UNIVERSO TÉLMICO. 01

23-05-2014 12:24

António Reis Marques, símbolo vivo de Sesimbra, decano da cultura sesimbrense e do projecto António Telmo. Vida e Obra, amigo de António Telmo e Agostinho da Silva, festeja hoje o seu 87.º aniversário. Parabéns!!! Aos nossos leitores, e em jeito de celebração, oferecemos agora um testemunho de Reis Marques sobre outro seu inseparável companheiro, e bem assim de Telmo e de Agostinho: Rafael Monteiro. Com ele se inaugura uma nova secção da nossa página: "Universo Télmico". 

Rafael Monteiro*

António Reis Marques

 

Aqueles que vão percorrendo, durante mais tempo, os caminhos da vida, para além do peso dos anos, e da amargura pela inexorável aproximação da decadência, acumulam ainda a miríade de recordações deixadas pelos que partiram mais cedo. É aquilo a que chamo o ónus da anciania.

Devo ser hoje um dos mais antigos amigos de Rafael Monteiro e, certamente por isso, e só por isso, me terá sido feito o convite para falar neste acto.

Todos quantos me conhecem sabem que sou avesso a discursos e, assim, quem me convidou terá de partilhar comigo o risco da minha intervenção não corresponder ao desejado.

Todavia, e para ser coerente, não irei fazer propriamente um discurso, mas apenas deixar-vos algumas considerações sobre a vida e a obra do homem cujo nome foi, felizmente, escolhido para patrono do Centro de Documentação que se inaugura.

Numa época em que ser pensador, artista ou homem de letras, não despertava nem o respeito nem a admiração de ninguém, suscitando pelo contrário uma certa condescendência indiferente, e cultivando-se o espírito do não vale a pena perder tempo com tudo aquilo que não dá dinheiro, naturalmente que Rafael Monteiro era considerado um sonhador, um excêntrico ou um louco.

São dele as palavras que passo a citar e que bem o caracterizavam: “longe e perto de mim, apodam-me de louco e irreverente, e por diversos meios têm tentado, às vezes com amizade, que acerte o meu passo largo com o saltitar e o coxear de alguns, que me “acomode”, que “tenha juízo”, até que tema e respeite aqueles que pela bolsa buscam suprir o que a cabeça lhes nega e nunca lhes dará.

Sem títulos nobiliárquicos, sem títulos universitários, sem títulos na Bolsa, sem condição social, de meu só tenho a minha própria loucura.

É pouco o valor dela, mas porque é um bem, um bem meu, estimo-o, defendo-o, acrescento-o, e a meu modo o uso, perante o riso e o sorriso dos que se esquecem de que se a Deus devo o existir, algo de divino tem de haver na loucura que possuo.”

Rafael Monteiro foi, no seu tempo, um dos mais altos expoentes dum certo tipo de sesimbrenses que, ávidos por saber e por fazer, foram criadores ou animadores de agremiações de cultura, de recreio, de desporto, de benemerência, dedicados até ao sacrifício pela manutenção duma banda de música, dum jornal, dum grupo cénico ou de um coro paroquial, fiéis depositários de tradições e costumes ancestrais, a quem se deve o que ainda hoje resta da verdadeira identidade desta velha terra de pescadores e mareantes.

Trabalhando devotada e gratuitamente, eram amadores na verdadeira acepção da palavra, isto é, aqueles que amam, sem outra retribuição que não fosse o gosto, a satisfação pelo cumprimento dum indeclinável dever cívico.

Não foi em circunstâncias felizes da sua vida que, nos primeiros anos de década de 50, passou a habitar o eremitério do Castelo, como na altura lhe chamou, somente acompanhado de sua mãe que, na vila, dava escola a algumas crianças e disso auferia o parco rendimento de que se sustentava.

Aqui isolados, sem conforto, sem água, electricidade ou telefone, difícil foi para ambos a ruptura, brusca, com todo um passado de vida diferente, junto de familiares, parentes, vizinhos e amigos, na pacata e rotineira vida na antiga Sesimbra da beira mar.

Como uma vez disse, isso trouxe-lhe, todavia, uma vantagem importante que era poder continuar a olhar o mar, mas a partir da bela perspectiva da sua vista aqui do alto e a uma certa distância, o que lhe permitia plena capacidade na sua contemplação, com a qual, como também referiu, se aprendia mais do que a ler os livros.

Com a sua extraordinária capacidade de tirar partido de todas as situações, mesmo as mais graves e difíceis, conseguiu, praticamente sozinho, tornar o então abandonado Castelo de Sesimbra num lugar de referência, quer pelas investigações arqueológicas que promoveu e que despertaram o interesse e até a colaboração de alguns dos mais distintos especialistas da época, quer pela loja de antiguidades que instalou e onde se expuseram e transaccionaram algumas raras e valiosas peças que os melhores antiquários de Lisboa lhe consignavam e que foi, durante anos, o seu ganha pão.

E esta casa, que habitou e salvou da ruína pela completa remodelação e melhorias que custeou, num dos raros períodos da sua vida em que a fortuna o bafejou com um episódico negócio de terrenos, tornar-se-ia num baluarte da cultura sesimbrense, pelas tertúlias que reuniu, pelos serões culturais nela realizados, que tiveram a participação de eminentes figuras das artes e das letras nacionais.

Contrário ao culto do efémero, do frívolo, que caracteriza a apressada e absorvente vida dos que têm o dinheiro por único ou supremo valor, procurando ver para além das aparências um sentido para a vida, soube rodear-se de alguns daqueles que, como ele, primavam pela busca dos valores expressos pela sublime trilogia: o bem, o belo, a verdade.

Onde quer que estivesse provocava a atenção dos que o cercavam, pela sua vasta cultura, pela facilidade e riqueza do verbo, por um dito de espírito, e até por vezes, por uma piada sarcástica que causava a gargalhada de uns e o sorriso amarelo de outros.

Não vou fazer aqui a sua biografia nem um panegírico de circunstância que me leve a esconder, eu que tantas vezes dele discordei, que na totalidade do seu perfil se encontram erros e defeitos, acções e opções controversas, que jamais ofuscarão porém o valor e extensão de sua obra em prol de Sesimbra, a qual representa também marca inconfundível da época em que viveu.

Os seus detractores, que os teve e muitos, tinham geralmente tendência para salientarem somente os aspectos negativos da sua personalidade multímoda, o que ainda hoje por vezes acontece.

Recordo, a propósito, um pensamento de autor anónimo que, em tempo, tive necessidade de citar a alguém que, por despeito, dele me falava de modo algo ofensivo: “as grandes inteligências discutem as ideias; as medíocres discutem os acontecimentos; as inferiores discutem as pessoas”.

Porque estamos perante a abertura dum centro de documentação que irá disponibilizar aos estudiosos e ao público em geral, entre vários textos e documentos sobre o Castelo, todos os livros e uma ampla colecção dos mais importantes artigos que publicou, importa salientar essa sua actividade que, para além do mais, é reveladora do seu indefectível bairrismo e testemunho dum insuperável amor à terra e às suas instituições.

Afirmar-se que esses livros e artigos constituem marcas e referências de vulto na bibliografia sesimbrense, embora seja um lugar comum, é também uma verdade axiomática.

A um ilustre amigo de ambos, ouvi um dia dizer que ele era um artista da palavra, e muitos dos seus escritos podiam considerar-se autênticas obras de arte.

Será isso que dele irá perdurar na memória dos sesimbrenses, pois tal como, aliás, bem o sabia “a vida é curta e só a arte é longa”.

É costume dizer-se, em relação aos poetas, que a melhor homenagem que se lhes pode prestar é decorar os seus versos.

Em relação ao Rafael Monteiro será divulgar a sua obra, não só através das novas tecnologias do centro de documentação, mas principalmente com uma condigna publicação de todos os seus escritos que esperamos, confiadamente, venham a ser contemplados nas próximas iniciativas editoriais da Câmara Municipal.

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*Discurso proferido na inauguração do Centro de Documentação Rafael Monteiro, Castelo de Sesimbra, em 25 de Abril de 2000.