INÉDITOS. 90

10-05-2020 11:04

Um povo “mélangé”[1]

 

Se a “gnose” teve, em Portugal, até 1513, o seu Templo ou, com mais luz, se Portugal foi até então o Templo da “gnose”, entrada depois em “dormência” durante quatrocentos anos, é no diálogo entre a poesia e a filosofia que subitamente irrompe por volta de 1910, com a República, onde [sic] se devem estudar as características próprias que assumiu no lugar da alma que dá pelo nome de Terra de Santa Maria. A uma certa espécie de “gnose” teremos de referir o que Álvaro Ribeiro disse ser a originalidade da filosofia portuguesa. Singular filosofia essa, em terra portuguesa, que, por espontânea fidelidade à mesma visão sófica, há-de conciliar pensadores tão distantes como Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, poetas tão diferentes como Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa.

Ao falar-se de lugar da alma, há que lembrar como, já na pré-história, sucessivas vagas de povos se detiveram aqui perante o Oceano: a cultura dolménica é um dos sinais. Mais perto de nós, bárbaros, judeus e romanos, árabes depois, franceses, ingleses e espanhóis disputaram esta terra, usando de força e astúcia. O processo continua, embora revestindo outros aspectos. Os turistas de todo o mundo vêem nela o paraíso do seu prazer.

Mas judeus e árabes viam nela outro Paraíso.

Etnicamente somos uma mistura, “un mélange”, como observou um famoso esoterista europeu que se negou, por isso, a difundir o seu ensino aqui. Ele, no seu relativo acerto, não contou com a persistência de estratos rochosos mais profundos que não sofreram a corrosão superficial. São esses estratos que, por direito e dever, se ligam íntima e secretamente com o espírito da Terra. Persistem fundos e ocultos, ignorados dos intelectuais que, esses sim, desde os políticos aos escritores, desde os escritores ao clero, são a perfeita expressão dum povo “mélangé”, dividido e dilacerado entre três religiões, amesquinhado pela Europa e, por isso, dócil e servil a tudo o que vem de fora, que recebe com júbilo os invasores, se deixa corromper por eles e se arroga o direito da última palavra em política, em economia, em filosofia, em religião. O sentimento oculto de inferioridade excita neles a inveja, que já foi caracterizada como o vício nacional.

 

António Telmo      



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade.