UNIVERSO TÉLMICO. 15

23-04-2015 14:59

Na edição de hoje do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, escreve sobre o marranismo de Herberto Helder, à luz de premissas que partem de António Telmo.

Lad

Pedro Martins

 

O primeiro poema que li de Teixeira de Pascoaes devo-o ao poeta Herberto Helder. Descobri-o, pelos meus dezoito anos, nas páginas de Edoi Lelia Doura, a antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa que o escritor organizou para a Assírio & Alvim, casa editora que já por esses dias dava à estampa as obras do mago do Marão.

Deu-se o caso em Lisboa, no quarto de estudante onde o António Ladeira então se demorava pela capital, na Rua Marquês de Sá da Bandeira, paredes meias com a Fundação Calouste Gulbenkian e o seu jardim deleitoso de sombras, à distância de alguns passos no passeio fronteiro.

Certo dia, a senhoria do Ladeira, Dona Hortense, dona de casa e da casa, sólida senhora já avançada na idade, pasmou num ai de credo quando me viu irromper, em tropel, qual avejão, pelo corredor dos seus aposentos na companhia do seu jovem hóspede. Revestido de um pano preto, quadrilátero que na praxe lisbonense de Direito, nascida, anos antes, de um levantamento de rancho na cantina, fazia as vezes do traje académico coimbrão, mais lhe terei sugerido o causídico de toga que ainda o não era do que o sofrido estudante de leis cumprindo a agrura lutuosa das penas com que ensaiava esvoaçar. Nos dias subsequentes, a memória da minha presença ecoava ainda entre aquelas paredes, sob a fórmula respeitosa observada pela Dona Hortense, sempre que me mencionava ao António Ladeira: “Aquele seu amigo adbogado...” Não estou lembrado de que a proprietária trocasse o v pelo b ao pronunciar a última palavra. Pode muito bem ter sido o ponto de pilhéria que o Ladeira, esse marau de fina inventiva, acrescentava então ao conto, como por certo competia ao escolar irreverente de Estudos Portugueses que, à distância de alguns quarteirões, cursava com distinção Línguas e Literaturas Modernas na Universidade Nova, à Avenida de Berna.

Por essa altura, estávamos ainda todos à procura dos caminhos. O Ladeira trocara a Junqueira pela Senhora de Fátima, mandando às malvas a Comunicação Social. No DN Jovem, editado pelo generoso Manuel Dias, despontava já o meu amigo letrado como um dos mais promissores poetas da novíssima geração. A promessa, de resto, haveria de se cumprir à distância de um oceano, só que o país persiste desatento. Pela minha parte, versado no Eça haurido no sótão da Quintinha, escrevinhei in illo tempore algumas prosas miméticas para o imberbe suplemento do Notícias, imitando com denodo os escritores então em voga, de Saramago a Lobo Antunes. A coisa não deve ter saído mal de todo, pois a um primeiro prémio logo se me sucedeu um segundo, para não mais repisar o pódio ilusório. Sáfara, a lógica jurídica, em infusões assépticas, derribou-me o estro, mas da bravata resta ainda um escrito laureado na Antologia do DN Jovem, vez primeira que me vi em volume.

Do que eu e o Ladeira então fazíamos nestas páginas do Raio de Luz, já lá vai um quarto de século, fica a promessa de escritura para crónica futura, que bem virá a calhar neste ano de quarentena. Na verdade, releva da melhor prática que o plumitivo aprovisione temas no alfobre da sua inspiração e para mais, ao contrário do que lhe é costumado, o bom do António Marques meteu-se em empenhos quanto ao destino desta minha narrativa. Pelo correio electrónico, indagou-me há dias se eu não quereria escrever sobre Herberto Helder. Não lhe soube dizer que não.

O poeta morrera havia pouco e o nosso director topou-lhe o obituário na página digital do Projecto António Telmo. Vida e Obra. Façam o favor de a visitar. Como então ali se escreveu, o filósofo de Arte Poética tinha Herberto em altíssima conta. A par de Fiama Hasse Pais Brandão, com quem desvelou o Camões gnóstico e cabalista, via nele uma inspiração contínua. E, em preito de homenagem ao escritor, seguia-se, nessa lembrança electrónica, a publicação do final de um estudo que dediquei ao autor de Os Passos em Volta, perspectivando-lhe este genial livro de contos à luz da condição marrana que, até prova em contrário, presumo ser a sua. Poderão encontrá-lo, lá para o fim de Maio, no meu próximo livro, passe a publicidade.

Será bem pouco, reconheço, como credencial para a evocação de um dos maiores poetas portugueses das últimas décadas. Meu caro António Marques, neste ponto deveria simplesmente passar o chá ao António Ladeira, para aqui recordar uma das magníficas expressões com que o António Cândido Franco, n’O Estranhíssimo Colosso, nos dá a beber das suas fontes. Entregava-lhe o bule fumegante e, sem mais, chegava-lhe a minha xícara, pois quando o Ladeira partiu para a América, pouco tempo depois da nossa histórica entrevista com o Agostinho da Silva, já ele levava fisgada, no bornal, a dissertação de doutoramento sobre Herberto Helder que brilhantemente viria a concretizar em Santa Bárbara, na West Coast. Qual Rodrigues Soromenho do século que passou, voltou costas à pequena Califórnia que no Caneiro se arrima a Argéis, acenou longamente à Fortaleza, por uma última vez mirou na lonjura o farol sinalizando a doca e, qual seta despedida, assentou praça no outro lado do mar, nessoutra Califórnia onde as praias são miríade. Sei-o agora numa universidade do Texas, depois de haver leccionado por Yale, numa passagem meritória que a minha colecção de t-shirts, graças à sua generosa lembrança, ainda hoje permite atestar.

Vai a crónica a mais de meio e dou-me conta de que ainda mal falei de Herberto. Não é o mesmo que falar mal, nem eu disso seria capaz em tratando-se do poeta admirado da Última Ciência, mas pressinto que o leitor, se acaso não demandou outras paragens do nosso jornal, já topou à légua este meu jeito esquivo e atrapalhado de me furtar à incumbência que aceitei.

Bem vistas as coisas, quem, inocentemente, me meteu neste imbróglio foi o António Cândido Franco, e por isso me parece de justiça trazê-lo de novo à colação, um mês após a exaltação do Colosso que nos ofereceu. Há mais de dois anos, pediu-me colaboração para A IDEIA, revista de cultura libertária que então passou a dirigir. Tinha em mente dedicar dois números ao surrealismo em Portugal e deu-me a escolher entre Herberto Helder e Ernesto Sampaio. Fui pelo primeiro. Estudei-lhe Os Passos em Volta e, para minha surpresa, deparei-me nessa prosa mágica com um poeta de funda religiosidade, aquela que se cumpre na demanda que da descrença vai à crença, para, aqui e ali, se fixar num humilde agnosticismo. Bem sabendo que Herberto, tal como Telmo, descendia de gente de nação, não me custou ver nesse seu livro autobiográfico o testemunho do judeu errante, inteligente e inquieto como o Santo Ofício os perscrutava. Homens assim respeitam-se, e muito, ainda que não pensem como nós.

António Telmo considerava, pelo curso dos séculos, vários tipos de marranos ou cristãos-novos. Os que degeneram no fanatismo religioso, modo odiento e violento de a sua dissimulação adquirir segunda natureza; os que, pela prática automática, mecânica, sem crença, do ritual a que o novo e imposto credo os obriga, desembocam no materialismo ateu; os que brava e ocultamente persistem no culto velho, refinando pela metáfora a hipocrisia diplomática a que se veêm forçados; e os que superiormente fazem a síntese dos dois credos antagónicos, ambos tidos por verdadeiros e sublimes. É este o caso do próprio Telmo, como é também o de Agostinho.

Mas o filósofo admite a possibilidade de outros resultados. Será o caso de Herberto, numa falta de fé que a si mesma se procura superar pelo exercício da metáfora. Ocluso, jacente, soterrado, o seu judaísmo emerge do subconsciente pelo sortilégio das imagens exaltadas que nos dizem palavras como terra, corpo, mulher, mãe, vida, casa, quarto. Tudo isto transportam Os Passos em Volta, numa deriva circular que em espiralada ascensão se soergue. Estará também, admito, na sua poesia em verso, mas para dessa nos falar falta-nos aqui o António Ladeira.

Se há frase de Herberto que sempre me fascinou pela sua estranheza é aquela em que nos diz que um poeta está sentado na Holanda, a mesma que, para todos os efeitos, nos levou Espinosa, filósofo que não poeta, e onde o nosso Sampaio Bruno, fundador da filosofia portuguesa, conheceu a metanoia transfiguradora do seu pensamento, à sombra presumível da sinagoga de Amesterdão. Sempre que releio essa frase, vejo nela um ciclope sentado à beira do mapa, imaginando, lá para o Setentrião, a faixa de perímetro que os Países Baixos resgataram ao mar.

Uma figura assim majorada resulta inverosímil, colossal. Diz bem com a grandeza de Herberto, pois que por ela, afinal, de si ele nos fale. A mesma grandeza que pressenti no torvelinho cósmico do “Vento do Espírito”, as primícias de Pascoaes que um dia, em Lisboa, como no princípio vos contei, o poeta da Madeira me proporcionou.

E eis que, de um mês para o outro, em tempo de anões, fomos de um colosso para um gigante. A passos largos, como os de Agostinho, e em volta, como os de Herberto. Às voltas tenho eu aliás andado com esta minha narrativa, na esperança de que se avistem, no contador, ao fundo do ecrã, as mil e quinhentas palavras da ordem. Não sei se o nosso director se vai dar por satisfeito, mas não lhe soube dizer que não. Para o Herberto, meu caro Marques, melhor seria que batesses à porta do nosso amigo americano. Ele sabe da poda. Parece que este ano vem por aí, com alguma demora, e talvez então te saiba falar do que eu agora não pude escrever. Estou a vê-lo, sorriso leve nos olhos, a parodiar-nos, qual Roger Moore, na esplanada do Café Pipau: My name is Lad. Tony Lad.