DOS LIVROS. 67

10-06-2020 09:32

Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões

 

Empregámos a palavra maniqueísmo como um sinal da gnose camoneana, não no sentido da corrente espiritual fundada pelo persa Mani. Poderíamos ter escrito «cátaros» ou «priscilianistas», em vez de «maniqueus». Este último termo é mais popular e é, sobretudo, à volta dele que se cristalizam as opiniões.

Desculpe-se o título do livro com a sua sugestão de uma aventura de piratas, mas se soubermos transpor aquilo que é imediatamente nele dado para o plano das significações, – o plano onde as imagens são para além de si –, a sugestão infantil tornar-se-á acutilante, logo capaz de se cruzar dolorosamente com os problemas dos homens.

Não foi nosso intuito expor uma filosofia maniqueia porventura existente em Luís de Camões. Seria fácil desenhar um diagrama gnóstico com a ideia de Deus abscôndito (Canto X, 80), a emanação de uma primeira Inteligência Arquetipal (Canto X, 79) – «pensamento casto e puro, criador de todas as cousas», a esfera das potências celestes (Canto X, de 81 a 89), a esfera do mundo intermediário imaginal (Ilha do Amor), plano do mundo elementar, esse «caos confuso» onde o mal existe realmente. A finalidade dominante foi mostrar o facto irrecusável do paralelismo entre a imaginação de Camões e a de Zoroastro, na ideia de repelir o preconceito corrente da irrealidade do mundo subtil, que em nossa ignorância confundimos com o mundo evasivo da fantasia.

O desembarque dos maniqueus na Ilha de Camões significa também isto. Somente desembarcando na Ilha somos forçados a reconhecê-la como uma realidade. Para tanto, teremos de assumir a qualidade de «maniqueus», porque o sobrenatural, isto é, a face superna da natureza, só está ao alcance de quem assume essa qualidade.

Somente depois se torna possível cumprir o que vem significado nestes versos:

 

«Podeis vos embarcar, que tendes vento

E mar tranquilo, para a Pátria amada».

Assim lhe disse; e logo movimento

Fazem da Ilha alegre e namorada».

 

Versos equívocos, pois tanto podem querer dizer, numa ou noutra de duas possíveis interpretações sintácticas, («da Ilha» é complemento determinativo ou complemento circunstancial de lugar?), que partiram da ilha de regresso a casa ou que a trouxeram consigo. A análise sintáctica d’Os Lusíadas nem sempre é um exercício inútil e torturante.

O último sentido é, na harmonia da nossa interpretação, altamente provável.

Que significa fazer movimento da Ilha?

A tentação é pensar que o poeta sugere pela expressão que a potência divina da imaginação se transforme num movimento de transfiguração da Pátria. Só que Portugal, no tempo de Camões, vinha de iniciar um longo ciclo de quatrocentos anos, de quarenta decénios ou de quatro séculos. Dir-se-á, dentro da imagética própria deste estudo, que as legiões de Ahriman passaram a reger definitivamente os nossos destinos. «Uma austera, apagada e vil tristeza» enublou a alegria auroral da Ilha e quando, passados esses quatrocentos anos de deserto da alma, se começou de novo a ouvir a «angélica soada» dos poetas ou o severo dizer dos filósofos, quando vários movimentos espirituais de inequívoco sinal disseram ter chegado a hora da transfiguração logo movimentos contrários se formaram, aos quais uma longa, astuciosa e ardilosa campanha tinha dado todos os recursos e todas as armas para se imporem na opinião pública e deixarem na sombra a misteriosa jasminácea do pensamento português.

Duas figuras dominaram, durante meio século, o círculo das acções e reacções mentais dos portugueses: António Salazar e António Sérgio. Ambos têm de comum um critério cheio de severidade para com todas as formas de imaginação que se apresentam, nos poetas e nos prosadores, com a finalidade secreta ou patente de dizerem o mistério. A imaginação é, no pensamento de um e de outro, uma diversão da mente humana, que deve ser contida nos seus limites, onde deverá manter-se sem qualquer pretensão gnósica. É à própria imaginação, dada como a forma do irracional, que é atribuída, num a desordem política, no outro a desordem mental que caracterizam a vida portuguesa. Ordem e progresso ou ordem e clareza eis o ideal proposto por estes dois mestres das gerações actuais. António Salazar, numa entrevista, mandou Leonardo Coimbra deixar-se de filosofias e dedicar-se a escrever versos; António Sérgio disse a Teixeira de Pascoaes que continuasse a escrever versos, mas não se metesse com a filosofia. Para que ficasse tudo na mesma, foi sob a égide de António Sérgio que se fez a revolução contra Salazar.

A proposta de claridade ou de clareza, de ordem ou de coerência, no pensamento e nas suas expressões, procede como se a obscuridade e a desordem fossem próprias da imaginação, esquecendo-se quem propõe de que as «imagens» são dispositivos de captação da luz muito mais eficazes do que as «abstracções», afinal de contas imagens também, mas reduzidas a um mínimo de intensidade, meros sinais telegráficos do mundo sensível e das suas relações. Mais ou menos velada, a luz é a fonte originária da imaginação, a qual não se transcende reduzindo-se, mas passando a outro plano, – o da intelecção –, ali onde é em si a claríssima esfera de que nos fala Camões. Só que a visão do inteligível pressupõe que se tenha condensado em si suficiente energia luminosa pela contemplação e activação da imagem primeira entre todas, – aquela que cada um de nós pode formar de si na intimidade mais profunda do seu ser. O morse da abstracção traduz-se numa perda contínua de energia que corre, como um fogo-fátuo, sobre a superfície das coisas.

Nem sempre aqueles que se apresentam como defensores da clareza nas ideias, são como pretendem partidários da luz porque procedem ignorando a noite onde as estrelas brilham. São espíritos irrealistas que não têm em conta as múltiplas condições de produção da luz ou de qualquer outra energia afim. Falam dela como se a conhecessem antes da treva.      

Dissemos que as imagens são dispositivos de captação de energias subtis. Deixadas a si próprias e sem relação com a luz imperitura de onde provêm, isto é, sem relação com o uno em que todas são e que só a filosofia prevê e vislumbra, funcionam como baterias semi-descarregadas, são, na literatura, a poesia sem sentido do mais alto e do que mais importa. Desculpe-nos o leitor a linguagem mecânica, mas com os cartesianos convém ser cartesiano.

A esta separação ou cisão da poesia e da filosofia há que chamar aqui, para nos mantermos fiéis à imagética deste estudo, o fender-se da ilha ou o quebrar da ponte Chinvat. Não significa isso que queiramos propor uma poesia filosófica, mas temos de dizer uma filosofia poética. Um dos poucos exemplos de poesia filosófica é a de Antero de Quental, aliás o poeta mais caro a António Sérgio. Em Antero de Quental, a imagem não é vivência ou símbolo, mas alegoria. O exemplo mais alto de filosofia poética é o de Leonardo Coimbra, aliás o pensador mais odiado por Sérgio e por Salazar. Nele, a ideia é a flor enorme que abre na floresta esplendorosa da imaginação; a ideia é vivência da qual nenhuma imagem pode ser a alegoria.  

A negação do mundo intermediário, da sua realidade, existência e objectividade, pela sua conexão com a fantasia, a mística, a intuição e o irracional, teria como consequência, a tornar-se completamente vitoriosa, a ruína da poesia e da filosofia e a suspensão do movimento essencial da alma que aspira à verdade. Esse mundo, porém, causa pavor e alguns se negam, por fé débil, a tomá-lo a sério.

Confundida a imaginação activa com a dispersiva fantasia, contra a poesia e a filosofia dos «imaginativos» levantam os adversários da gnose a exigência de um pensamento prático, «de pés fincados na terra». A teorização desta experiência atrai e solicita os estratos profundos deste povo da experiência, que atravessou os mares, edificou cidades e civilizações e «compassou» o universo. Há, porém, que não confundir a experiência, forma de conhecimento no perigo, com a preocupação de governar bem a casa, de fincar os pés na terra para nela ficar preso. A experiência do nómada do espírito não é a experiência do sedentário.

Aqui ocorre a relação, sugerida por Camões, do povo português com o tomismo de Tomé, inconfundível com o de Tomás (de Aquino), este importado ou invasor.

Sempre o nosso poeta sobrepõe o saber de experiência ao saber da razão. Tomé, ele no-lo lembra, «a Jesus Cristo teve a mão no lado». E, no Canto IX, escreve sobre o amor gnóstico:

 

«Mais vale experimentá-lo que julgá-lo,

Mas julgue quem não pode experimentá-lo.»

 

Saber válido é, sobretudo, «saber de experiência feito». Mais de uma vez, reaparece, como se sabe, a mesma ideia n’Os Lusíadas.

Aquilo a que devemos atender neste ponto é à dupla relação que se pode estabelecer com o mundo intermediário, indicada naqueles dois famosos versos: relação de conhecimento por contacto ou relação de conhecimento pela razão. No Canto X se diz de Deus abscôndito que é Saber alto, profundo e ilimitado e, algures numa ode, que quem criou todas as coisas foi «um pensamento casto e puro». É a esse Saber e a esse pensamento que está referido o conhecimento operativo. Camões não reduz à Terra e seus limites o campo da experiência. O seu sentido prático tem a loucura do invisível.

Aqui se detêm muitos que, dotados embora de espontâneo amor à verdade e de lúcida inteligência, temem descer à intimidade de si próprios, dos outros e do mundo, às suas infinitas extensões, onde se levanta a realidade da Imagem, cuja beleza poderosa e sacrossanta desperta nas almas desejo, espanto e medo. Preferem, então, descansar na ideia de que, no celeste, tudo está resolvido, restando ao homem ocupar-se do terrestre.

Assim, o desembarque dos maniqueus na Pátria do regresso e donde, talvez, nunca tenham chegado a sair, encontra o mesmo deserto que já era na hora da partida. Os últimos cem anos são disso o sinal inequívoco. Onde estão aqueles que poderiam ter seguido o ensino iniciático de Sampaio Bruno ou o magistério iluminado de Leonardo Coimbra? Quem pôs de lado, do outro lado da filosofia, os poetas que lhe são afins, Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa? Porque não seguiram o fundo apelo do movimento de filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e os avisos do grande pensador gnóstico José Marinho? Porque não ouvem a voz paraclética de Agostinho da Silva? Como deixam que outros tentem deter tão significativos «movimentos» da ilha, pelo ardil de «normalizar» o excepcional ou de «silenciar» a palavra demasiado evidente ou de «caluniar» quando uma coisa e outra já não são possíveis?

Queremos assim dizer que os maniqueus andam dispersos. Todavia, exatamente à volta de Luís de Camões começam a levantar-se vozes, aqui e ali, que lançam evidente perturbação no camonismo de Estado. A mais nítida é a da Fiama Hasse Pais Brandão. Todavia, outros como José Hermano Saraiva, Maria Antonieta Soares de Azevedo, António José Saraiva e António Carlos Carvalho têm contribuído decisivamente para mostrar a nova luz a figura interior e exterior do poeta. A hipótese de criptojudaísmo não é, claramente, a deste estudo. Preferimos determinar a orientação espiritual de Luís de Camões, segundo uma linha que tanto pode congraçá-lo com o cristianismo como com o islamismo ou o judaísmo. A impressão que resulta é a de que, para o autor de Os Lusíadas, as religiões de nada decidem, presas que estão ao plano denso em que actuam. Há uma gnose cristã, uma gnose judaica, uma gnose islâmica e, nas três religiões do livro, esse elemento comum sempre defrontou adversários ferozes; por isso mesmo, a gnose camoneana não pode definir-se por nenhuma delas. É na Pérsia que os estudiosos situam o centro de onde derivam, circulando pelo mundo, as várias correntes de sentido gnóstico, nessa Pérsia à qual sempre o poeta se refere com palavras de exaltação: «Olha da grande Pérsia o império nobre».

Não é o melhor modo de desfazer o conflito de opiniões religiosas já iniciado à volta d’Os Lusíadas vir agora propor uma doutrina comum a todos os portugueses, da qual o poeta excelso seja a expressão?

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, 2015)