INÉDITOS. 01

18-01-2014 16:35

Seja qual for o ponto de vista em que se coloque -- o teorético, o biográfico ou o histórico --, o leitor deste extraordinário escrito inédito de António Telmo não deixará de se dar conta de que está perante um texto da maior importância. Saída do espólio do autor de Arte Poética, a carta dirigida, mas nunca enviada, ao irmão do seu signatário -- o filósofo Orlando Vitorino --, cujo objecto incide em boa parte sobre a história da tradição judaica, surge agora comentada pela voz autorizada de António Carlos Carvalho, e inaugura uma das linhas de força do projecto António Telmo. Vida e Obra: a publicação de inéditos ou dispersos télmicos nunca antes reunidos em livro, adrede acompanhada daquele módico de estudo que a sua apresentação ao leitor requer. Pelo meio, damos a conhecer o escrito de Orlando que motivou a missiva.

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Ao Orlando Vitorino sobre “O Processo das Presidenciais 86”

António Telmo

 

Recebi a tua Epystola ad Parvos, à qual quiseste dar a forma de novela (no sentido que Álvaro Ribeiro dá à palavra na Razão Animada), li-a encantado de uma ponta a outra, (o episódio de Borba, por exemplo, é uma obra prima do género literário) (…). A apresentação tipográfica (papel, formato, capa, etc.) é uma maravilha condizente.

 

Um dos valores da tua inteligência sem par é o sentido das relações imediatas, preconizado por Leibniz, o sentido da evidência da verdade. A verdade é, em si, o que é evidente; basta olhar, mas os homens não seguem o caminho mais breve entre dois pontos reais e, cegos para si e para Deus, procuram no futuro ou no passado, no oculto e no remoto, o que é necessariamente presente aqui e agora, porque a verdade do espírito não se pode conceber senão como acto puro invencível, que elimina eternamente a distância e todo o intervalo. E é por isso que a fenomenologia do mal só pode constituir uma ilusão teatral ou uma novela ridiculamente diabólica, cujos efeitos nefastos se desfazem mostrando: basta tirar umas tábuas, deixar correr o espectáculo com o ceno à vista e, terminado quando, com o vermos, o quisermos terminado, voltar a pôr os “bonecos” na caixa onde se guardam as coisas inúteis.

 

[VARIANTE A:] Infelizmente não pude fruir um prazer intelectual análogo, ao ler o capítulo sobre “Os Camitas” (p. 33). Quando passei a idade dos 14 anos, que é, segundo os talmudistas, a idade em que é permitido ao rapaz ler e estudar o Pentateuco, tive-te como meu primeiro mestre. Depois seguiu-se o Eudoro de Sousa, o José Marinho, o Álvaro Ribeiro, o Agostinho da Silva e o Max Hölzer, que me prepararam, passando como quem não quer, para conhecer o único e verdadeiro mestre, de cujo nome o meu, teu Pai, pôs o remoto sinal etimológico ao baptizar-me de Telmo e até os que gostam de utilizar um diminutivo serviram, sem saber, a mesma ideia. Recordo nitidamente preceitos e ensinamentos dessa época distante, em Arruda dos Vinhos, quando o Anjo do Bem passou a assistir-me ao meu lado direito. Um deles era, e é, o seguinte: “Nunca devemos combater uma doutrina apresentando-a na sua forma degradada”. Efectivamente, o espíri- (…)[1]

 

[VARIANTE B:] De todo o livro, aquilo que mais directamente me interessou foi o capítulo sobre “Os Camitas”, porque também eu pertenço ao número dos ocultistas, nascidos do “desprezo para com os activistas políticos e da agressividade para com a vazia cultura oficial”. E aqui também gostei de concordar com o repúdio do guénonismo, embora esse repúdio, pela minha parte, seja por razões contrárias às tuas, porque assenta no facto de ele representar uma corrente adversa ao ocultismo, no qual René Guénon via, como viu no bergsonismo, na filosofia alemã e em Goethe e não só na ciência ocidental, um fenómeno de origem diabólica, para o que muito contribuiu certamente a sua educação familiar católica, decisiva na posição polémica que tomou em relação à Maçonaria em que foi iniciado e que mereceu os aplausos calorosos dos eclesiásticos que, na época, dominavam a burguesia francesa. Os agrupamentos que se formam à volta de René Guénon não são mais do que a manifestação desviada de um catolicismo subconsciente que tem vergonha de se mostrar tal qual é a si próprio.

 

O ocultismo ou o que correctamente se pode entender por esta palavra recentemente criada é o domínio das Ciências Ocultas. O estudo e a prática da magia invocatória aparece, no Fausto, antes do pacto com o diabo. Aquele que Deus, no Prólogo, considera o seu primeiro servidor, “que O procura ardentemente na obscuridade e quer, em breve, conduzir para a luz” só depois, pelo pacto com o diabo, arrisca a sua alma. O espírito do mal é o espírito que nega, mas é também ele quem restitui ao velho sábio a juventude perdida, lhe dá o amor das mulheres e o poder político junto do Imperador; o que o salva é o conhecimento, que soube manter e aumentar através das vicissitudes do mal. Se o pacto pode ser interpretado só como simbólico, parece querer-nos dizer Goethe que os homens superiores têm todos uma inquietante e misteriosa ligação com o espírito do mal, mais ou menos consciente, consoante o grau. Ela é bem evidente em Leonardo Coimbra e em Teixeira de Pascoais, descarada em Fernando Pessoa, profundamente reflectida em Álvaro Ribeiro e Sampaio Bruno, constantemente poetizada em José Régio, dramática em José Marinho. Sem luciferismo não há arte, de filosofar ou outra, mas o estudo das Ciências Ocultas faz-se sob a inspiração do Espírito Santo. Pelo menos, se mais não tivéssemos, bastar-nos-ia para o saber “A Tempestade” de Shakespeare. Compreende-se assim que Álvaro Ribeiro tenha escrito nos últimos anos de vida que só as Ciências Ocultas são capazes de nos descobrir a verdade. (Prefácio ao livro de Conceição Silva sobre “O Mistério dos Painéis”).

 

De facto, como tu dizes, carecemos de uma interpretação de Pascoais e de Leonardo Coimbra, em que o pensamento destes dois homens surja como a finalidade que “o ocultismo procura” e que tu defines, para o primeiro, como uma sabedoria, criada “desde a origem e para além da erudição, em símbolos poéticos com vivida experiência e conceptualizada intuição”.

 

Quando pões nesta sabedoria a razão do patriotismo, cuja exigência os ocultistas recebem imediatamente de Fernando Pessoa, como foi talvez o meu caso na História Secreta, e estabeleces como condição de aprofundamento, mais real, desse patriotismo o pensar Pascoais e Leonardo, evocas O Encoberto de Sampaio Bruno e, em meu entender, com perfeita razão, porque O Encoberto é, como se vê no final de A Ideia de Deus, o Messias dos cristãos novos, Senhor das Ciências deste e do outro mundo.

 

Custa-me dizer-to, (“Irmão de Orlando, mas mais irmão dos que sabem”), mas a tua interpretação de O Encoberto é incompleta e não tão correcta quanto pretende ser. Nunca Sampaio Bruno poderia ter identificado judeus e camitas. “Os judeus, – escreves – dividiram-se em semitas, ou descendentes de Sem, e camitas, ou descendentes de Cam, o filho que não honrou seu Pai”; Sem e Cam, com Japhet, são filhos de Noé e só muito tempo depois aparece Abraão, que vem do outro lado do rio, e dá origem, por isso mesmo, aos hebreus; Abraão é da linhagem de Sem e é a razão por que os seus descendentes são semitas; Israel é o nome que Deus pôs a Jacob; a designação de judeus julgo provir do nome da principal tribo israelita, a tribo de Judá. Os filhos de Noé são relativos aos vários ramos em que se dividiu a humanidade. Os semitas, que honravam Pai e Mãe seguindo o preceito de Moisés eram odiados pelos povos descendentes de Cam que não honrou seu Pai. A não correcção é importante, não por ser incorrecção, mas porque desvia a exacta interpretação do Encoberto que tem de procurar-se precisamente na oposição dos camitas aos semitas (estes, judeus e árabes); com Abraão acabaram os sacrifícios humanos, já que Isaac foi substituído por um animal, com Cristo, que representa Caim e não Abel, os sacrifícios animais foram substituídos pelas espécies vegetais do pão e do vinho. A Inquisição, filha de um catolicismo africano (palavras de Bruno), repõe, em nome de Cristo, os sacrifícios humanos. Os Reis e os Sacerdotes assistiam jubilosos ao suplício das vítimas por entre os apupos de gozo dos camitas. Os Jesuítas, ainda segundo Sampaio Bruno, combateram a Inquisição porque a Companhia se tinha organizado a partir dum grupo de conversos, possivelmente, não o diz Bruno, de conversos árabes, se a semelhança entre os exercícios espirituais de Santo Inácio e os exercícios espirituais sufis é, como mostra o jesuíta espanhol Asín Palacios, um facto inegável. Em Portugal, predomina o cristão-novo de origem judaica e em Espanha o cristão-novo de origem islâmica. Em Álvaro Ribeiro a filosofia portuguesa tem como missão realizar a síntese católica das três tradições.

 

São direcções que ficaram por explorar na tua interpretação e por isso a disse incompleta. Não é, porém, um pequeno capítulo que vem diminuir o valor do teu livro. O seu êxito também não sofrerá com isso. Em Portugal, entre as pessoas que escrevem, só eu e tu sabemos um pouco melhor do que os outros “a única coisa que importa”. Oxalá outros apareçam melhores do que nós e eu não posso deixar de admirar a inteligência que, através dos teus escritos políticos, abre caminho à consciencialização da nossa mediocridade geral e à exigência de filosofar como convém.

 

Do teu irmão           

António Telmo

 

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Os Camitas[2]

Orlando Vitorino

 

 

Na segunda conferência da noite, limitei-me a chamar a atenção para a exigência de uma correcta leitura da interpretação que Sampaio Bruno, em O ENCOBERTO, faz, não tanto do sebastianismo, como da decadência histórica dos Portugueses.

 

Há hoje entre nós numerosos ocultistas, fenómeno que, além de extensivo a diversos povos europeus, é o equivalente intelectual do revivescer da religiosidade por desprezo para com os activistas políticos e por agressividade para com a vazia cultura oficial. Esses ocultistas de origem e expressão intelectual chegam a organizar-se em agrupamentos “tradicionais”, como os de simbologia “templária”, realizam cerimónias e simpósios internacionais a que dão, paradoxalmente, a mais desocultante publicidade e ocupam, ainda mais paradoxalmente, cátedras universitárias. A sua via de iniciação mais frequente é a obra do francês René Guénon, obra de leitura muito fácil e sugestiva, sobretudo para adolescentes. Constitui ela um constante e azedo, embora fundamentado e justificável, requisitório contra a civilização ocidental, que reduz ao que resultou da ciência moderna, considerando-a uma profanação desvirtualizadora mas substituindo-lhe um sistema de rememorações orientalistas que desenvolve em círculos viciosos de semelhanças, sincretismos e identidades simbólicas. Os iniciados são, deste modo, levados a afastar, das imagens e dos símbolos, os conceitos e as noções, ou seja, a filosofia e o pensamento. Ficam a braços com símbolos vazios e imagens sem legenda. Ficam ignorando que a única iniciação intelectual na verdade que a religião guarda ou de que dá imagem e símbolo, é a filosofia, e disso temos o mais eloquente exemplo na biografia espiritual de Leonardo Coimbra da qual Santana Dionísio acaba de publicar o admirável e indispensável guia.

    

O inspirador sempre presente e exaltado dos nossos ocultistas é Fernando Pessoa. O ocultismo de Fernando Pessoa é de carácter erudito ou, como ele próprio dizia da erudição, parasitário, mas revela-se com originalidade na poetização de uma imagética para a história de Portugal. O que o ocultismo procura como sua finalidade é o que, não Pessoa (e ele bem o sabia e disse), mas Pascoaes, criou desde a origem e para além da erudição, em símbolos poéticos com vivida experiência e conceptualizada intuição. Os nossos ocultistas preferem, porém, o poeta-artista (para empregar uma distinção de Régio), que vai da imagem para o conceito, ao poeta-pensador, que vai do conceito para a imagem. E porque ao poeta-artista muitas vezes acontece ficar pelo caminho, se dispensam eles de seguir o caminho até ao fim.

 

Esta nebulosa de ocultistas poderá evanescer-se. Mas entretanto afirmou uma exigência de patriotismo que recebeu imediatamente de Pessoa, procurando agora transitar dele a Sampaio Bruno. Enquanto não ascender a Pascoaes e, de Pascoaes, a Leonardo, carece de uma correcta interpretação do autor de O ENCOBERTO, que começou já a ser preparada no 1.º volume do livro de António Quadros, PORTUGAL, RAZÃO E MISTÉRIO.

 

Sampaio Bruno não é um sebastianista, como muitos entendem. Pelo contrário: o sebastianismo afigura-se a Bruno uma expressão degradada de um messianismo universal. E o que, no seu livro, constitui o primordial elemento para a interpretação ou a filosofia da história de Portugal é, primeiro, o predomínio dos judeus que se instalaram tão profundamente entre nós que neles estão nossas raízes espirituais e étnicas; é, depois, o conflito entre camitas e semitas que dilacera a diáspora hebraica e se manifesta, explicando-a, na lenta, mas funda decadência dos Portugueses, desde o Séc. XVI até nossos dias. Dessa decadência, vê Sampaio Bruno que o segredo se encontra nas razões e fins que teve a Inquisição, estabelecida entre nós quase ao mesmo tempo em que se deu a enigmática expulsão dos judeus e o aparecimento do sebastianismo. Para aquém dos Autos-de-Fé e do Santo Ofício, para aquém da sua abolição, muito para aquém, a Inquisição ficou-nos no sangue. Há, em cada Português, um inquisidor, um inquiridor, um juiz. A nossa inteligência imediata é judicativa e nossa acção procede por juízos. A filosofia portuguesa, da qual Bruno foi o precursor senão, como entendia Álvaro Ribeiro, o fundador, é, porém, o contrário e o remédio dessa idiossincrasia degradante. Demonstra-nos e descreve-nos Santana Dionísio como Leonardo Coimbra opunha à inteligência judicativa a razão compreensiva e a bondade. José Marinho dava, a um dos seus primeiros ensaios, o título de NÃO JULGARÁS, ao mesmo tempo que denunciava o vício judicativo dos orientadores da “cultura oficial”, como António Sérgio. E Álvaro Ribeiro negava, em termos sistemáticos, o valor lógico do juízo.

 

Como, porém, identificar Inquisição e Judaísmo? Não foram eles, precisamente, irredutíveis opostos e inimigos? É o que Bruno explica. Segundo ele, certos sectores da Coroa, ou do Estado, como da mesma Igreja, contrariaram, primeiro, o estabelecimento da Inquisição; depois, os Reis e a Igreja chegaram a decidir pôr-lhe fim. Quem os impediu foi o povo. Bruno determina melhor: foi o povo de Lisboa e do sul do país. Autos-de-Fé, houve-os em Lisboa, mal chegaram a Coimbra e, ao avançarem sobre o Porto, depararam com a repugnância, a indignação e a oposição invencível das populações que assim impediram a sua realização, ao contrário do que acontecia na capital onde eram espectáculos jubilosos para os populares. Como entender? Diz-nos Bruno que assim:

 

Os judeus dividiram-se em semitas, ou descendentes de Sem, e camitas, ou descendentes de Cam, o filho que não honrou seu Pai. Um ódio sem tréguas os divide. Os camitas expandiram-se pela África do Norte e um ramo deles instalou-se na metade sul de Portugal. Foram eles que sustentaram, contra Deus, contra a Coroa e contra a Igreja, os Autos-de-Fé em que eram queimados, não os judeus indiscriminadamente, mas os semitas.

 

Esta distinção entre semitas e camitas é, digamos, viva e presente, nos países africanos. A população dominante na Argélia socialista de hoje, reconhece-se, afirma-se e orgulha-se como camita. Na África Central, no Congo por exemplo, singularizam-se as tribos negras cruzadas de camitas, como aquela a que pertencia Lumumba que, nos anos 60, abriu as portas ao socialismo russo. Depois dos Autos-de-Fé, depois dessa obsessão de julgar e inquirir, ou “levantar inquéritos” a tudo e a nada, os camitas do velho republicano, democrata e sábio que foi Sampaio Bruno, recorrem agora ao socialismo?

 

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Comentário

António Carlos Carvalho

 

Três considerações prévias:

  1. O movimento da Filosofia Portuguesa, precisamente porque é movimento em vez de sistema, não prescreve nenhum pensamento único, antes pelo contrário, defende e cultiva o pensamento livre de homens livres e a diversidade de pontos de vista sobre a Humanidade e os mistérios da Criação;
  2. A Bíblia continua a ser um volume encadernado que convém que figure nas prateleiras bem à vista mas que geralmente não é lido e, quando o é – fenómeno raro --, geralmente é mal entendido, sobretudo porque essa leitura, numa tradução duvidosa, não é, como deveria ser, acompanhada pelos comentários (a tradição oral depois compilada no Talmude, aliás queimado às carroças cheias, durante séculos, nas praças europeias, incluindo algumas portuguesas);
  3. Precisamente de acordo com os comentários, mas contemporâneos, do sábio Léon Askenazi, a mesma Bíblia pode ser entendida como uma recorrente insistência sobre a necessária construção da irmandade ou fraternidade, tomando como exemplos as histórias de Caim e Abel, de Sem, Jafet e Cam, de Abraham e Loth, de Isaac e Ismael, de Jacob e Esaú, de José e dos seus irmãos, de Moisés, Aaron e Miriam.

 

Vem a propósito recordar tudo isto quando lemos agora esta carta escrita por António Telmo, mas não enviada, para Orlando Vitorino. Dois irmãos, dois filósofos, cada um com a sua visão própria, neste caso, do sentido profundo da História de Portugal vista à luz de um dos relatos bíblicos que envolve justamente dois irmãos, Sem e Cam (e também um terceiro, Jafet, embora não aqui referido) e os seus descendentes. Orlando Vitorino recorrera a «O Encoberto», de Sampaio Bruno, para afirmar, numa sua obra, que os judeus dividiram-se em semitas e camitas, «conflito entre camitas e semitas que dilacera a diáspora hebraica e se manifesta, explicando-a, na lenta mas funda decadência dos portugueses.»

 

António Telmo, na sua carta-resposta (variante A) começa por elogiar o irmão, lembrando, significativamente, que aos 14 anos -- a idade em que, segundo os talmudistas, é permitido ler e estudar o Pentateuco --, o tivera como primeiro mestre, e depois (variante B) afirma que também ele, Telmo, pertence ao número dos ocultistas, desprezados pelo irmão no seu texto; o estudo das Ciências Ocultas, sublinha, faz-se sob a inspiração do Espírito Santo, e elas são, segundo Álvaro Ribeiro, capazes de nos descobrir a verdade; e mais: «o ocultismo procura a sabedoria, razão do patriotismo, cuja exigência os ocultistas receberam imediatamente de Fernando Pessoa, como foi talvez o meu caso na História Secreta». E acrescenta: «O Encoberto é, como se vê no final de A Ideia de Deus, o Messias dos cristãos-novos, Senhor das Ciências deste e do outro mundo».

 

E tal como na tradição judaica o filho deve respeitar o Pai mas mais ainda o sábio, Telmo, «irmão de Orlando, mas mais irmão dos que sabem», fiel a esse princípio, vê-se obrigado a dizer ao irmão que a sua interpretação de O Encoberto é «incompleta e não tão correcta quanto pretende ser» -- de facto, «nunca Bruno poderia ter identificado judeus e camitas». (E realmente não o faz: leia-se o que Bruno realmente escreveu nas páginas 159 a 161 da reedição de 1999 da Lello – e, já agora, esqueçamos o infeliz prefácio dessa mesma reedição). Sem, Cam e Jafet são filhos de Noé; só muito depois (dez gerações mais tarde) surge Abraham, «que vem do outro lado do rio e que dá origem por isso mesmo aos hebreus»; os semitas constituem a linhagem de Sem; a designação «judeus» vem da tribo de Judá; os camitas vêm de Cam, aquele que não honrou o seu Pai; há portanto uma oposição entre camitas e semitas, na exacta interpretação de O Encoberto; e que, se Abraham acabou com os sacrifícios humanos, a Inquição repôs esses sacrifícios, para gozo dos camitas. E tendo reposto a verdade dos textos, Telmo elogia novamente o irmão. E, tal como Jacob-Israel e Esaú, Telmo e Orlando seguiram depois os seus respectivos caminhos diferentes.

 

Pelo seu tom desassombrado, esta carta incita-me a levar mais longe o comentário. Recordemos o contexto da história de Sem e de Cam – e de Jafet, os três filhos de Noé.

 

Depois do Dilúvio, uma nova humanidade recomeça o seu caminho através destas três figuras: Sem (Shem), o «Nome»; Cam (Ham), o «quente»; e Jafet (a Beleza, o antepassado dos Gregos). Noé planta uma vinha, faz vinho, embriaga-se e expõe a sua nudez; Cam vê a nudez do Pai e incita os irmãos a partilhar dessa visão profanadora (algumas interpretações do texto bíblico vão ao ponto de sugerir que Cam castrou o Pai... porque desejava ser ele próprio o pai, o princípio de uma identidade nova, Canaã); no entanto, Sem e Jafet cobrem a nudez paterna com um manto simbólico; Cam viola uma das sete leis noaquitas (anunciadoras dos futuros Dez Mandamentos (Palavras) do Sinai), a que proíbe a mutilação de um ser vivo; de qualquer modo, lembra Raphael Draï, o exibicionismo etílico do pai e o voyeurismo castrador do filho representam uma regressão, uma reconstituição da humanidade anterior ao Dilúvio, um desafio feito a Deus e à sua Aliança (simbolizada pelo arco-íris). Cabe então ao Nome (Sem) e à Beleza (Jafet) repararem o mal feito: cobrindo com o manto do símbolo a nudez do Pai, afirmam já aqui o elemento novo que será depois proclamado no Sinai: Honra, isto é, «veste» o teu pai e a tua mãe para que os teus dias se prolonguem. Este é o quinto mandamento, curiosamente figurando na lista dos cinco mandamentos referentes a Deus, na primeira das Tábuas.

 

Refira-se ainda que uma tradução mais cuidadosa do texto desta narrativa mostra-nos  que Noé, ao acordar do seu torpor alcoolizado e apercebendo-se do que Cam lhe fez, proclama: «Isolado seja Canaã, escravo do escravo, será devolvido aos seus irmãos» (não se trata propriamente de uma «maldição» lançada sobre o filho de Cam, mas antes de uma ausência de bênção, da bênção dada por Noé a Sem, «Bendito seja o Eterno, Deus de Shem»; Canaã deverá ser servidor dos seus irmãos para que estes, os descendentes de Sem e Jafet, o ajudem a encontrar a humanidade plena perdida). Em vez de «raças» (que é coisa de cães e de cavalos, mas não de gente), devemos antes ver nestas três personagens, Sem, Cam e Jafet, a figuração de três linhagens espirituais, presentes ainda hoje, mesmo entre nós. Quantos camitas há por aí cheios de si mesmos, alheios à herança paterna (da pátria) e vivendo apenas de acordo com os seus impulsos espontâneos, julgando que tudo lhes é devido e que podem viver alheios à presença do Nome e da Beleza (outro dos nomes divinos)?

 

E quando Noé acrescenta «E habite Jafet nas tendas de Sem», fica formulada a esperança de que Jafet, ou seja, os Gregos, venham a habitar as tendas em que a Presença divina se manifesta. Efectivamente, de que serve a Beleza sem o Nome? O que é a Filosofia se não for portadora de uma herança profética? Convém ter sempre presente o que aconteceu no século VI anterior à nossa era comum: terminado o ciclo da profecia em Israel, começou o ciclo da filosofia na Grécia. Como se fosse uma passagem de testemunho para um novo ciclo da História. E se nós somos filhos de Atenas e de Roma, também o somos de Jerusalém. Temos três raízes, para a coisa ser perfeita, e não apenas duas.

 

Por outro lado, sabendo nós que os poetas herdaram o espírito profético, então a Filosofia Portuguesa, enquanto arte poética, tem o dever de buscar essa raiz e escutar a sua voz inspirada – e nesse sentido, por muito que isso custe ou cause incómodo a alguns, devemos mais a Jerusalém do que a Atenas ou a Roma. Por isso Álvaro Ribeiro e António Telmo falavam do nosso subconsciente hebraico...

 


[1] Nota do editor: Aparentemente, e ressalvando a possibilidade de extravio de alguma folha do conjunto dactilografado, António Telmo interrompeu aqui, no final da primeira folha A4 do dactiloscrito, o desenvolvimento de ideias que o referido capítulo sobre “Os Camitas” do livro de Orlando Vitorino lhe suscitava, para iniciar uma nova reflexão sobre o mesmo capítulo na folha seguinte.

[2] In Orlando Vitorino, O Processo das Presidenciais 86, Lisboa, 1986, pp. 33-34.