«OS MEUS PREFÁCIOS». 04

02-04-2014 11:40

[SOBRE OS SONHOS] POSFÁCIO A ARTE DE SONHAR, DE ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO[1]

 

Estremoz

s/d [Setembro de 1993]

 

Meu Caro António Cândido Franco

 

[…]

Dizem que o sonho é uma produção da alma, o mundo que a alma se cria em si mesma. E quem o diz (os leibnizianos, por exemplo, com a ideação das “mónadas sem janelas”) pensa igualmente para com o estado de vigília. Aqui, os acontecimentos, por exemplo, são também produções e manifestações da actividade da alma do indivíduo a quem acontecem. É, de facto, muito difícil distinguir o sonho da vigília. Nele há espaço e há tempo, matéria e resistência, dor e prazer, como na vida em que julgamos estar acordados. E, se estivermos atentos aos fenómenos da vigília, nem a grande capacidade de metamorfose que caracteriza o sonho constitui uma diferença decisiva, isto é, que cinda um estado do outro. Embora haja a possibilidade de o sonhador ter consciência de si, influindo deliberadamente no próprio sonho, o que é comum é que saibamos do que sonhámos lembrando e daí o engano de pensarmos que foi uma ilusão, uma fantasmagoria subjectiva. Mas se, exercendo aquela possibilidade, formos capazes de nos lembrar sonhando o que fizemos durante o dia em que estávamos acordados, então será o sonho que nos aparecerá como real e a vigília como fantasmagórica.

Quando eu tinha vinte e tantos anos, aconteceu-me o seguinte. Tinha acabado de me deitar e, antes de me voltar para a esquerda ou para a direita, de súbito uma força entrou pelas pontas dos meus pés e percorreu o meu corpo todo, subindo por mim acima e saindo pela “coroa” da cabeça. O movimento, como uma onda poderosa, era acompanhado de um som maravilhoso de guizos, que se detinha subitamente logo que a força saía. Mas passados momentos de absoluto silêncio, o processo repetia-se e no plexo solar era como se a alma se separasse do corpo.

No Egipto havia uma prova de iniciação em que os guizos constituíam um elemento fundamental. Onde foi a sua imaginação secreta buscar isso dos guizos vegetais?

É que se o sonho, como dizem, é uma criação da própria alma, como é que se opera a comunicação entre as mónadas? Não, evidentemente, dentro da excepção, por uma relação de causa a efeito que é a única que admitem a ciência e o senso comum. Temos de falar então de harmonia pré-estabelecida ou de simpatia de todas as partes do universo no seu voltarem-se para o uno.

[…]

António Telmo



[1] António Cândido Franco, Arte de Sonhar: 87 sonhos com Teixeira de Pascoaes, Évora, Casa do Sul, 2001, pp. 121-122.