INÉDITOS. 66

09-10-2016 15:45

No dia em que se completam trinta e cinco anos sobre a partida de Álvaro Ribeiro, damos hoje a conhecer, em singelo preito de evocação e homenagem, a parte inicial de um dos mais importantes manuscritos inéditos que se guardam no espólio do seu discípulo António Telmo. Os Diálogos do mês de Outubro destinavam-se a integrar o livro Filosofia e Kabbalah, naquela que seria a sua primitiva versão. São dedicados pelo autor “Ao filósofo do meu alvoroço, meu terceiro e verdadeiro mestre, Álvaro Ribeiro.” Os diálogos passam-se no Vale do Infante, na Serra d’Ossa, próximo de Estremoz, onde, na época da composição, se realizaram várias conferências proferidas por autores da Filosofia Portuguesa, como o próprio António Telmo, António Quadros, Orlando Vitorino e Pinharanda Gomes, entre outros. Parecem, pois, ser um eco ou um reflexo desses encontros.

O texto que agora se publica é apenas uma parte – a inicial, como dissemos – do conjunto dos diálogos, que não constituem obra acabada e estão a ser transcritos, para serem depois sujeitos a edição literária. Assim, a versão parcial que aqui se apresenta é também uma versão provisória, podendo vir a sofrer alterações.  

 

Diálogos do mês de Outubro

 

Ao filósofo do meu alvoroço, meu terceiro e verdadeiro mestre, Álvaro Ribeiro.

 

Outono e Outubro (oito e outo)

 

Têm de ser três interlocutores: um católico, um anti-católico orientalista, um católico martinista. Os três são filósofos. Entendem-se enquanto filósofos.

 

1.º interlocutor: uma coisa é a religião, outra a filosofia.

2.º interlocutor: a filosofia é superior a todas as religiões, mas não as nega, compreende-as.

3.º interlocutor: a religião é sempre católica, etc….

 

Nomes: Eudoro, Marinho, Álvaro.

 

Lugar em que decorre o diálogo: o Vale do Infante, em Estremoz.

 

Tarde serena de Outubro. A mesa está sob uma latada. No fundo da paisagem a ocidente são montes.

 

O Vale do Infante é um lugar aprazível da Serra d’Ossa, a doze quilómetros de Estremoz, um dos poucos oásis que ali restam numa terra secada pela rede insaciável do eucalipto. O aglomerado das casas está no fundo da vertente que desce da estrada ao alto para uma ribeira em baixo, o vale abre-se largamente para o lado do poente e ali os olhos podem saborear a alegria de pousarem na distância. Em frente da moradia há um pequeno terraço onde tiveram lugar estes diálogos do mês de Outubro.

 

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Explicação

 

Se este livro merecesse a atenção dos investigadores do obscuro, os três seriam, certamente, identificados como o Eudoro de Sousa, o José Marinho e o Álvaro Ribeiro. Num certo sentido, todos foram mestres do autor, mas, na verdade, somente o terceiro me considerou seu discípulo numa carta que guardo comigo. Observará o leitor que, porventura, conhece a obra escrita destes três homens, que o pensamento de cada um dos interlocutores do Vale do Infante não coincide com o pensamento de cada um daqueles. A coincidência é apenas simbólica. Do Eudoro de Sousa se pode dizer que sempre foi um católico ortodoxo que transferiu para a religião grega a crença, impedida pro razões pessoais, de se manifestar aqui e agora; do José Marinho disse um “estrangeiro” que passou por nós que a sua filosofia era a magnífica versão portuguesa do Tao Te King e, mesmo que nos pareça mal a redução, não podemos deixar de reconhecer nele o gnóstico, o oriental, o pensador da luz e do abismo; Álvaro Ribeiro é o católico ocultista, o cristão novo, o sefardi converso.

Neste sentido e porque não há coincidência de pensamento, pudemos fazer de cada nome um símbolo. Eudoro, o bem dotado, transporta consigo o dom inestimável da ortodoxia; Marinho é o que sobre aos altos mastros do céu e daí contempla a vastidão do abismo; Álvaro é o filósofo do alvoroço, o núncio apostólico da Terceira Idade.

Na verdade, as três perspectivas, que neles se significam, coexistem no espírito do autor deste livro. Pu-las a conversar umas com as outras e procurei ser o quarto que as conduz como um pastor. Os espíritos em quem as ideias vivem sem a concorrência doutras ideias mereceram dum esoterista célebre o ápodo de “autómatos”. É o caso da generalidade das pessoas: dominadas por ideias sem concorrência, são uma espécie de hipnotizados incapazes de sonhar sequer que haja mais verdade. Noutras pessoas, a concorrência torna-se um caos; não há uma dominante que harmonize entre si os vários aspectos do horóscopo mental. Em mim, o católico ortodoxo da tradição familiar e o ocultista que procura fora do catolicismo aquela verdade esotérica que é pertença de todas as religiões vêm conciliar-se ou harmonizar-se no católico ocultista, que vê no Homem o nome de Deus que devemos santificar. Estes assuntos não podem ser computorizados. Daí resultará talvez a indiferença do leitor vulgar. Mas nem todos são leitores vulgares. Alguns sabem que o problema do catolicismo é, em Portugal, o único problema.

A Igreja fundada por Cristo em Pedro permanecerá até ao fim dos séculos. Quem souber compreender o trabalho de João Paulo II, nosso Papa admirável, que, segundo a profecia de São Malaquias, já cumprida, imitará o Sol nas suas viagens (de labore Solis) não poderá ver na grande divisão que opõe passadistas e progressistas senão um episódio histórico destinado a sucumbir às mãos do tempo. Acusado por uns de comunista, de maçon, e até de seguidor do ensino de Rodolfo Steiner não é apreciado pelos outros que gostariam de o ver favorecer o materialismo ateu, rompendo com a tradição esotérica definitivamente cristã. 

 

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Primeira conversa

 

José

Convido-vos a sentir este momento como convém que seja sentido, antes de começarmos a conversar. Sabeis o que significo por sentir: uma perfeita atenção à paisagem, ao lugar, à hora e, ao mesmo tempo, a quem, em nós, presta atenção. Trata-se de realizar aquilo a que Plotino chamava uma sinestesia. Criaremos, segundo as regras, o éter para a comunicação dos nossos espíritos, que, caso não seja assim, ficarão separados, como é habitual entre os espíritos humanos, por um elemento denso.  

 

Álvaro

O Conde Joseph de Maistre nos seus Serões de São Petersburgo, constituídos por onze conversas a três, avisa contra os perigos das reuniões do homens pois o três suscita a presença de um quarto, mas invisível. O Timeu de Platão começa assim: Um, dois, três. Onde está o quarto?

Compreendo muito bem que você pretenda que preparemos as nossas almas para que o quarto lugar não seja ocupado por um espírito indesejável.

 

Eudoro

Recordo-vos, meus senhores, e perdoarão ao católico que vo-lo recorde, que o Mestre de toda a sabedoria diz, nos Evangelhos, que onde estiverem três ele estará presente. Mas Jesus Cristo falava aos Apóstolos, aos Discípulos. Por mim, que não recebi a ordenação sacerdotal, preferiria que puséssemos de parte essas preocupações, dando à religião o que é da religião e à filosofia o que é da filosofia. Para rezar tenho as igrejas e, se rezo fora delas, no silêncio nocturno do meu quarto ou em família, faço-o ainda de acordo com as prescrições eclesiásticas. Há, como sabeis, um texto fixado para as orações. Creio não me enganar pensando ser aquilo que o nosso amigo nos aconselha uma espécie de oração, na qual participa muito mais o sentimento da natureza do que o sentimento de Deus. Perdoem-me, mas não tenho culpa de ver qualquer coisa de pagão naquilo que você, José, aconselha e você, Álvaro, subscreve.

 

Álvaro

Eis um belo e difícil assunto para conversarmos, as relações da filosofia e da religião. O problema parece ter sido conduzido insensivelmente para saber se é possível uma teologia sem a revelação de Deus através dos profetas que fundaram as religiões, se a razão por si só é capaz de fundar uma teologia ou se o faz também profetizando, isto é, se o filósofo é também profeta. É a filosofia o verdadeiro sacerdócio? Pode haver verdadeiro sacerdócio quando o reconhecemos naqueles homens que receberam a ordenação, mas que não possuem nenhuma qualificação espiritual no seu exercício, e tudo ignoram dos “mistérios” que celebram?

 

José

O Eudoro pode responder que lá porque o homem que representa a personagem do Hamlet não possui o conhecimento contido nos pensamentos, nas palavras e nos actos do Príncipe da Dinamarca nem por isso deixa de transmitir esse conhecimento se sabe representar segundo o rito teatral prescrito por Shakespeare.

 

Eudoro

É desagradável comparar o sacerdote a um actor, mas é impossível não reconhecer que assim é. Devemos porém acrescentar a essa relação, o valor do sacramento da ordenação que é, afinal de contas, a santificação daquilo que no actor existe, diríamos, por graça ou dom demoníacos. Há ainda uma outra diferença decisiva: é que o padre foi ordenado para pôr em acto o sacerdócio de Deus, enquanto o actor pode fazer todos os papéis porque não tem alma, porque é um vazio capaz de receber todos os “fluidos”. Os anticlericais deveriam ser capazes de sentir o assombro que eu sinto perante a dignidade sacerdotal, quando assisto ao mistério da missa, quando pasmo, ajoelho e adoro porque a figura sacrossanta do sacerdote que tenho diante de mim já não é o homem vulgar e muitas vezes corrupto que conhecemos na vida do dia a dia. Onde os anticlericais vão buscar um argumento contra a Igreja que consente ser servida por homens indignos ou incompetentes vejo eu o mistério pelo qual, através de tantas vicissitudes, a Igreja perdurará até ao fim dos séculos: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”.

 

Álvaro

Se concordamos com essa diferença entre o sacerdote e o homem que o representa, entre a dignidade do sacerdócio que pode subsistir apesar da indignidade do homem, a quem confiamos a missão de conservar e transmitir, em plena lucidez sófica, a sabedoria dos “mistérios” ou “sacramentos” que constituem, afinal, a essência imperecível da Igreja? Por mim, penso que aos verdadeiros filósofos incumbe, não digo propagar, mas cultivar o conhecimento misterioso ou sacramental. Dir-se-á que, dada a Igreja visível, há sempre que pressupor a existência de uma Igreja invisível, que alguns têm apontado como a Igreja de São João, contrapondo-a, erradamente quanto a mim, à Igreja de São Pedro. É, neste sentido, que recordo o papel que o martinismo desempenhou na Europa Central, durante o século XVIII. Pascoal Martins, essa figura misteriosa de judeu português, que a habitual confusão tem feito pensar a alguns que se tratava de um judeu espanhol, difundiu nas lojas maçónicas de Lyon uma doutrina que funcionou na altura como a síntese católica das três religiões do Livro, das três tradições peninsulares, cujas linhas gerais podemos conhecer através desse obscuro e luminoso tratado de hermenêutica da Reintegração dos Seres nos Seus Princípios Primitivos. O seu discípulo mais famoso foi Claude de Saint-Martin, a quem chamaram “le philosophe inconnu”, mas o mais poderoso foi Willermoz que continuou, depois do desaparecimento de Pascoal Martins, a chefiar a orientação das lojas martinistas, utilizando o mesmo esquadro e o mesmo compasso.

O Conde Joseph de Maistre, que já tive ocasião de referir nesta conversa, recebeu de Willermoz a iniciação que o conduziu até aos mais altos graus da maçonaria e conviveu de perto com Saint-Martin, cujo cristianismo esotérico várias vezes enaltece nos seus Serões de São Petersburgo.

 

Eudoro

Isso deixa-me estupefacto! O Conde Joseph de Maistre? Tenho de confessar a minha ignorância, mas sempre o tive pelo pensador mais reacionário, mais anti-maçónico, mais hostil a todas as formas de livre-pensamento… O autor do Papa e da Inquisição Espanhola colocado nos altos graus da maçonaria!... O supremo defensor da autoridade civil e religiosa em conluio com os inimigos da Monarquia e da Igreja!... A filosofia tem mistérios.

 

Álvaro

Entre os inéditos do Conde, agora publicados, figura um com o título La franc-maçonnerie, mémoire au Duc de Brunswick, que constitui a resposta ao inquérito que o Duque, em 1782 Grão-mestre da Maçonaria Escocesa da Estricta-Observância, endereçou às várias lojas sob a sua égide. Como tenho aqui o volume publicado por Émile Dermenghem posso ler-vos um passo da Introdução, que tirará todas as dúvidas, se alguma subsiste, ao Leonardo.

«Dès 1774, Joseph de Maistre (né en 1753) faisait partie de la loge des Trois Mortiers où il était grand orateur, substitut des généraux et maitre sym-bolique. Mais da Maçonnerie vulgaire était un enfantillage, comme il écrivit le 9 décembre 1793 à son ami Vignet, et ces réunions mondaines finissaient par le lasser quand il fut con quis par la Réforme écossaisse. Le 4 septembre 1778, il entre en effet, avec quinze autres frères, à la loge de la Sincérité et il fait, en même temps, partie, sous le surnom de Josephus a Floribus, d'un groupe très secret de quatre initiés supérieurs, le collège particulier de Chambéry, dont les autres membres étaient son ami salteur (a Cane), le Chevalier de Ville (a Castro) et le bourgeois Marc Rivoire (a Leone alto). Ces collèges, placés dans les différents chefs-lieux du rite écossais, étaient formés par la classe secrète des Grands Profès, chevaliers maçons de l'ordre bienfaisant de la Cité Sainte, ‘dernier grade en France – disait Willermoz – du régime rectifié’. Cette classe était ‘répandue en petit nombre et partout inconnue’. Son existente même était ‘cachée depuis son origine à tous les chevaliers qui n'ont pas encore été reconnus dignes et capables d'y étre admis avec fruit’.

On voit à quel rang Joseph de Maistre s’était élevé dans la hiérarchie occulte.»

        

José

É pelo menos interessante saber. Em todo esse texto caço esta abelha de oiro: o nome maçónico Josephus a Floribus revela-nos que o seu portador tem como supremo modelo Joaquim de Flora.        

 

Álvaro

Eu não quero dizer que o martinismo se identifique com a Igreja mística de que há pouco vos falei. Mas o martinismo é, como vos venho sugerindo, uma das principais ligações da Igreja visível de Pedro com a Igreja invisível de São João.

 

Leonardo

Não quer explicar-nos porque diz é e não diz foi? Tudo isso se passa no século XVIII e não se pode dizer que a escola fundada por Pascoal Martins permaneceu activa e se manteve pura naquelas correntes esotéricas que dela se reclamam.

 

Álvaro

Refere-se certamente a Papus. Ao empregar o verbo no tempo presente estou a pensar na nossa filosofia, na filosofia portuguesa. Não são A Ideia de Deus de Sampaio Bruno e O Criacionismo de Leonardo Coimbra duas projecções em terra portuguesa do pensamento que anima o Tratado da Reintegração dos Seres de Pascoal Martins? Deixemos os detractores da filosofia portuguesa entreterem-se a negar a sua originalidade e, portanto, a sua existência, acusando-a de ser uma pobre filha bastarda de Bergson. Estamos agora em condições de saber a razão profunda pela qual um livre-pensador revolucionário como Sampaio Bruno nos aconselha a ler, n’O Encoberto, o modelo filosófico de todos os fanáticos, o Conde Joseph de Maistre. É que nada disto se compreende em ter em conta o problema do cristão-novo… Deixemos, porém, isso, para amanhã, pois começa a escurecer, e a humidade e o frio…

 

José

Vénus, a estrela do pôr do dia, como lhe chamam aqui na Serra d’Ossa os camponeses, prenuncia outra bela tarde para amanhã. Fixemos o seu brilho lúcido. Lembremo-nos que os antigos a situavam no terceiro céu. Antes de nos levantarmos, meus senhores, para nos recolhermos debaixo das telhas, vamos criar durante alguns minutos um silêncio absoluto em nós, para que na nossa alma se imprima aquela lucidez que transportaremos connosco até à próxima conversa.         

 

António Telmo