ÁLVARO RIBEIRO E «A LITERATURA DE JOSÉ RÉGIO», 50 ANOS DEPOIS. 02

09-04-2019 10:39

A fenomenologia do narcisismo em Álvaro Ribeiro[1]

 

A fenomenologia do narcisismo constitui uma das linhas mestras do mais recente livro de Álvaro Ribeiro, A Literatura de José Régio.

Deste livro hão-de só falar os que se preocupam, não com o livro ou com o autor, mas com os temas e os problemas de que a reflexão filosófica se apoderou no espírito de Álvaro Ribeiro. Por isso, nos parecem inoportunos e desnecessários os protestos que alguns discípulos do autor apresentaram contra o silêncio do mundo literário que fechou o livro no seu cofre de superficialidades. O filósofo responde em prosa às perguntas de Deus; o poeta interroga Deus que lhe responde em verso. Mas os literatos falam de poetas e, às vezes, de filósofos sem tratar das perguntas e respostas. Não tem qualquer interesse o que dizem e, quase sempre, é preferível que estejam calados. Se Deus me pergunta como é que eu explico a existência do mal num mundo por ele criado, o desinteresse do literato em conhecer ou mencionar a minha resposta, porque não pertenço à tertúlia de imbecis que lhe é simpática, é o sinal de que não lhe foi posta análoga pergunta e, por isso, a sua opinião sobre o livro que fiz em resposta a essa e outras interrogações é tão pouco importante para mim como serão certamente para a lua, seus movimentos e suas fases, o ladrar dos cães que se perde na solidão solene dos espaços.

Quando dizemos que filósofo é quem responde em prosa às perguntas de Deus e que poeta é quem interroga Deus que lhe responde em verso, relevamos ou o predomínio da razão ou o predomínio da inspiração. «Os homens superiores são os que não perdem a razão nos momentos em que vão sendo agraciados por instruções espirituais.» No outro extremo está o poeta narcisista, que se deixou dominar pelo fascínio do próprio ser. O narcisismo, em termos freudianos, é a sístole de um movimento cuja diástole é o homossexualismo. Quem ama a própria imagem pode evitar o suicídio que lhe dá a ilusão duma futura posse substituindo-a por uma imagem semelhante, mas exterior. Contudo, a via narcisista foi indicada como o único caminho de realizar a liberdade. «…o problema da liberdade é solidário do problema da individuação, como ficou demonstrado por Leibniz em monografia célebre. Tal foi focado com logicidade irrefutável no discutido livro de Max Stirner, intitulado Das Einzige und seine Eigentum, cuja tradução exacta seria O Único e a sua Unicidade ou O Próprio e a sua Propriedade, se os franceses não o houvessem traduzido por L’Unique et sa proprieté. Esta obra representa em filosofia o que em estética poderia ser chamado O Narciso e o seu narcisismo, porque postula o solipsismo levado às suas extremas consequências».

À via operativa da liberdade dá-se o nome de iniciação. Aqui, o conceito de narcisismo alarga-se, pois a vivência pelo único da sua unicidade impõe o corte absoluto da corrente para o exterior nos três pontos em que ela é possível: sexo, nutrição e sensações. O exemplo perfeito é o da iniciação cátara, que se exprimiu poeticamente nas trovas medievais de amor, e que consistia num suicídio lento pela fome, pela sede e pela solidão, enquanto as energias dos sentidos eram reconduzidas pela concentração mental ao ponto original donde tinham emergido à medida que o corpo se ia estruturando.

Narrado por Ovídio, o mito de Narciso (que corresponde ao mito da queda de Lúcifer) contém já todos os elementos que permitem interpretá-lo como uma descrição por imagens da “iniciação”. Explicando a morte de Narciso pelo “Nosce te ipsum”, Tirésias integra o mito na sabedoria órfica, cujo esoterismo constituiu a raiz última e primeira da filosofia de Sócrates e do platonismo. Álvaro Ribeiro que define o narcisismo como «a presença perante o espelho» não ignora a correspondência do mito grego com o mito hebraico, propriamente kabbalístico, ao caracterizá-lo também pela oposição a Deus. As iniciações luciferinas, ao número das quais pertence a cátara, se fosse possível referi-las a um sentimento fundamental seria, porém, não a vaidade, mas o orgulho. A vaidade, que os literatos cultivam, no tipo superior de narcisista, que é o filósofo solipsista, dá, com efeito, lugar ao orgulho, mas um e outro sentimento excluem a comunicação livre dos espíritos, a convivência angélica dos entes que não quiseram separar-se. Leibniz assegura esta convivência por um mecanismo de reflexões das mónadas nas mónadas até ao infinito. É, no entanto, um precursor de Max Stirner ao afirmar que a mónada não tem portas nem janelas. A mónada contém todos os elementos da totalidade e uma vez emanada de Deus por fulguração é, logo, um ente autónomo e perfeito que só precisa de tomar consciência de si para “ser igual aos Elohim” (“Eritis sicut Dei”).

O Génesis sofreu esta interpretação, mas Álvaro Ribeiro, preferindo a ortodoxia hebraica às várias doutrinas heterodoxas mais ou menos ligadas à Kabbalah, recorre precisamente ao Génesis para transcender o ponto de vista narcisístico. Reflectindo o preceito mosaico de que não é bom que o homem esteja só, vê na mulher o complemento indispensável do homem, e, portanto, a base terrestre e natural da redenção ou da sobrenaturalização. «A mulher coopera eficazmente na sobrenaturalização quando cumpre o dever de criar e educar os filhos, e nessa função está a sua bondade e o seu valor. Cumpriria ao homem ser o agente capaz de se tornar sagrado, isto é de ser sacerdote, capaz de iniciar a sua esposa nos segredos ou nos mistérios sobrenaturais que asseguram a verdade do amor. Em nossa época, que julgou indispensável instituir cursos para noivos e escrever viáticos para a vida conjugal, bem merecia ser o Cântico dos Cânticos, em sua tradução espanhola de Frei Luís de Leon ou em sua tradução portuguesa de João de Deus, texto fiel onde o estudioso pudesse haurir a melhor inspiração.»

Esta doutrina desagrada aos narcisistas que defendem a igualdade dos sexos, o mesmo sexo em homens e mulheres, o homossexualismo. A alteração da mulher em homem ou do homem em mulher não é, porém, possível, sem que se formem dois novos seres, ainda completamente diferentes um do outro, por muito que consigam parecer-se exteriormente. Corresponde a alteração a um trânsito para outros planos psíquicos, onde às diferentes naturezas correspondem diferentes energias, para não dizer demónios que nelas são recebidos por rotura do subconsciente.

A demonologia do sexo, descrita em termos modernos por Freud, nos termos da moda psiquiátrica, constitui efectivamente uma das chaves utilizadas por Álvaro Ribeiro na interpretação de José Régio. A psicologia do homem solteiro deve ser sobretudo referida às visitas nocturnas de entes sobrenaturais e quem diz do homem solteiro dirá da mulher solteira, tendo em mente quanto as ciências ocultas ensinam sobre incubos e veículos. O poeta José Régio representa no morcego de Jacob e o Anjo o incubo de Afonso VI, mas sugere que nele reside a “forma de luz” perseguida pela iniciação cátara.  

Narciso, adolescente de extraordinária beleza, depois de ter repudiado quantos e quantas se apaixonaram por ele, viu-se no espelho das águas e, perdido de amor por si próprio, suicidou-se com uma pedra. Tirésias, o adivinho, predissera com efeito que Narciso viveria muitos anos se não se conhecesse.

É este, em breves palavras, o mito de Narciso, tal como nos foi transmitido pelos poetas.

A psicanálise apoderou-se do mito, designando por narcisistas todos aqueles que se deixam fascinar pelo próprio corpo, servindo-se dele como única fonte de prazer erótico, na tentativa de realizar um acto fisicamente impossível. O espírito recorre à imaginação inventando perversões que substituem um acto impossível, mas a doença, a loucura e a morte são as consequências inevitáveis e subconscientemente desejadas pelo narcisista.

Nos termos da psicologia imediata, o narcisismo, de que todos nós, mais ou menos, participamos, que está ligado a uma fase de desenvolvimento erótico de todos os indivíduos, quando se torna dominante e se fixa transforma-se num caso patológico a ser tratado pela medicina. Mas há mais. Se o narcisismo, que perdura e invade a vida erótica do indivíduo, é pela psicanálise explicado por traumatismos de infância, pode dar-se o caso de não ser o indivíduo a sofrê-lo, contra sua vontade, mas de ser voluntariamente cultivado, como uma técnica de separação do mundo exterior, podendo abrir ao espírito uma via mística, se convenientemente posto em relação com outros valores. 

 

António Telmo

     

 


[1] Publicado originalmente em Capelas Imperfeitas - Dispersos e inéditos, Zéfiro, Sintra, 2019.