INÉDITOS. 07

16-03-2014 12:20

São onze páginas manuscritas num bloco de apontamentos de António Telmo que agora se revelam, inéditas, ao leitor, provindas do seu espólio. Encerram o presumível esboço, necessariamente inconcluso, de um escrito (ou livro) que o filósofo intitulou Autobiografia e Sobrenatural. Nele se contam episódios vários, vividos ao longo de décadas, em diversos lugares do seu itinerário biográfico. Trata-se de brevíssimos quadros narrativos onde os sucessos oníricos e as indicações astrológicas se entrecruzam e preponderam. Numa dessas páginas, de escrita seca, despojadamente fotográfica, Telmo limita-se a remeter para passagens já publicadas nos seus livros; noutras, deixa notas auxiliares da composição e apontamentos para mais tarde desenvolver. Num destes últimos tópicos, que diferenciadamente se transcrevem em itálico e entre parêntesis rectos, uma operação aritmética de subtracção, tendente ao cálculo de um determinado ano, permite datar a feitura do conjunto: o ano de 2008.   

Autobiografia e sobrenatural

 

 

Premonição

1945. Em Sesimbra, com 18 anos. Convívio frequente à volta de uma mesa no café com tuberculosos, seus amigos.

            Distinta, natural, uma voz interior pela noite: “Não estejas melancólico se não entuberculizas”.

 

Os guizos

1955. Em Lisboa, no meu quarto de estudante. Uma vez deitado, fiquei, antes de me voltar para o lado para adormecer, a olhar para cima. De repente, um som estridente de guizos entrou fisicamente (ou sentido como tal) pelos dedos dos pés e veio subindo pelo corpo até sair pelo occiput evanescendo-se. Todavia, passados alguns instantes, de novo o mesmo som entrando pelos pés e saindo pela cabeça. Quando passava pela zona do plexo solar, tinha a sensação tremenda de que me estavam arrancando a alma.

            Veio ainda terceira vez, mas desta vez a passagem por essa região do plexo solar tornou-se ainda mais assustadora. Não continuou para cima, porque rezei a Avé Maria. Desapareceu logo ali. Depois tudo ficou calmo de uma imensa serenidade. 

 

2.ª Premonição

1958. Em Beja, onde era professor pela primeira vez. Tornei-me caçador.

            Convidado para uma coutada, durante a noite sonhei que mataria 24 perdizes.

            Enquanto comíamos a açorda matinal, contei o sonho aos outros caçadores. Como era um novato, riram-se de mim. Quando a caçada terminou, eu tinha 23 perdizes. Estava empatado com o mais exímio dos outros caçadores. Este disse-me: Vamos desempatar. Quem matar primeiro uma peça, ganhou. Se for uma codorniz vale uma perdiz.

            Cumpriu-se o sonho. Nenhum deles falou no acerto da premonição. O sobrenatural assustava aqueles caçadores.   

 

O Maggid

1963 (1). Évora. A mesma voz que ouvira em Sesimbra, eram exactamente três horas da noite acordava-me para me dizer: “O soneto sobre Gomes Leal de Fernando Pessoa não é o horóscopo de Gomes Leal, mas o horóscopo de Fernando Pessoa”.

            Tinha aprendido a traçar horóscopos quatro horas antes com o José Luís Conceição Silva. Uma colega, dias antes, quando foi do meu aniversário a 2 de Maio, tinha-me oferecido o livro A Vida e a Obra de Fernando Pessoa por João Gaspar Simões. Nele encontrei a data do nascimento do poeta, com a indispensável hora.

            Em Filosofia e Kabbalah mostro pormenorizadamente que a voz tinha razão.  

 

Astrologia

1978. O primeiro horóscopo que fiz foi o meu, naturalmente. Vi, ou supus ver, através dele que a progressão do Sol criava em 1978 uma quadratura com Urano que significava, em meu entender, a minha morte.

            Pensei nisso durante anos, mas fiz por me esquecer à medida que a data se aproximava, o que consegui.

            Vinha de Lisboa para Estremoz. O vidro do carro do lado esquerdo deixava passar o ar por uma estreita fresta. De súbito adormeci ao volante. O leve som no vidro transformou-se no som de um vento de tempestade. Acordou-me. Ia precisamente a sair da estrada. Um golpe de volante e o perigo passou.

            Dois dias depois: vinha de Beja para Estremoz, com pressa (130 Kms. à hora) para assistir, como orientador, à aula de uma colega. Entre o cruzamento para São Manços e Reguengos de Monsaraz, o carro despistou-se, embateu contra uma berma alta ao lado de um sobreiro, caiu de lado e endireitou-se. O pára-brisas foi expelido para longe para fora da estrada, mas não se partiu. Chovia e o campo estava lamacento.

            Não me lembro do susto, mas deve ter sido violento. Deu-se certamente quando o carro mudou de direcção, incontrolado, indo bater contra a berma. Assisti, depois, a tudo tranquilamente, sem qualquer sombra de medo. Deve ter durado 2 ou 3 segundos a trajectória do carro até ao embate. Tudo se passou, porém, donde eu assistia, devagarinho. “Vamos ver, pensei, se o carro não bate contra a árvore!” Ao capotar, disse para mim mesmo, enquanto me via caindo contra o vidro à minha direita: “Oxalá não enfie a cabeça no vidro!” Voltou o carro à posição inicial, sobre as quatro rodas e eu vim do vidro para o meu lugar de condutor. Desejei: “Deus queira que não bata com a cabeça no volante! Não bati. Fiquei sentado na posição de condutor. Atordoado, saí do carro. Vinham correndo para mim dois homens:

            – “Há alguém dentro do carro?”

            – “Não.”

            –  “E você?”

            –  “Julgo que estou bem.”

            –  “Que sorte! Foi espectacular!”

 

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[Na reflexão falar que não se vê de cima

Falar sobre a astrologia

A opinião de Hölzer: V. foi salvo.]

 

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[2008

    42

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1966

 

Mostrar como neste segundo sonho há um pormenor que não coincide com os acontecimentos]    

 

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O astrólogo

1965 (2). Em Lisboa, sozinho num quarto. O Rafael Monteiro procurou-me e insistiu comigo para que eu fosse ao astrólogo e vidente Hórus. Acedi, depois de alguma resistência.

            O homem disse-me que em 21 de Fevereiro do ano seguinte (estávamos em Agosto de 1965) eu iria para o Brasil, que encontraria no dia 1 de Outubro (também de 1965) a mulher com quem casaria, a mãe dos meus filhos, que não tinha que fazer nada para conseguir sucessivos êxitos na vida, que dissesse sempre que sim aos convites que me viessem a fazer.

            No fim disse-me:

            – Só não sei quem é você.

            Respondi: – Sou Professor.

            – Também me interesso por ocultismo.

            – Não, não é nada disso.

            Tudo quanto anunciou cumpriu-se exactamente.

 

Terceira premonição

O desastre

1978. Outra premonição. Novamente em sonho. Vejo-me no carro e numa estrada antes de Borba. Penso que tenho tempo para ultrapassar antes de uma curva. Aparece um carro. Travo. O meu bate ao de leve na frente do carro que pretendia ultrapassar. Insultam-me. Sigo, já livre de tudo aquilo, em direcção a Vila Viçosa.

            Sonhei isto pela manhã. Era um sábado. Reunia-me, como de costume, com a minha tertúlia de Vila Viçosa. Quando seguia para lá, no mesmo lugar deu-se exactamente o que o sonho anunciou. Só a pequena pancada no outro carro não se verificou.  

 

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[O quadro da Cintia] (3)

 

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José Marinho

1975. Às três horas da noite, acordei. Sentia-me inquieto. A inquietação chegou a tal ponto que me levantei e passeei pelo quarto até sentir que era capaz de voltar a deitar-me e de adormecer.

            De manhã, telefonaram-me de Lisboa.

            – O José Marinho morreu.

            – A que horas? Quando?

            – Às três horas da noite.

            Vim imediatamente para Lisboa. O seu corpo estava sozinho na cave de uma igreja.

 

As Águias…

(contado em Horóscopo de Portugal)

19…

 

As Árvores são Chamas

 (contado em Teoremas de Filosofia)

19…

 

A Alucinação Visual

 (contado em Viagem a Granada)

19…

 

A Fogueira de São João

19… Dei uma aula em Évora, na Universidade, a pedido do António Cândido Franco. No dia de São João.

            Uma porta da sala dava para um pequeno claustro, onde se viam as cinzas de uma fogueira. Quando comecei a falar, alguém disse:

            – A fogueira acendeu-se.

            Quando acabei de falar, a mesma pessoa exclamou: A fogueira apagou-se.

 

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[Sonhos verdadeiros e sonhos falsos

A imagem total, sem aparecimento sucessivo das imagens, à medida que vão sendo lembradas.]

 

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O Álvaro Ribeiro não morreu

19… Três dias depois de ter acompanhado os restos mortais do saudoso filósofo, tive um sonho nítido como uma fotografia.

            Uma esplanada num recinto com arcos, numa espécie de claustro onde se tinham posto mesas. Álvaro Ribeiro era a única pessoa que ali estava quando eu cheguei. Estava sentado a um canto com o seu fato castanho. Aproximei-me e pus-me a falar com alguma presunção. Tirou do bolso a sua bela caneta tão minha conhecida, olhou para mim com alguma censura no olhar e fez como se estivesse a escrever.

            Interpretei: Deixa-te de conversas. Escreve!

            Afastei-me envergonhado. Ao lado havia um corredor como há nos claustros, onde encontrei o F. Sottomayor. Escondemo-nos atrás de uma coluna, donde podíamos ver o Álvaro Ribeiro sem sermos vistos. Um homem aparentando 30 ou 35 anos, de fato completo mas pobre, estava agora onde eu tinha estado de pé a falar com ele, que o ouvia agradado.

            – Estava vendo?, disse eu para o Francisco Sottomayor, fomos todos enganados. O Álvaro Ribeiro está vivo. Enganou-nos simulando o seu funeral.

            Numa porta, ao fundo do corredor estava o Espírito Santo, um dos nossos condiscípulos. Dei-lhe logo a notícia de que o Álvaro Ribeiro nos tinha enganando, que estava vivo.

            – Ah!, exclamou o Espírito Santo, só agora é que o sabem? Ainda ontem estava no Café Colonial.

 

            Contei no dia seguinte o sonho ao Francisco. Disse-me, com espanto de ambos, que o marido da Conchita, afilhada do filósofo, tinha tido um sonho análogo, onde se mostrava que tínhamos sido todos enganados.

 

António Telmo   


 

(1) 1961 no original manuscrito. Há, porém, lapso manifesto de António Telmo na fixação do ano, que é o de 1963 (nota do editor).
(2) 1966 no original manuscrito. Há, porém, lapso manifesto de António Telmo na fixação do ano, que é o de 1965 (nota do editor).
(3) Aliás Cynthia. António Telmo refere-se à pintora, sua amiga, Cynthia Guimarães Taveira (nota do editor).