INÉDITOS. 69

07-01-2017 14:47

Rascunho de uma carta para Max Hölzer

 

Como deve calcular, leio sempre várias vezes as suas cartas, tentando tornar precisas as indicações que nelas me vai dando, indicações que muito agradeço.

Acabei hoje a segunda leitura do livro e vi e senti nele muitas coisas que na primeira leitura me passaram completamente desapercebidas. É um livro inesgotável para ler e estudar toda a vida.

Deixo o que digo no plano da generalidade, porque em relação a si passa-se em mim qualquer coisa de esquisito: de um lado, a impressão de que sabe muito melhor do que eu o que se está passando comigo, do outro lado um querer conduzir-me nesta nova forma de vida (antes, o ser e estar obrigado a conduzir-me porque estou só e o Max Hölzer longe) por mim próprio e meus próprios meios. Diga-me, pois: quer que lhe conte, em próxima carta, o que procuro procurar fazer?

Claro que estou consciente de que não sei ainda (sabê-lo-ei algum dia?) distinguir o subjectivo do objectivo, mas temo por vezes arriscar-me para além do devido neste momento. É exactamente isto: subjectivo, subjectivo com certeza, mas pode ser objectivo.  Com efeito, começo a sentir cada vez mais a necessidade de uma orientação exterior (a sua), por assim dizer, enquanto não souber guiar-me por uma orientação interior. Devo dizer, ainda de uma maneira geral, que tenho procurado activar o sentimento de mim e das coisas onde estou, “não querendo nada”. Mas há cães, gatos que me aparecem quando tento, isolado e quedo, no meio da Natureza, o “rappel de moi” (afinal, começo a particularizar, mas vejo-o imediatamente a rir de mim).

O meu livro História Secreta de Portugal tem sido um êxito; é lido por muita gente. Adquiri uma certa celebridade e há pessoas que me procuram como se eu fosse um sábio; há também os que, depois de terem lido o livro, o aplaudem mas procuram dizer-me o verdadeiro segredo que ele contém. Recebo cartas a que não respondo; uma marca-me um encontro misterioso mas não vou. Eis nisto tudo uma prova para a minha vaidade. Julgo saber, porém, que a vaidade não se ataca de frente; cai de si, quando se conquista uma certa “plenitude” de ser; por ora, combato-a pela astúcia com perguntas deste género: o meu livro, naquilo que tem de verdadeiro, não o sei; eu não sei nada daquilo que lá escrevi; julgo ter apenas uma vaga premonição, por um lado, por outro uma série de associações mentais resultado de leituras, de alguma reflexão de outro que não sou eu.

Fala o Max Hölzer de uma certa “confluência” na interpretação sua e minha de Pessoa. Aceito, desde que se utilize a palavra confluência, pois creio que as duas fontes se encontram em planos distintos. O Max Hölzer diz o que sabe e diz bem; eu digo o que não sei e digo bem.

Creia que estou convencido de estar a dizer o que penso.

Ultimamente ocorreu-me a suspeita de que os poemas curtos de Pessoa são exercícios de “rappel de soi” sobre um suporte ocasional: o voo de um pombo, a brisa que passa, o gato que brinca na rua, a onda que enrolada torna ao mar que a trouxe. Que acha o Max Hölzer?

Estou passando a fotocópia do excerpto da carta ao Francisco aos outros participantes das reuniões. Seguirão, se puderem ou quiserem, a recomendação sobre leituras prévias.

Eu, por mim, já fiz a leitura do capítulo XII do Castaneda.

Dia quinze estaremos de novo em Lisboa, onde se lerá o capítulo XVII do B.

Claro que passo a fotocópia aos dois elementos de Estremoz: Ballesteros e Maria de Lurdes. Eles irão daqui comigo.

Como esta carta já vai longa, despeço-me de si, meu Amigo, pedindo-lhe que me diga alguma coisa de si. Já se libertou dos trabalhos físicos?

 

António Telmo