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VOZ PASSIVA. 122

23-08-2021 12:39

António Telmo e a Santa Cabala

Eduardo Aroso

 

Escorre lentamente

A seiva das eras,

A cabeça e a cauda

Sempre primaveras.

Na imagem de fora

Só a ilusão é que corre.

Do sol à raiz

Nunca a árvore morre.

Letra a letra,

Tempo sobre tempo,

A escrita é soprada

E a noite mais dolorosa

Ilumina a palavra procurada.

 

EDITORIAL. 25

21-08-2021 00:15

Um legado que se partilha

 

Assinalamos a passagem do décimo primeiro aniversário da partida de António Telmo com o início da publicação das cartas que o poeta e ocultista austríaco Max Hölzer lhe dirigiu, a qual se prolongará pelos próximos meses. A transcrição das missivas, escritas em língua francesa, bem como a apresentação e a anotação do conjunto, que ultrapassa as três dezenas de espécimes, são da autoria de Risoleta C. Pinto Pedro. No próximo número da revista de cultura libertária A IDEIA será publicada uma selecção deste epistolário traduzida para português pela sua transcritora, que igualmente o apresenta.

Proximamente, publicaremos ainda nesta página um conjunto de escritos inéditos de António Telmo versando a astrologia que serão comentados por Eduardo Aroso.

Acreditamos que a divulgação contínua e criteriosa do legado bio-bibliográfico do filósofo da razão poética será, ainda e sempre, a melhor homenagem que lhe poderemos prestar.    

VOZ PASSIVA. 121

21-08-2021 00:12

“Filosofiat” ou da importância dos nomes e do erro

Risoleta C. Pinto Pedro

A 17 de Janeiro de 2014, a rubrica “Voz Passiva” do Projecto António Telmo. Vida e Obra”, publicava um texto de António Carlos Carvalho intitulado “Os nomes de António Telmo”. É um magnífico texto cuja leitura recomendo e que reencontrei agora, a propósito, já explicarei de quê. O texto consiste na comunicação apresentada ao Colóquio “A Obra e o Pensamento de António Telmo”, promovido em 2011 pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Mas vamos ao que importa.

O texto do jornalista, escritor, pensador, editor, orador e amigo de António Telmo, consiste numa reflexão sobre a importância dos nomes na perspectiva do filósofo, e por isso se me apresentou ao caminho num dia que foi para mim, como tantos outros, de viagem. Quando me acontece viajar sozinha, penso e contemplo. O contemplar solta-me e disciplina-me o pensar. O carro transforma-se num templo, a estrada transporta-me para fora do tempo e os conceitos ora desfilam ora se aprofundam, complexos e límpidos sem interferências avulsas. Vinha discorrendo sobre pandemia e pausa. Tudo neste Universo é feito de respiração, balançando como pêndulo. A música: thesis e arsis, som e silêncio; o tempo: dia e noite; os astros com suas fases; o clima com suas estações; o humor com suas oscilações; a saúde com seus altos e baixos; e por aí fora. Apenas a actividade humana moderna é de uma incessante febrilidade, produção, exploração, expansão. Não há cessação de actividade. Porque a própria interrupção a que chamamos férias é uma imparável corrida: para outro lugar, para os prazeres fora de nós, para o divertimento. Continua a não haver pausa, silêncio, imobilidade. A sociedade de consumo é um imenso animal faminto que necessita de ser continuamente alimentado e tudo está organizado para que o façamos, mesmo quando pensamos que paramos.

Uma pandemia não tem méritos. Mas se formos inteligentes, isto é, se usarmos a inteligência que cada um de nós possui, podemos aproveitar tudo para aprendermos mais um bocadinho sobre nós e sobre o mundo. E este estado em que fomos mergulhados foi, está ainda a ser, uma imensa e desequilibrada pausa, tão excessiva e desequilibrada quanto a actividade anterior. Tudo parou. Até aquilo que já era paragem, os pauzinhos na engrenagem, as fugas ao indomável sistema histérico. Também a pausa parou. Tenho dúvidas que a maioria tenha aproveitado para ler, com o entusiasmo que se gerou em torno das redes sociais, lives, videoconferências, numa tentativa desesperada de compensar o proibido e legítimo desejo de contacto com o outro.

Ora a leitura em geral, e em particular a leitura dos filósofos, sendo ainda mais particular a leitura de um filósofo como António Telmo, constitui uma profunda respiração na actividade mental. Esta respiração tem vindo a ser promovida pelo trabalho editorial da Zéfiro, que vem publicando, ritmicamente, anualmente, as Obras Completas do Filósofo, trabalho coordenado por Pedro Martins. O XI volume, completamente terminado, ficou, também ele, suspenso à beira do poço da pandemia e aguarda as condições que os grandes grupos editoriais continuam a ter, mas que um editor independente como a Zéfiro, nestas circunstâncias não possui. Por isso, o XI volume aguarda serenamente. Esta situação, afectando economicamente a editora e culturalmente quem da sua actividade beneficia, o que não é de somenos, não seria, só por si, o único facto grave. É grave a forçada suspensão da respiração. Contudo, António Telmo era um homem com um ritmo afeito à planície alentejana, onde viveu a maior parte da vida, e esta pausa não o afectaria. Pelo contrário: aproveitaria para reflectir sobre as causas ocultas de tal detença. E, sem dúvida, começaria por olhar para o nome. O nome do X volume, o último a sair antes da grande travagem a fundo: Capelas Imperfeitas.

A expressão original designa o Panteão de D. Duarte, no mosteiro da Batalha, não acabado. É essa a sua imperfeição. O trabalho, em si, é tudo menos imperfeito, mas a morte do rei e do arquitecto inviabilizaram a sua conclusão. No reinado de D. Manuel o labor persiste com vista ao acabamento, e também no de D. João III: surgem o portal, a varanda renascença, obras sucessivas de Mateus Fernandes e Miguel de Arruda, e assim ficou a perfeita e inacabada obra, por isso designada imperfeita. Também a obra de António Telmo é, e isso está patente no espólio, uma obra perfeita em cada página que escreveu, mas muitas delas, muitos projectos de temas a desenvolver, de livros a escrever, ficaram inacabados. A publicação das Obras Completas tem contribuído, não só para reeditar, dando novamente à luz o que fora publicado, como para mostrar esse projecto futuro no seu processo de nascer, assim o desfragmentando e conferindo-lhe alguma unidade. Que tem. Ali se sente a respiração do filósofo, as pausas, aquilo a que ele chamava a sua “preguiça”, que eu vejo como contemplação sagrada, ali se vê como olha para trás e não tem receio de escrever o que já não diria da mesma maneira. Nas Capelas Imperfeitas, com seus apontamentos, fragmentos e inéditos dispersos, atinge-se o auge da perfeição do… imperfeito, no sentido já referido, de inacabado. Mas António Telmo continuaria a olhar para o título com a atitude que sempre teve perante os nomes e que António Carlos Carvalho tão bem sistematiza na acima referida comunicação, onde começa por assinalar que o você e  o tu não eram usados por Telmo, mas sempre o nome e apelido do seu interlocutor: «esse sublinhar do nome num tempo em que a importância é dada aos números que todos nós temos, que nos são atribuídos e é por eles que nos identificam, e não pelo nome que recebemos ao nascermos -- tal é o absurdo --, esse nome que nos deram e que se cola a nós ao ponto de a ele respondermos, de reconhecermos o seu poder de apelo». São as palavras iniciais de António Carlos Carvalho. Que vai, também, lembrar algumas das reflexões de Telmo, tais como (recito):
«Habitamos um nome, como habitamos uma casa.»
Assim como a existência de «uma íntima relação entre o nome de uma pessoa e o que ela viveu ou pensou» (Congeminações de um Neo-Pitagórico).»

Não querendo nem sendo elegante transcrever todo o texto, que o leitor poderá e terá todo o benefício em ler aqui:
https://m.antonio-telmo-vida-e-obra.pt/news/voz-passiva-11/,

pretendo apenas ressaltar uma outra importante afirmação de Telmo:

«O nome em princípio representa a essência sobrenatural do indivíduo.»

E outra ainda de seu mestre Álvaro Ribeiro:

«é preciso conhecer o ser que tem o seu nome e não outro».

Isto não se aplica apenas aos nomes humanos mas a tudo, daí eu trazer este tema, o nome do anterior volume publicado. Também os livros não se subtraem à Lei. Pelo contrário, contêm-na.

E para a compreendermos melhor, ajudará lermos a Gramática Secreta da Língua Portuguesa, onde os sons e as potências são quase racionalmente analisados e desvelados na sua criadora natureza.

Mas como não acreditamos em determinismos nem no poder da magia sobre a claridade do conhecimento, sabemos que este título, Capelas Imperfeitas, é sobretudo um instrumento para reflexão e não um dictat, a que também não atribuímos poder. Dictat não é Fiat, dictat é uma ordem que nos supera se tal permitirmos, Fiat é um poder que construímos pela luz da razão sustentada na intuição do coração. Também acreditamos na importância do erro para a evolução, e quando no início deste artigo ia escrever a palavra “Filosofia”, um t se acrescentou por vontade própria, um t de Fiat (Filosofiat), que acoplado ao amor pela sabedoria, possui um poder atómico no sentido da construção criativa, por isso acreditamos na próxima continuidade rítmica da publicação desta bela Obra de Telmo, que por muitos volumes que venha a ter (não terá muitos mais, e os que existem já não são poucos) será sempre incompleta, porque essa é a natureza da obra humana, à semelhança da própria criação do demiurgo, sendo que a próxima etapa da humanidade consiste, e Telmo para isso bem contribuiu, em ir aperfeiçoando o que ele, esse construtor escondido que não conhecemos do universo que conhecemos, não conseguiu. Ainda assim, que bela, esta Capela Imperfeita onde vivemos! Que sem o ignorarmos, não nos conformemos apenas com a beleza, enquanto houver seres em sofrimento. E outros a infligi-lo. As capelas imperfeitas que são a súmula do conhecimento e do pensamento humano inventariado pelos filósofos e pelos poetas, poderão ser o nosso ponto de partida e um possível caminho para mostrar quão nus vão os reis… de todos os domínios. É preciso sabê-lo para deixarmos de acreditar neles. E mais na nossa acção investigativa, reflexiva e criativa. Iniciemos, então, a imperfeita obra, nem por isso menos merecedora de ser construída.

Agosto 2021

CORRESPONDÊNCIA. 55

21-08-2021 00:07

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 16 de Maio de 1975

 

Paris, le 16 Mai 75

Cher António Telmo,

   Comme le temps passe (c’est dans sa nature, aurait dit Alfred Jarry) – j’ai eu à peine pour m’habituer au changement. À Lisbonne, dans votre pays, on reçoit des forces qui viennent de la nature, ce qui manque ici presque totalement.

   Je voudrais bien avoir des nouvelles de vous, et de toute la famille. Rappelez-vous que je pense quotidiennement à vous. Que nous n’avons pas eu la chance de nous revoir avant mon départ me faisait sentir la règle que tout doit être exercice dans ce monde et que la continuité suppose le changement pour qui se met sur la voie. Le temps est propice au travail, nous propose sans cesse des possibilités d’apprendre en chair et os et sentiments, exercer en nous même, la force conciliatrice qui en général n’est que “jouissance dans toutes formes, venant du dehors”.

Je vous envoie ces jours un petit livre d’un poète, et beaucoup plus que cela, qui m’a communiqué une grande joie par ces écrits divers et le haut sentiment qui émane d’eux (le petit livre épuisé, était une “occasion”, pardonnez l’extérieur usé).

   Mais les autres grands livres attendent encore à (Franckfurt), peut-être dites-moi un mot comment les faire parvenir à vous, par quelle adresse, eventuellement pour votre éditeur.

Moi, je me trouve dans des différents travaux qui sont un seul, finalement; avec intensité. Il est beaucoup exigé, et augmente avec chaque pas.

   Croyez-moi, avec toute la famille, votre ami fidèle.

Max Holzer

 

 

CORRESPONDÊNCIA. 54

21-08-2021 00:04

Carta de Max Hölzer para António Telmo (não datada)

 

[i]Verso de cartão com miniatura sobre pergaminho, Etiópia

(Centauro, século XIX )

 

 

Mon cher António Telmo – merci pour votre lettre; recevez aussi de nous, pour vous, votre travail, Maria Antónia et les enfants, les vœux le plus cordiales!

Étudiez, pour vous (à part de l’autre travail) le fonctionnement et les fonctions des centres (inaccessibles) et le sens de cette observation (et après le livre du Dr Vyas[ii]).

Votre Max Holzer

 

 


[i] Verso de cartão com miniatura sobre pergaminho, Etiópia, (Centauro, século XIX ).

[ii] Deve tratar-se de Kiran Vyas (https://fr.wikipedia.org/wiki/Kiran_Vyas).

 

CORRESPONDÊNCIA. 53

21-08-2021 00:01

A correspondência de Max Hölzer para António Telmo

Transcrição, apresentação e notas de Risoleta C. Pinto Pedro

 

A correspondência inédita, escrita em língua francesa, cuja publicação hoje se inicia, ocorre no âmbito de um círculo de estudos ocultistas e da consciência, orientado pelo austríaco Max Hölzer[1], através das suas vindas a Portugal, principalmente a Lisboa, mas também ao Porto e a Borba.

As mais de trinta cartas de Hölzer para António Telmo, entre Maio de 75[2] e Abril de 80[3], são remetidas de Paris na sua quase totalidade (exceptuando uma da Áustria e outra de Lisboa) e reflectem três principais tipos de mensagens: o retorno em relação a estadias anteriores com agradecimento e alegria; a antecipação de próximas vindas, com recomendações sobre logística, quer em relação à própria estadia (onde vai ficar, onde gostaria de pernoitar, por onde tenciona entrar no país), quer em relação aos eventos e sua preparação, como conferências, cursos, encontros, sendo estes de dois tipos: públicos; ou entre um círculo muito reduzido e criteriosamente escolhido. António Telmo é sempre referido como indispensável e prioritário, e a ele acrescenta os nomes de Carlos Silva e Francisco Sottomayor. Afirma, mesmo, no conto “Trabalho de Grupo”, que «durante os três primeiros anos fui, por assim dizer, o único discípulo daquele mestre. Embora nos reuníssemos, de quinze em quinze dias, na casa de Francisco Sottomayor, o meu trabalho era individual». Episodicamente, outros nomes aparecem referidos, mas este é indubitavelmente o círculo interno, que pode eventualmente ser alargado a outros, de modo muito seleccionado e por si indicado. Um terceiro tipo de conteúdo toma a forma de recomendações sobre exercícios espirituais, aquilo que Telmo nomeia, no conto acima referido, «o ensinamento operativo de Georges Ivanovitch Gurdjieff», e ainda comportamentos em relação às leituras ou considerações acerca da evolução do conhecimento e do seu processo. O foco na atenção e na auto-observação é quase uma constante. O conceito de “rappel”, muito presente em Gurdjieff[4] e em seu continuador Ouspensky, cujos princípios de trabalho interno Max Hölzer procura seguir e transmitir nos seus grupos, cursos e conferências, é muitas vezes considerado. Muito claro e directo nas questões práticas, algo nebuloso, por vezes, na temática psicológica e espiritualista, ou por o atraiçoar uma língua que não é a sua, ou intencionalmente, ou ainda devido às dificuldades levantadas pelo tema. Para além da circunstância de ocasionalmente se tratar de um comentário a algo escrito por António Telmo em missiva anterior a que não temos acesso, ficando algo omisso que dificulta a compreensão da resposta.

A última carta é a resposta de Hölzer à decisão de Telmo de deixar o grupo. Resposta inequívoca, breve, seca, arriscaria a acrescentar: deselegante[5] e mal disfarçadamente despeitada. Em franco contraste com todas as anteriores, onde o tom alterna entre o amistoso e mesmo o intensamente amistoso[6], o pragmático, o reflexivo e o didáctico, confundindo-se, por vezes, estes dois últimos, embora o tom didáctico possa raiar o autoritário quando contempla “conselhos” como restringir as leituras de Telmo às recomendadas por ele no âmbito do trabalho, ou “aconselhar”, por exemplo, em alternativa à tradução que Telmo pretende fazer, de Z’ev Ben Shimon Halevi, um outro livro de autor por si escolhido, num apertar de cerco conceptual e espiritual intolerável para um espírito livre como o do nosso filósofo. Por isso, compreende-se a sua afirmação no conto “Trabalho de Grupo”: «Era o maior sacrifício que me era imposto dentro do meu destino de aprendiz de filósofo»; isto, a propósito de «uma circunstância extraordinária» que «fez que me visse obrigado a trabalhar em grupo pela primeira vez na minha vida». Se todos os contos de Telmo apresentam, de uma maneira geral, um compromisso equívoco (possivelmente deliberado) entre realidade e ficção, este é talvez o que mais se cola à realidade, fingindo contar uma história, para, reparafraseando Pessoa, chegar a fingir que é ficção aquilo que deveras foi… acção.

No referido conto, Telmo explica por que razão e de que forma decide abandonar o trabalho com Hölzer. Algumas causas essenciais aí são apresentadas, como a incompatibilidade da tendência para a anulação da personalidade, de raiz orientalista, sob condução e submissão a um mestre, que Hölzer traz consigo, em contraste com o valor mais alto da filosofia portuguesa: a liberdade. Para além de que, apesar de Pessoa formular O Oriente de onde vem tudo, isso perde peso perante a declaração de Álvaro Ribeiro, o qual é, para Telmo, a filosofia portuguesa: Está bem. Mas Portugal é a terra do Ocidente.

Eloquente é a orientação transmitida numa das cartas para a leitura de um texto recomendado, de Ouspensky: «Leiam-no em conjunto, sem demasiada discussão», onde é claro o desprezo pelo espírito crítico, na linha da submissão absoluta aos mestres, atitude antitética à da “escola” de Telmo.

Pode acontecer, ocasionalmente, Hölzer referir as suas próprias circunstâncias do momento, mas “en passant” e sem pormenorizar, ou por razões de tipo funcional, como transmitir o endereço da nova morada (há várias mudanças de casa), ou para explicar por que razão se encontra no estrangeiro, como quando vai receber um prémio literário, sobre o qual não acrescenta informação, a não ser que isso o leva à terra natal, na Áustria, onde os pais estão sepultados, aproveitando para visitar a sepultura. Quanto a estados de alma, muito raros, um se destaca, sobre o desgosto que lhe está a dar Paris, que vê em oposição a Lisboa, sendo esta, para ele, muito mais próxima da natureza.

Do ponto de vista literário, toda a bibliografia que normalmente recomenda se remete ao estudo espiritualista, com excepção de um livro de poesia que envia a Telmo, sem referir, na carta, o autor.

A expectativa que nos tomou antes da leitura das cartas sobre a possibilidade de existência de referências ao surrealismo[7], a que se encontrou muito ligado, como autor, como divulgador, foi quase totalmente fracassada, pois as raras alusões literárias limitam-se ao vago caso acima referido do livro de poesia, ao prémio literário que foi receber em dada ocasião, e pouco mais, para além da profunda impressão que lhe deixara, em 1969, uma declamação de Pascoaes por José Marinho. E a este nível é quase tudo. Mas não podemos igualmente ignorar que Hölzer refere mais do que uma vez, nas cartas, o texto que anda a escrever sobre Pessoa[8], e que pretende publicar. Quase tudo também, porque a um olhar atento não será indiferente o facto de ele citar Jarry, o mais próximo que aqui encontramos da sua simpatia (ou anterior interesse) pelo surrealismo.[9]

Quanto ao uso da língua, apesar de dominar com fluência o francês escrito, é visível, aqui ou ali, sobretudo ao nível da construção sintáctica e das concordâncias, que se trata de alguém de outra nacionalidade. O que é curioso é que em alguns dos casos poderíamos estar perante erros cometidos por um falante do português, o que não é verdade, embora numa das cartas peça a Telmo para lhe escrever em português, porque lhe dá mais prazer.

A expressão por ele usada «ne pensent en» é um exemplo claro do que acabamos de afirmar, pois o «penser à» é para nós o «pensar em», que encontramos nesta sequência.

Igualmente o uso do pretérito imperfeito em vez do perfeito ou do passado simples, como por exemplo: «elle provoquait en moi», no contexto, inequivocamente com o sentido de passado não durativo.

Algumas destas idiossincrasias não transparecem na tradução, outras levantam, justamente, problemas a este nível, pois quem traduz tem de interpretar de acordo com o seu conhecimento da língua, confrontando-o com o uso que dela aqui é feito, e no contexto, o sentido mais coerente com a sequência.

Frases com a ideia incompleta, mistura de tempos verbais e pontuação muitas vezes pouco clara, tornam difícil a interpretação e forçam a alterações na mesma, sob pena de o sentido ser inapreensível. Por vezes não interfere com o sentido, é apenas extravagante e parece ignorar a norma.

Sobretudo nas reflexões sobre temas da espiritualidade, consciência, trabalho interno, há um certo hermetismo que resulta, por um lado, como já referimos, da própria natureza do tema, mas também de questões sintácticas que fazem com que frases não muito claras ou incompletas se liguem a outras, assim criando um fenómeno de ambiguidade nem sempre fácil de desenovelar e coloca alguns problemas em termos de tradução. São raríssimos os erros ou gralhas ortográficas, já as referidas desconexões sintácticas aparecem com alguma frequência, criando uma nebulosidade que se interpõe entre o texto e a interpretação.

É relevante a preocupação com a ênfase de certas palavras, daí a profusão do uso de sublinhados, travessões e aspas, num tempo sem emoticons, mas com generosos sinais gráficos.

Deixando os aspectos da forma e voltando a questões de fundo, terminaremos, à laia de balanço ou conclusão, com as palavras de António Telmo, num texto escrito por volta dos oitenta anos e publicado no I volume das Obras Completas[10] sob o título “O Quarto Inimigo do Guerreiro”:

«O I Ching aconselhou-me a retomar o caminho que em tempos pratiquei sob o impulso de Max Hölzer. Fiz várias tentativas de praticar a meditação. Vi, mais uma vez, que a minha individualidade vocacionada para a arte poética se dissolvia com a prática dessa meditação, em que, como se sabe, temos de deixar toda a imagem, todo o sentimento, todo o pensamento. […] Além disso o Yung, apesar do seu nome que parece chinês, está-me indicando que o caminho de um ocidental não é o do Oriente.»

 


NOTAS

 

[1] Vale a pena ler ou reler o conto de António Telmo, “Trabalho de Grupo”, onde sob uma forma ficcionada, narra a história real do seu encontro com Max Hölzer, através da intermediação de José Marinho, sabendo este do seu interesse pelas Ciências Ocultas.

[2] Segundo testemunho de António Reis Marques via Pedro Martins, em 1975 Holzer «já havia algumas décadas que vinha, a espaços, passar temporadas a Portugal, ficando instalado no Hotel Borges, ao Chiado. E tinha um número considerável de relações pessoais significativas entre nós. O Orlando [Orlando Vitorino, irmão mais velho de Telmo], por exemplo, já conheceria o Hölzer de longa data, muito antes de o Marinho o apresentar ao Telmo».

[3] Contudo, como refere numa das cartas, há visitas anteriores: «lors de mon deuxième séjour au Portugal en 1969». Este ano terá sido o da sua segunda vinda, o que pressupõe uma anterior, de desconhecida data.

[4] Gurdjieff, “G.” para os seus seguidores. Assim é também “nomeado” nestas cartas. Filósofo e mestre espiritual arménio, nascido no início da segunda metade do século XIX. Criou um método original de desenvolvimento da consciência que inclui a dança e a música, e o seu livro mais conhecido tem por título Encontro com Homens Notáveis, posto em filme por Peter Brook, nos anos 80. O realizador é, aliás, referido numa das cartas.

[5] Pela forma crua como lhe pede a urgente devolução de material emprestado.

[6] «Lembre-se que eu penso em si todos os dias». Carta de 16 de Maio de 75.

[7] Max Hölzer (1915-1984), poeta, editor e tradutor, editou publicações surrealistas com Edgar Jené, entre 1950 e 1952, com traduções de Breton, Péret, Lautréamont e outros. Na década de 1950, Hölzer foi um dos primeiros poetas de língua alemã na área do surrealismo, tendo contribuído para a criação de uma estrutura de elite. Um dos seus livros, Der Doppelgänger, foi ilustrado por Jean Cocteau. Posteriormente, voltou-se para o estudo de Kabbalah, que ganhou grande impacto na sua produção poética. A sua obra lírica está publicada pela Rimbaud Verlag. No livro Contemporary Austrian Poetry in Translation: An Anthology (English and German Edition) Hardcover – September 1, 1986, German Edition  by Beth Bjorklund , foi possível identificar alguns poemas seus: “And The Coming Of The Poem”; “That It Consumes”; “He Let The House Be”; “I Accompanied The Castilian”;  “In The Trocadero”;  “Mysterious Geometry”; “Sete” e “The Summer's Cold”. Recomendado para consulta: https://www.encyclopedia.com/arts/educational-magazines/holzer-max-1915-1984.

[8] Talvez pela razão que Telmo refere no já citado conto “Trabalho de Grupo”, a propósito de Pessoa: «O entusiasmo das novas gerações com a obra e a personalidade de Fernando Pessoa é, em grande parte, devido ao fascínio que sobre essas gerações exerce o esoterismo de sinal orientalista». O que é coerente com as características orientalistas da obra de Gurdjieff, que inspira o trabalho de Hölzer. Este texto, “Dans le tombeau de Christian Rosencreutz – Essai d’Interprétation du poème de Fernando Pessoa selon la Kabbale”, foi publicado no número 8-9 da revista Exil, de Dominique de Roux, juntamente com um ensaio, também de inspiração pessoana, de André Coyné, e de uma tradução de O Banqueiro Anarquista, de Pessoa.

[9] «Como o tempo passa (está na sua natureza, diria Alfred Jarry)». Carta de 16 de Maio de 1975.

[10] A Terra Prometida – Maçonaria, Kabbalah, Martinismo e Quinto Império, Zéfiro, Sintra, 2014.

 

EDITORIAL. 24

02-05-2021 10:37

Entre efemérides

 

Os dois mais recentes números da NOVA ÁGUIA, revista de que António Telmo foi colaborador desde o seu primeiro número, permitiram assinalar de modo efectivo e significativo o décimo aniversário da sua partida: um conjunto de doze apontamentos inéditos do filósofo, que vieram a lume no Outono passado, e a que, já nesta Primavera, se juntaram dois valiosos conjuntos epistolares – de Dalila Pereira da Costa e Luís Amaro – para o filósofo da razão poética e um dossier temático com treze ensaios (número obsidiante!) dedicados à sua vida, à sua obra e ao seu pensamento, traduzem, na sua diversidade, formas convergentes de evocação de um legado perene e fecundo, neste tempo, tão obscuro como reservado, em que continuamos ainda a esperar. Um agradecimento muito especial, e que não pode também deixar de sublinhar uma notável capacidade de resistência à adversidade, será, por isso, devido a Renato Epifânio, Director da NOVA ÁGUIA, e a Alexandre Gabriel, editor da Zéfiro, chancela que, além da revista, identifica também as Obras Completas do nosso patrono, que ainda este ano deverão retomar o seu curso de publicação.

Mas hoje é o dia em que passam 94 anos sobre o nascimento de Telmo. Tempo de olhar para um porvir que se projecta com esperança. A par da NOVA ÁGUIA, a revista de cultura libertária A IDEIA tem sido outra das publicações periódicas que acolhem a presença da sua obra filosófica singular. Ainda recentemente, no número quádruplo de 2020, foram dados à estampa dois escritos inéditos do filósofo originalmente destinados a um livro que ele não chegou a concretizar. 2021 será, tudo o indica, o ano em que a revista dirigida por António Cândido Franco – outro amigo de António Telmo, credor por igual da nossa gratidão – dará à estampa a correspondência de Max Hölzer (note-se que este enigmático iniciado foi também uma figura maior do surrealismo austríaco) para o filósofo português. Trabalho moroso de transcrição e tradução que está a ser desenvolvido no seio do Projecto António Telmo. Vida e Obra, o epistolário que por ele se deixará revelar constitui, por certo, na positividade do que, preto no branco, foi deixado no papel, um elemento da maior importância para a justa compreensão da evolução do pensamento do seu destinatário.

Uma última palavra de calorosa gratidão para a família de António Telmo, na pessoa de Maria Antónia Vitorino, pela confiada generosidade com que têm acompanhado, apoiado e estimulado este nosso Projecto. Bem-hajam!    

INÉDITOS. 99

02-05-2021 09:54

Fragmento autobiográfico[1]

 

Como os meus irmãos, nasci no centro do hexágono formado pelas muralhas de Almeida, numa rua chamada do Convento.

Os poderes estavam assim distribuídos na carta do céu: o Sol e a Lua em Toiro, na casa nona, fadavam-me para a filosofia e uma Grande Viagem; somente o sinistro Saturno, na casa IV, a dos Pais, da Terra e dos Antepassados, ocupava o hemisfério inferior; os restantes olhavam uns para os outros no hemisfério superior. Oposto a Toiro é o Escorpião. No fundo do céu, este signo significava a minha Mãe, que nasceu sob a sua regência e os meus irmãos, que nasceram a 21 e 25 de Outubro. O mais velho conheceu a vida ainda no signo da Balança.

Sou o mais novo – o benjamim. Liga-me aos meus dois irmãos uma profunda amizade e o que vou escrever pretende apenas mostrar as razões, alheias à nossa vontade, que não permitiram que a relação entre mim e o meu irmão mais velho se não desenvolvesse com qualquer de nós desejaria.

Entre o primogénito e o benjamim há uma misteriosa relação de que se deve tomar consciência sob pena de se explicar o conflito, inevitável, se a relação se assume em toda a sua realidade, como qualquer conflito dos interesses das almas: neste caso, o ciúme do período infantil que perseverasse ao longo da vida, mais ou menos inconscientemente.

A relação entre o primogénito e o benjamim é regida por uma lei que reflecte relações entre princípios.           

 

António Telmo



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade.

 

VOZ PASSIVA. 120

02-05-2021 09:43

«É de mim que me lembro com saudade»

Risoleta C. Pinto Pedro

 

«É de mim que me lembro com saudade[1]»

Quando evoco teu rosto de bondade.

Não é certo o encontro no infinito

Mas se for na planície ou noutro mito

 

Me contento e me alegro de antemão. 

A alma de Camões lá cantará

A balada como tema de refrão.

É manhã, e à hora o sol dará

 

Um reflexo interior, um resplendor

Alfabeto de luz bordado a cor

Por trovador espantado com seus versos.

 

Após anos passados, teu passar,                         

Como em linho e seda um restolhar,

Sem que tal se veja, faz conversos.

 

2 de Maio de 2021

 



[1] A expressão deste primeiro verso pertence a António Telmo.

 

CORRESPONDÊNCIA. 52

27-04-2021 10:08

Carta de Dalila Pereira da Costa para António Telmo, de 21 de Outubro de 1984
 

Porto, 21-X-1984

 

                                 Querido Amigo

 

A carta vai escrita à máquina, para ser fácil de ler: não tenho como o António letra legível. Seria eu a ter de lhe agradecer sua vinda aqui ao norte e sua companhia nesta viagem. Foi bom. Só me ficou a pena de não ter visto, conhecido o que é um centro do sagrado, uma sábia concentração de sua força, terrível, ainda agora sentida, como é a da igreja de S. Pedro de Balsemão: passámos a um kilómetro. Tem de ficar para outra vez. É um dos pontos altos deste norte: a primeira igreja cristã portuguesa (talvez séc. V) e peninsular.

Mas como todos ficámos tão unidos a S. Pedro das Águias, queria hoje enviar-lhe mais informes, que colhi de um primo meu que a visitou no sábado anterior a estarmos lá. A visita foi feita com uma nossa prima, filha do antigo dono de S. Pedro das Águias (convento), o visconde de Macedo Pinto; que lhe contou: o pai, tendo grande pena do estado de ruína em que estava a igreja do eremitério (um montão informe de pedras) levou um dia lá D. Fernando de Almeida, que ficou siderado com o lugar. E logo, conseguiu ajuda do Estado para sua reconstrução: felizmente não faltava nenhuma pedra. Sua reconstrução e abertura da estradinha, pois o lugar era inacessível. Mais ainda lhe informou: que uma das grutas abertas naquele enorme penasco coberto de liquens amarelos, conduz ao convento. E que o fantasma da Moura Artiga, morta pelo rei de Lamego e atirada ao Távora, ainda hoje aparece em fantasma branco, perto do rio.

Fiquei muito contente com a notícia que me dá: de uma próxima edição de Pascoaes, sem aqueles horríveis prefácios, obstruentes.

E gostei também que tivesse visitado Guimarães: espero que não tivesse deixado de ver a rua de Santa Maria e o largo da Colegiada. Bem, para outra vez, será o santuário rupestre de Panoias, e a Senhora da Serra.

Mas este norte, como viu, tem de se olhar para além de toda a destruição (estragação) que sofre há vinte anos; as desnorteadas casas dos emigrantes parecem feitas para degradar a Terra-Mãe. Um acto misterioso.

Mas gostei que tivesse compreendido e sentido este norte. E lembre-se, lhe peço, que o Camilo chamou, num dos livros, sem mais rodeios, ao Porto, a “cidade dos livres”.

Agradeça também ao amigo Inácio Ballesteros a companhia. E saudades para nosso Amigo, para Maria Antónia e para si, António. De sua amiga dedicada, Dalila.

 

 

[Carta dactilografada, com excepção da data, destinatário e da parte final dos cumprimentos de despedida com assinatura.]

 

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