continuidade à publicação dos escritos dispersos da primeira fase da produção télmica, o projecto António Telmo. Vida e Obra recupera hoje um artigo importantíssimo que António Telmo deu à estampa no Inverno de 1965, na revista Espiral, de que foi director o seu amigo e condiscípulo António Quadros. Tomando como ponto de partida um estudo, então recente, de Natália Correia, este artigo constitui um precioso documento da visão que o filósofo projecta sobre o surrealismo, e motiva renovado diálogo com António Cândido Franco, membro do nosso projecto que tem estudado profundamente o movimento surrealista, e que agora nos comenta o texto télmico.

Arte Poética e Surrealismo[1]

 

«Poeticamente as palavras funcionam como elementos que se vão combinando para que seja atingida a sublimação do idioma universal.

Um galináceo com uma estrela no bico é um absurdo. Mas um anjo com uma estrela na fronte é uma fácil relação de coerência.

O que torna insólito o exemplo do galináceo é analisarmos separadamente. Quanto ao anjo, nada mais natural do que figurá-lo com uma estrela na fronte em virtude dos dois objectos serem expressões de mundos afins. A conjugação de elementos do mesmo grau torna-se supérflua no sentido activo da poesia, visto que mais nada implica além do reconhecimento dos sinais duma harmonia independente do poeta».

Estas linhas foram tiradas do opúsculo «Poesia de Arte e Realismo Poético». Autora: Natália Correia. Esta extraordinária poetisa não temeu submeter-se à «prova real». A prosa é a pedra de toque do poeta. Há artistas – e dizemos artistas a pensar também nos pintores, escultores e músicos –, que manifestam nos escritos em prosa uma incompreensível incapacidade para dizer seja o que for de menos escolar e universitário, convencidos talvez de que com o tipo de linguagem muda o «objecto» da primordial interrogação. No entanto, grandes poetas, como Dante e Pessoa, grandes pintores, como Dali e Klee, grandes músicos, como Wagner, deixaram notáveis escritos em prosa, nos quais a inteligência veio dar mais fundo e positivo sentido a tudo quanto haviam eles intuído no domínio do sonho.

Nas linhas citadas, Natália Correia marca a oposição entre dois tipos de poesia bem definidos, mas nós perguntamo-nos se, ao estabelecer a oposição apenas no domínio formal (relação absurda de imagens-relação coerente de imagens), não criará um intervalo ou um vazio no qual se pode dar a inversão do argumento. Assim, alguém poderá vir dizer que à produção do absurdo não se liga nenhum sentido activo, já que as palavras caem, como cartas de jogar, umas ao lado das outras, segundo relações meramente ocasionais, e nem sequer o dizer-se que não há acaso enfraquece a argumentação oposta, na medida em que transfere para o domínio do inconsciente e, portanto, para lá do indivíduo, a actividade criadora que a este se pretende ligar.

E com efeito, os numerosos poetas surrealistas, que utilizam o absurdo, não podem furtar-se à crítica vulgar, mas justa, que os acusa de assim escreverem por não terem nada que dizer ou transmitir. As poesias modernistas que pululam nas páginas dos diários, das revistas e dos livros são, na verdade, manifestações indubitáveis de uma total inércia da imaginação. Deve dizer-se, porém, que Natália Correia não ignora isto, ao referir-se àqueles «poetas líricos que premeditam a defesa do princípio conservador (de que são sentinelas) utilizando o idioma surrealista sem assumir as responsabilidades implícitas no acto de fé surrealista».

A tese que gostaríamos de defender contra a própria Natália Correia seria a de que ela não é surrealista, embora utilize processos da escola de André Breton. Tal como este o definiu, o surrealismo consiste, fundamentalmente, em servir-se da poesia como método psicanalítico, e, de facto, é nesta particular e original relação com o freudismo que a «escola» conquista uma autonomia que permite distingui-la de outras correntes literárias também radicadas nas ciências ocultas. Dir-se-á que a poesia foi sempre um método psicanalítico, de descoberta do inconsciente, mas não se pode dizer que o fosse no sentido especial que o método tem na psicologia de Freud. O poeta deve, pois, como o próprio Breton explica num dos Manifestos, criar em si um estado de completa passividade, depois do que deixará cair sobre o papel, uma após outra, as palavras, sem qualquer preocupação de estabelecer entre elas coerência lógica. O sentido que por acaso venha a formar-se equivalerá a uma autêntica mensagem do inconsciente, cuja manifestação apenas esperava, para dar-se, que se quebrassem as resistências constituídas pelas correntes mentais dominantes na consciência.

Pela repetição deste exercício, o poeta tornar-se-á um médium, um visionário, capaz de comunicar e receber pensamentos a distância, de ver nos acontecimentos exteriores significados e intenções secretas que passam normalmente desapercebidas. Eis no que consiste, nas suas linhas gerais, o surrealismo. Como os dons mediúnicos vivem em estado latente em todos os homens, e como o seu desenvolvimento depende de determinados exercícios, o surrealismo aparece como o comunismo da arte, qualquer coisa que está ao alcance de toda a gente, de quantos queiram sujeitar-se aos métodos preconizados por André Breton.

A «arte poética», quando muito, pode aceitar o surrealismo como um dos seus momentos, na linha daquilo que nela aparece designado como «descida aos infernos». A própria desintegração de imagens é elaborada em função de uma actividade interior. É evidente que tal descida implica a produção de estados anormais em que se anula a vigilância habitualmente exercida pela consciência. O ser é transportado para zonas desconhecidas e é rompido o equilíbrio mantido pelo centro corporal de referência. Mas é necessário que ele se restabeleça ininterruptamente em função dos novos elementos que vão surgindo, isto é, que um ponto se afirme em que o espírito concentre uma energia incorruptível. Na lascívia, na viscosidade, no pegajoso que caracterizam os círculos inferiores é preciso que o espírito actue como um momento de absoluta agilidade. E é, por isso, que a «descida» deve ser precedida de determinada preparação. No anel de Aladino ou no ramo de ouro de Eneias vemos nós símbolos dessa energia incorruptível.

Em termos menos vagos, diríamos que nela reside a faculdade de nomear todos os seres, todas as aparências, todas as aparições. Já na vida comum verificamos que só nos assusta aquilo que, apanhando-nos de surpresa, por momentos se agita no campo da consciência sem um nome, pelo qual o conheçamos e neutralizemos. É o caso, por exemplo, das alucinações. Caminho alta noite por uma estrada sem ninguém e, de repente a sombra de uma árvore toma uma forma estranha e desconhecida. Detenho-me hirto de pavor. O que é? Qualquer coisa que está lá fora mas dentro de mim, qualquer coisa que está cá dentro, mas que aparece lá fora. Fico incapaz, dominado pelo medo, de fazer aquilo que realmente quero: – encontrar um nome para aquela disformidade. E quando, recuperada a serenidade penso «a sombra da árvore» tudo se repõe como numa superfície subitamente alterada. Aqui, é certo, foi pela redução a um esquema habitual da consciência que se exerceu o acto de nomear. Mas se da particular imagem da árvore alargamos a todo o mundo sensível a noção de alucinação, conforme o pensamento de Taine que identifica as percepções a alucinações intensas, logo a relação se inverte no sentido de que à função da linguagem, que semeia todas as imagens percebidas em estado alucinatório, corresponde uma agilidade superior do espírito.

Por outro lado, as palavras não são substância fixa senão no papel. Elas progridem produzindo significações que são novas palavras, capazes de nomear, para além do visível, todo o invisível. O que é preciso é manter a potência de conhecer pela palavra até nos estados anormais que correspondem a uma passagem pela morte. Esta faculdade não está necessariamente ligada ao cérebro, a não ser quando temos perante nós o mundo imediatamente sensível. A relação do interior com algo que lhe é exterior será substituída, por meio de uma potenciação, no domínio da vida interna, por uma relação cujos termos correspondentes são o subjectivo e o objectivo, de modo a guardar entre eles uma distância «triangular». Como Bergson demonstrou, o erro comum a idealistas e realistas consiste em raciocinarem dicotomicamente, ao não verem que o representado e o representante irrompem ambos de uma actividade que os transcende.        

Voltando a Natália Correia, de quem tivemos de nos afastar, tudo indica que ela, até no passo criticado, procura o sentido activo da poesia e que é, por isso mesmo que defende, contra certo tipo mole de lirismo, os processos metafóricos introduzidos pelos surrealistas. Com efeito, repondo o argumento nos seus primitivos termos, e integrando neles os elementos dados nas linhas anteriores, não há dúvida de que quanto mais audacioso for o poeta, ligando as imagens mais antagónicas, tanto mais penetrará naquele mundo de formações internas segundo uma relação que não é de «reconhecimento» mas de «conhecimento». Esta atitude, porém, é inversa à de Breton. As palavras não vêm do «outro», como acontecia no romantismo e nos seus sucedâneos, através do veículo da «inspiração». As palavras, para Natália, são do poeta, que as vai formando nos sucessivos momentos de criatividade. De resto, todo o escrito «Poesia de Arte e Realismo Poético» é o desenvolvimento deste ponto de vista.

Seguindo talvez o ensino de Wolfgang Kaiser, que recebeu na Faculdade de Letras de Lisboa, o crítico e poeta David Mourão-Ferreira desenvolveu, em nítida polémica com outros críticos, a tese de que a literatura, – em especial a poesia –, é fundamentalmente uma técnica de palavras. O livro de Wolfgang Kaiser «Análise e Crítica da Expressão Literária» é, porém, um livro de técnica rudimentar, onde aparecem desfiguradas as palavras portuguesas e mal ligadas umas com as outras. Para além desse ensino, David Mourão-Ferreira pode ter recorrido a lições de poetas estrangeiros, como Verlaine, Valéry, Edgar Poe. O autor do «Corvo» que, como toda a gente sabe, provocava em si estados psíquicos anormais por meio de agentes líquidos-ígneos exteriores, explica, todavia, a realização daquele poema como se tivesse prescindido da inspiração e recorrido apenas a processos externos de disposição e composição de palavras. Não podemos deixar de concordar com David Mourão-Ferreira num ponto essencial. Importa, com efeito, estar atento, durante a leitura crítica dum texto, aos movimentos das palavras, tradicionalmente designados por tropos. E importa, não porque a poesia seja só técnica, mas porque aos tropos correspondem alterações de significação.

O tropo é, na exacta definição de Álvaro Ribeiro, o movimento que o verbo imprime a um substantivo. Ora, na poesia dum Junqueiro ou dum Pascoais, dado um substantivo, ele permanece nas suas várias transfigurações e é nessa permanência que reside o que poderíamos chamar coerência. A «luz», por exemplo, mantém-se através da «oração», embora sofrendo fantásticas metamorfoses, num movimento que vai de contrário a contrário. A categoria de substância desaparece com a poesia modernista. O leitor põe-se perante esta como perante uma adivinha que, como todos sabemos, é uma construção mental em que nos são dados apenas os atributos de um substantivo oculto. Se agora pensarmos que, nos mais altos exemplos desta poesia, a palavra que se pretende adivinhar não é um substantivo, mas um verbo expresso por múltiplas relações de múltiplos substantivos, teremos uma ideia da transmutação mental que o modernismo veio produzir. Natália Correia utiliza um e outro processo. «Passaporte» e «Dimensão Encontrada» pertencem ao segundo caso; «Comunicação» e «Cântico do País Emerso» ao primeiro caso.

Não basta, portanto, ligar imagens desconexas, se faltar o profundo nexo interior, oculto, agente. Este nexo é menos um significado do que o próprio espírito do poeta, solto e ágil, que, depois de se ter separado de imagens ligadas a percepções exteriores, manifesta o seu poder extraindo de si o elemento imagético, animando-o, vivificando-o, divertindo-se até estabelecer relações absurdas para se reflectir na sua própria liberdade. O modernismo diz: «Todos os objectos são poéticos». Perante este postulado, a poesia de Fernando Pessoa, conforme a aguda análise de Natália Correia, mostra-se superior à de Teixeira de Pascoaes, «restringida por um vocabulário eleito».

Todavia, a crítica, aliás inteligentíssima, que a ensaísta faz ao «saudosismo», pode voltar-se contra o «surrealismo», pelo menos contra o surrealismo de Breton. Vimos já como o autor dos «Manifestos» confia à poesia o processo de restauração do homem nos dons paradisíacos. Com efeito, é evidente que, no estado de queda em que vive, o homem como potência mediúnica é inferior à mulher, à criança e aos animais. Os cães ou os gatos, os insectos ou as aves possuem faculdades de premonição, instintos de orientação e outros dons telepáticos que só raros homens possuem. Toda a natureza comunica. É possível imaginar um espaço remoto, ao qual aludem os mitos de todos os povos, em que o homem não se encontrava nesse estado de inferioridade, antes exercia, por uma prerrogativa especial e espontânea do seu ser, análogos mas superiores poderes sobre as restantes naturezas. A metapsíquica veio mostrar que tais poderes estão latentes no homem, que pode desenvolvê-los por meio de determinadas técnicas. Para Breton, como também já vimos, uma dessas técnicas será a poesia. Para Pascoais, a aquisição desses poderes reintegrar-nos-ia no estado edénico perdido que a saudade recorda.

É esta uma visão cíclica da vida da humanidade que não explica a necessidade da queda e que não justifica o pecado original. Algo deve existir em nós que constitua o elemento da liberdade, quer dizer, algo que actua como um princípio de livre decisão, sem o que teremos de negar-nos o espírito e de pensarmos o nosso ser apenas como natureza e a sua evolução como um processo mecânico. De tal modo é assim que no caso da submissão passiva a uma técnica esse elemento surge e se afirma activamente pela escolha da técnica apropriada que catalizará a natureza nas suas reacções intrínsecas. Todavia, aquilo que melhor define tal actividade é a «separação», movimento em que nos vemos como outros, como algo que é um desconhecido e que procuramos dominar intelectualmente, segundo as várias categorias que constituem o «corpo científico». Momento ilusório, mas necessário, em que o homem se sente como poder de separação, deverá ser transcendido, não pela negação de si deixando-se absorver na primitiva unidade originária, mas elevando-se a uma potência em que é o corpo do próprio que aparece como outro, naquela relação a que José Marinho chama «cisão extrema». Aqui, a separatividade é interna e as categorias científicas têm de ser substituídas por categorias lógicas, conforme ficou explicado anteriormente. É evidente, porém, que a separação do próprio corpo implica que do momento de vigília que caracterizava a relação científica se passe para o momento do sonho e da morte. Era no que pensava o poeta, quando escreveu:

 

No meio do caminho da vida

Encontrei-me perdido numa selva escura…

 

António Telmo



[1] Espiral, ano II, número duplo 8/9, Inverno de 1965, pp. 119-122.

 

____________

Comentário

António Cândido Franco

Publicou António Telmo um curto texto chamado “Arte Poética e Surrealismo” no número duplo 8/9 da revista Espiral (Inverno de 1965, pp. 119-121). Basta o título para o texto se posicionar duma forma singular no conjunto da obra do autor. Digo-o não pela primeira parcela do letreiro, reconhecível em tantos outros momentos do itinerário do seu autor, mas pelo segundo segmento, relativo ao surrealismo. À arte poética acabara António Telmo de dedicar a sua estreia em livro, em 1963, Arte Poética; já antes dera a lume um conjunto de artigos que manifestavam o seu interesse por tudo aquilo que respeitava à linguagem verbal, da gramática à retórica, da génese e natureza da palavra à poesia. Daí os “problemas filológicos” com que abrirá o livro de 1963. Sobre o surrealismo, ao invés, que eu dê notícia, nenhum sinal de interesse anterior, a menos que se aceite o terceiro ponto do segundo capítulo de Arte Poética, dedicado às “descidas ao reino das sombras”, como um diálogo críptico com as mais conhecidas teses do surrealismo. O último período do ponto tem matéria mais do que suficiente para justificar a suposição. Diz assim: Se a identificação da concepção do “inferno” com a teoria real do subconsciente e do inconsciente puder ser mantida, cremos que os grandes poetas do passado terão alguma a dizer-nos que nós mal sabemos.

Regresso ao texto de 1965. Abre ele com a citação de três parágrafos dum opúsculo de Natália Correia, Poesia de Arte e Realismo Poético, publicado por Mário Cesariny numa colecção chamada “A Colecção em 1958”, e onde o editor publicou textos de António Maria Lisboa, de Luiz Pacheco, de Virgílio Martinho, de António José Forte, de Manuel de Lima, de Francisco Sousa Neves, de Jean Schuster (em co-autoria com Gérard Legrand) e dele próprio. O texto de António Telmo posiciona-se pois, ao menos num primeiro nível, como um comentário do texto de Natália, que retoma com desenvoltura as teses de Breton sobre aquilo que na actividade poética supera o mero plano literário. É o que a autora chama a realidade da imaginação, ou o realismo poético iluminador da vida, por contraste com o valor artístico da poesia de arte, que a cristaliza. A tese que António Telmo defende no texto (Natália Correia não é surrealista, embora utilize processos da escola de André Breton), e que lhe permite um excelente excurso naquilo em que mais se sente à vontade, a teoria da palavra e sua ligação às potências mediúnicas do espírito, parece-me sobretudo recorrer aos textos mais antigos, mas também mais conhecidos, de André Breton. Apesar de nunca citar fontes, o Breton que o autor faz comparecer no seu texto é o do primeiro manifesto do surrealismo de 1924 e textos adjacentes como Poisson soluble. Não sei se António Telmo no momento em que escreve o texto, o que deve ter acontecido por volta de 1964, pois o livrinho de Natália Correia terá sido publicado já no início da década de 60 (o opúsculo, de trinta e duas páginas, não tem data), tinha conhecimento dos grandes textos publicados por Breton na década de 50, “Du surréalisme en ses oeuvres vives” (1953) e o livro L’Art Magique (1957). Se os conhecia, não deixa transparecer, ao menos na refutação que faz do surrealismo, já que no resto, naquilo que é o “nexo oculto” e operativo, sem o qual não há reintegração no estado edénico, não deixa de ser admirável a identidade dos seus propósitos com esse último Breton. Se assim é, pode-se defender em relação ao texto de Telmo uma tese idêntica àquela que o autor avança para Natália Correia – a arte poética de António Telmo é surrealista, mau grado a refutação que da escola (de 1924) faz.

Uma tal tese, apesar do tom assertivo, é para ser tomada como ponto de partida dum reconhecimento mais vasto, dum encontro de potências em estado alterado, e nunca como uma mera habilidade dialéctica. É de resto o que me parece suceder na tese quase provocatória de Telmo sobre Natália, em que o regime onírico da ruptura, isso a que ele chama “cisão extrema”, indispensável para se contactar o automatismo psíquico, domina sobre o da ordenação diurna da arte, que estabelece os códigos semiológicos e sociais, religiosos incluídos, que vampirizam no humano as potências telepáticas da alma e o fundo cratiliano do verbo.

 

1 de Abril de 2014

CORRESPONDÊNCIA. 07

08-04-2014 23:05

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 02

 

3/ III / 1964

 

Meu caro António Telmo:

 

 

Recebi e agradeço a sua “Arte Poética”. Já a li duas vezes. Considero-a como a obra mais original de filosofia portuguesa que se publicou depois da “Teoria do Ser e da Verdade”.

O seu livro tem dado motivo aos mais elogiosos comentários de tertúlia. Agradou deveras. Vamos a ver como será recebido pela crítica de imprensa.

Esperamos que o António Telmo venha a Lisboa por ocasião de férias da Páscoa; então conversaremos, como convém.

Muito gosto pela sua atenção, envio-lhe um abraço amigo.

Álvaro Ribeiro

DOS LIVROS. 06

03-04-2014 00:21

No 20.º aniversário da partida de Agostinho da Silva...

[Agostinho da Silva na Universidade de Brasília, fotografado por António Telmo]

 

 

De uma conferência de 19-V-06 (6.ª Feira) na Associação Agostinho da Silva

 

Fuimus simul in Garlandia. Estivemos juntos em Brasília. Eu nem sequer ainda licenciado, com o mais insigne helenista e o supremo latinista lusobrasileiro Eudoro de Sousa, o exímio tradutor da Poética de Aristóteles e o Agostinho da Silva que traduzia um texto do latim para o português com a velocidade do pensamento.

Não exagero. Um dia, deparei com um não sei quê numa ode de Horácio que me feriu a alma de espanto e, como Agostinho da Silva estivesse por ali, quis que ele participasse comigo do mesmo espanto. Pegou no livro, correu a ode com o olhar e, devolvendo-mo, interpretou cada verso, c ada palavra, até cada fonema da ode perturbadora.

De outra vez, pedi-lhe que me explicasse, pelo que ao latim dizia respeito, um passo difícil de Tácito. A pergunta que lhe pus caiu, por um destes acasos inexplicáveis, na sua única zona de ignorância. Tirou das estantes uns livros e pôs-se a estudar o assunto. Passados uns minutos, voltou para junto de mim, disse-me como a coisa era e, esfregando as palmas das mãos uma pela outra, exclamou com um ar de gaiato: «Agora já ninguém me ganha. Era o que me faltava saber do latim.»

A simplicidade na complexidade é o que caracteriza o homem superior. Daí a tentação que todos sentimos perante essa complexidade que logo nos é evidente de a reduzirmos a uma ideia simples que nos dê o homem todo feito e quase sempre à medida dos nossos pequenos ideais. Alguns têm procurado ver em Agostinho da Silva apenas o homem de acção, o político, o comprometido com este ou aquele sentimento geral e, porque geral, sem a nota pura da singularidade. Assim, há quem queira ver nele só o monárquico que confessou ser perante as câmaras da televisão ou então só o comunista, que nunca confessou ser, mas que se deduz da sua apologia do municipalismo medieval. Uns vêem nele o católico, outros o heresiarca; uns o místico, outros um dos epígonos, no domínio do pensamento, da ciência moderna. Agostinho da Silva é isto tudo e muito mais, e também muito menos, porque terá sido, durante a vida, no modo como a viveu e pensou, um dos homens que mais de perto esteve de realizar o ideal do «pobre de espírito» de que nos fala Cristo no Evangelho, sabido como, para pedir a dádiva divina do espírito, necessário é que nos sintamos nada, mas um nada que é tudo, supremo paradoxo!

 

António Telmo

 

(Publicado em Congeminações de um Neopitagórico, 2006/2009)

«OS MEUS PREFÁCIOS». 04

02-04-2014 11:40

[SOBRE OS SONHOS] POSFÁCIO A ARTE DE SONHAR, DE ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO[1]

 

Estremoz

s/d [Setembro de 1993]

 

Meu Caro António Cândido Franco

 

[…]

Dizem que o sonho é uma produção da alma, o mundo que a alma se cria em si mesma. E quem o diz (os leibnizianos, por exemplo, com a ideação das “mónadas sem janelas”) pensa igualmente para com o estado de vigília. Aqui, os acontecimentos, por exemplo, são também produções e manifestações da actividade da alma do indivíduo a quem acontecem. É, de facto, muito difícil distinguir o sonho da vigília. Nele há espaço e há tempo, matéria e resistência, dor e prazer, como na vida em que julgamos estar acordados. E, se estivermos atentos aos fenómenos da vigília, nem a grande capacidade de metamorfose que caracteriza o sonho constitui uma diferença decisiva, isto é, que cinda um estado do outro. Embora haja a possibilidade de o sonhador ter consciência de si, influindo deliberadamente no próprio sonho, o que é comum é que saibamos do que sonhámos lembrando e daí o engano de pensarmos que foi uma ilusão, uma fantasmagoria subjectiva. Mas se, exercendo aquela possibilidade, formos capazes de nos lembrar sonhando o que fizemos durante o dia em que estávamos acordados, então será o sonho que nos aparecerá como real e a vigília como fantasmagórica.

Quando eu tinha vinte e tantos anos, aconteceu-me o seguinte. Tinha acabado de me deitar e, antes de me voltar para a esquerda ou para a direita, de súbito uma força entrou pelas pontas dos meus pés e percorreu o meu corpo todo, subindo por mim acima e saindo pela “coroa” da cabeça. O movimento, como uma onda poderosa, era acompanhado de um som maravilhoso de guizos, que se detinha subitamente logo que a força saía. Mas passados momentos de absoluto silêncio, o processo repetia-se e no plexo solar era como se a alma se separasse do corpo.

No Egipto havia uma prova de iniciação em que os guizos constituíam um elemento fundamental. Onde foi a sua imaginação secreta buscar isso dos guizos vegetais?

É que se o sonho, como dizem, é uma criação da própria alma, como é que se opera a comunicação entre as mónadas? Não, evidentemente, dentro da excepção, por uma relação de causa a efeito que é a única que admitem a ciência e o senso comum. Temos de falar então de harmonia pré-estabelecida ou de simpatia de todas as partes do universo no seu voltarem-se para o uno.

[…]

António Telmo



[1] António Cândido Franco, Arte de Sonhar: 87 sonhos com Teixeira de Pascoaes, Évora, Casa do Sul, 2001, pp. 121-122.

 

CORRESPONDÊNCIA. 06

01-04-2014 15:43

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 01



 

Lisboa, 30 de Outubro de 1958

 

 

Meu caro António Telmo:

 

Muito agradeço o favor da sua carta, porque sei ter sido uma das raras pessoas a quem V. quis dar essa expressão de amizade. Muito obrigado.

Sei que V. não gosta de cultivar a epistolografia, género adolescente e feminil de literatura, mas agora leio com tristeza a notícia do seu intempestivo desvio da carreira literária. Ao pensar que em 1959 vai ser celebrado em França, e no resto do mundo culto, o centenário do nascimento de H. Bergson, lamento que V. cesse os seus prometidos trabalhos, em que muitos de nós víamos uma segura esperança.

Quanto a mim, que no escrever para o público, ou para o futuro, encontro alívio de inconfessados sofrimentos ou digna reparação de conhecidas injustiças, não me envergonho de dizer que estou coligindo mais notas para o próximo livro ou opúsculo. Disse-lhe já que estou meditando na filosofia do jogo, que é a filosofia do comércio, e não me esqueço de que tive ocasião de lhe pedir o favor de me emprestar um livro clássico sobre o assunto. Mantenho, todavia, esse pedido.

O meu livro sobre a “Escola Formal” ainda não foi dado à luz, e tenho já a certeza de que só depois de distribuído em todo o País me será lícito obter exemplares para ofertas aos amigos. É assim a avareza da casa editora.

Nesta Lisboa dos cafés vão-se desmoronando as tertúlias, em consequência das invejas e das intrigas. Há duas semanas que não vejo o António Quadros. As conversas habituais causam desânimo. O que me vale, acredite, é o vício de escrever para longe...

Na madrugada de 13, minha Mãe sofreu uma queda. Já não se levanta da cama; passa as tardes, e principalmente as noites, a gemer. Sofre muito. O médico manda suspender este medicamento, experimenta outro, e assim sucessivamente. Para a Conchita, significa isto tudo uma inexplicável provação: falta-lhe a piedade religiosa.

Para completar a amargura deste fim de ano, a Junta Central das Casas do Povo é transferida para outro local, onde cessam as liberdades de que gozámos durante os últimos tempos.

Creia, meu caro António Telmo, que recebi a notícia da sua adaptação a Beja com a esperança de que ainda melhores caminhos lhe dê Deus. Abraça-o o amigo grato

Álvaro Ribeiro

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