INÉDITOS. 92

23-05-2020 18:32

Carlos Castaneda[1]

 

Um dos acontecimentos mais importantes dos últimos dez anos foi, sem dúvida, a publicação dos quatro livros de Carlos Castaneda, que descrevem a iniciação do jovem americano nos mistérios índios, em pleno século XX. Um bruxo, um iniciado, um “homem de conhecimento” transmite pela primeira vez a um branco, a um jovem que não é índio, a misteriosa sabedoria antiga dos mexicanos, cuidadosamente ocultada e preservada dos invasores espanhóis, envolvendo-o numa experiência perigosíssima que, de grau em grau iniciático, o conduz até aos confins da vida e da morte.

A transmutação das aparências naturais das coisas e dos seres, o contacto directo com o mundo das formas subtis, o poder de bilocação e de invisibilidade, o desdobramento da personalidade, a separação e objectivação do próprio corpo, a dissolução e integração dos elementos físicos e psíquicos numa forma de consciência superior, tudo isso que conhecemos apenas pelo testemunho, sempre duvidoso, dos ocultistas ou pelas histórias adultas contadas às crianças, aparece ali nos livros de Castaneda rodeado de um rigor que quase diríamos científico se não fosse muito mais do que isso, na forma tão impressionantemente próxima de um diário, tão evidente e demonstrativa que certamente não há ninguém que leia esses livros sem ficar ferido de espanto ou, pelo menos, de inquietantes dúvidas. As pessoas incultas ou de cultura primitiva acreditam, em geral, nestas coisas, mas os sábios costumam pô-las de parte demasiado depressa. O sábio é o conquistador espanhol do México, representante de uma civilização superior e que age em nome da matemática e de Cristo. Isto não obstante serem os quatro Evangelhos o correspondente hebraico dos quatro livros de Castaneda.

O que mais surpreende, porém, é a falta de seriedade de filósofos responsáveis na reflexão dos chamados fenómenos ocultos. Já me referi a eles, a propósito de Joseph de Maistre. Exige-se que esses fenómenos não sejam uma interpretação da realidade ou que, então, sejam determinadas, com todo o rigor kanteano da ciência do espírito que é a filosofia, as formas a priori da sensibilidade transcendental. Porquanto o que também nos ensina o quádruplo livro de D. Juan é que a natureza (Heraclito dizia que ela gosta de se esconder) deixou de aparecer ao homem quando se desenvolveram nele as formas a priori da sensibilidade periférica – o espaço, o tempo e o número. Um linguista americano, Lee Whorf, já muitas vezes referido neste livro, pensa que não são formas universais, como se prova pela análise das línguas ameríndias, mas que vieram transportadas nos carros de fogo das línguas indo-europeias.

Defendia Haman, um alemão colérico e indomável adversário de Kant, que a poesia é «a língua maternal do género humano». Ninguém ignora análoga posição do italiano Vico. Todavia, se a tese é aceite por alguns (outros preferem a que refere a origem das línguas ao trabalho) é aceite na condição de considerar-se a poesia uma forma ilusória de conhecimento, que deixa de fora a realidade – o mundo objectivo – e representa o primeiro passo na conquista histórica do mundo da subjectividade.       

 

António Telmo



[1] Nota do editor – o título é da nossa responsabilidade.