INÉDITOS. 74

02-05-2018 09:38

No dia em que celebraria 91 anos se ainda estivesse fisicamente entre nós, assinalamos o aniversário do nosso patrono com a publicação de um excerto inédito de Uma Loja de São João, estudo que fará parte integrante do Volume IX das suas Obras Completas, A Aventura Maçónica e outros textos sobre a Arte Real, que será lançado, com a chancela da Zéfiro, no próximo dia 20 de Junho, pelas 18:30, no Museu Maçónico Português. Prefaciado por Risoleta C. Pinto Pedro, este novo volume será apresentado, no seu lançamento, por António Carlos Carvalho.

Uma Loja São João: Entrada ou intróito

 

Estremoz é, no seu traçado medieval, uma cidade rodeada por muralhas, aberta para o exterior por quatro portas, a dos Currais, a de Évora, a de Santo António e a de Santa Catarina, a padroeira da filosofia. Há, porém, uma quinta porta, que não se vê, no centro da cidade. Dela só se lhe conhece o nome: a Porta Nova. Contíguo ao Rossio, o vasto largo, hoje de Marquês de Pombal, outrora de São João, como se vê pela lápide que o identifica, está o Largo da Porta Nova, mas em vão procuramos; de porta antiga, destacada nada vemos. O seu maior edifício e o mais antigo é o que parece ter sido um convento, com um claustro e belos azulejos lá dentro. De uma das suas janelas, no primeiro andar, foi anunciado ao povo de Estremoz a queda da Monarquia e por isso o largo recebeu o nome oficial de Largo da República. No rés-do-chão é hoje a sede da Sociedade Recreativa Popular Estremocense, conhecida precisamente por Porta Nova. Há, de facto, lá dentro, habitualmente fechada para o exterior que não nos diz nada, uma grande e magnífica porta, aquela mesmo que poderia ilustrar a capa deste livro. Mas ninguém liga o nome à coisa, talvez porque cada um tem na ideia uma porta do tipo das quatro que se abrem nas muralhas.

Por ela se entrava para um santuário numa vasta sala, hoje utilizada para jogar o bilhar e as cartas, ler os jornais e, ocasionalmente, para ver na televisão um desafio de futebol. Do santuário restam os belos azulejos do século XVIII que cobrem parte da abóbada e das paredes.

A Porta Nova é, pois, uma porta para o interior, o que condiz admiravelmente com ser a quinta. O interior é, como se disse, um santuário, o que só há alguns anos se tornou possível imaginar. Durante mais de uma centena de anos, os azulejos estiveram tapados por uma espessa camada de caliça que o acaso de umas obras de restauro levantou, pondo à vista uma das maiores maravilhas da nossa arte simbólica. Quis o Desígnio que o  sócio n.º da Sociedade Recreativa Popular Estremocense estivesse lá quando se deu o descobrimento dos azulejos. Eu mesmo, o autor deste livro, filósofo nas horas livres, praticante de bilhar e professor de língua portuguesa nas horas presas.

O espantoso é que, onde outros vêem com razão uma igreja, ele veja uma Loja de São João do século XVIII e, mais extraordinário ainda, o lugar sagrado onde celebrava os seus ritos um ramo da misteriosa Ordem Templária ou Ordem da Serpente ou Ordem Sebastianista, nas três designações pelas quais a fez conhecer ao mundo o misterioso poeta Fernando Pessoa. Isto ir-se-á mostrando à medida que estas páginas vão sendo escritas. Claro que não escrevo para historiadores, mas para poetas. “A poesia é mais verdadeira do que a história”, ensinou Aristóteles, mas para tanto é necessário que a poesia esteja fundada numa verdade superior à da história, pois só esta é digna do seu nome. A história deverá servilmente encontrar e apresentar os documentos provativos de uma verdade que, por si mesma, não seria capaz de conceber. E aqui fica bem citar Agostinho da Silva quando diz que primeiro faz-se a teoria, depois logo se arranjam os documentos.

Eu sei que me vão dar por um espírito de imaginação desvairada e que, se me tomarem outros minimamente a sério, aparecerão a afirmar, com documentos ou sem eles, que, diga-se o que se quiser dizer, do que se trata é de uma antiga igreja, católica, apostólica, romana, como se, a ser assim, fosse impossível conciliar este facto com o de serem as imagens impressas nos azulejos a simbólica de uma Loja de São João. A coisa admirável é que, aqui, estão maravilhosamente associadas Igreja Católica e Maçonaria.

Neste sentido, o que importa desde logo ver é se, nessa simbólica se exprime o pensamento de uma Fraternidade, deixando para depois saber que tipo de Fraternidade, na relação do exotérico com o esotérico. Nada mais fácil. A obra está assinada. Podem ver-se na parte inferior do manto da segunda personagem, ao lado esquerdo de São João Baptista, três letras bem visíveis, F. MI, que são a abreviatura de Fraternidade da Misericórdia. A personagem tem sobre o peito uma cruz semelhante à templária. Não devemos atribuir ao acaso a sua escolha para portador da assinatura.

Tudo está em saber o que eram eram, em toda a sua extensão e em toda a sua profundidade, as Misericórdias fundadas por D. Leonor. Recordo o seguinte: A Rainha (representada à direita de São João nos azulejos) era irmã do Duque de Viseu, assassinado pelo Rei, D. João II; era também irmã de D. Manuel I; pertencia, pois, àquele grupo de nobres ligados à memória de D. Afonso V que D. João II desbaratou, matando e prendendo. Alguns deles conseguiram fugir para Espanha, entre os quais Isaac Abarnabel. Quem era Isaac Abarnabel? O Hermes Trimegisto, segundo os judeus. Cabalista e sábio tinha sido o conselheiro de D. Afonso V e o seu mestre espiritual. Era pai de Bernardim Ribeiro, o da Menina e Moça, o Leão Hebreu italiano. 

Estes factos sugerem curiosas hipóteses. Mas não há nada tão incerto como a história. Pois se nós não sabemos o que se passa detrás dos acontecimentos políticos de hoje, que garantia oferecem as explicações dos historiadores com seus métodos científicos pretendendo indicar as causas de acontecimentos remotos? Os documentos só falam do que está à vista. Contra os documentos há todos os argumentos. Tudo o que do passado interessa verdadeiramente saber só o pode revelar o estudo daquilo que os historiadores põem de parte: a literatura, a arquitectura, a pintura, as lendas, desde que a mesma luz nos ilumine a decifrar o que foi cifrado.

Na Misericórdia de Sesimbra, há um quadro de Gregório Lopes (século XVI), contemporâneo da sua fundação, com Nossa Senhora de largo manto azul, aberto a abraçar o mundo e, de um e de outro lado, o clero e a nobreza, tudo como aqui, até à figuração das sete virtudes na peanha acima da qual se eleva. Aliás, este arquétipo parece ser comum a todas as Misericórdias do país. Mas, no quadro de Gregório Lopes, há um pormenor inquietante para o beatério, não para os que ainda sabem o que é o catolicismo e a sua sabedoria. A figura mais próxima de Nossa Senhora da Misericórdia é um homem do povo, entendendo por povo a terceira classe medieval. Está ajoelhado sobre o joelho esquerdo; a perna direita, em postura de esquadro, tem a calça arregaçada acima do joelho. É o que, ainda hoje, se pode observar na Maçonaria: o modo de ajoelhar, a altura da calça, a adoração da aurora que se levanta no Oriente. O candidato a Aprendiz ajoelha assim perante o altar do Venerável.

A Maçonaria em Portugal no século XVI! Como é isto possível?

Mas a Maçonaria em Portugal no século XVIII é um facto que não pode ser escamoteado. Abriram-se-lhe as portas com o Marquês de Pombal. Porque não haveria, então, uma Loja em Estremoz?

Houve, de facto, em Estremoz, uma Loja a funcionar no primeiro andar do edifício da Porta Nova, mesmo por cima da sala dos azulejos no segundo piso, mas nos fins do século XIX e princípios do século XX. Era conhecida exteriormente por Centro Revolucionário Republicano. Foram os maçons que anunciaram ao povo a implantação da República.

Isto, porém, pouco tem que ver com o que me proponho mostrar. A Maçonaria inspiradora do Centro Revolucionário Republicano é uma Maçonaria importada de França. A ideia que lanço é a da existência no século XVIII, senão até hoje, de uma Maçonaria caracterizadamente portuguesa e é para isso que servem os azulejos. Os mesmos símbolos, de um modo geral, devem, porém, aparecer numa e noutra, porque ambas derivam, embora por caminhos diferentes e diferentes paisagens de alma, da mesma origem remota. Adiante se tentará explicar por que misteriosas razões a nossa ficou até agora coberta ou encoberta.

Não é apenas um pormenor, como no quadro de Gregório Lopes, que dá força àquela ideia. Todas as indicações simbólicas apontam para a hipótese de que, em Estremoz, estamos perante o que foi uma Loja de São João, na linha das Misericórdias fundadas por D. Leonor. 

 

António Telmo