UNIVERSO TÉLMICO. 23

21-05-2015 23:30

Risoleta Pinto Pedro publicou há pouco, no seu blogue A Luz das Casas, o magnífico ensaio sobre O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, que generosa, gentilmente partilha agora com os leitores da página do Projecto António Telmo. Vida e Obra, de que, tal como Cândido Franco, é membro autor. Ambos serão aliás oradores, a 31 de Outubro, na segunda sessão do ciclo de palestras Agostinho Revisitado: Novas Aproximações, que o nosso Projecto promove este ano em parceria com o jornal Raio de Luz, de Sesimbra. Les beaux sprits se rencontrent...

Considerações acerca de uma colossal estranheza

Risoleta C. Pinto Pedro

Sobre: O Estranhíssimo Colosso,

Uma Biografia de Agostinho da Silva

Por António Cândido Franco

 

É sobre a minha mesa da cozinha que recebo Agostinho e o sol da Primavera. Esta Primavera ficará mais doce na memória, porque aconteceu o teatral renascimento de Agostinho num espectáculo único para mim encenado enquanto espectadora. Sobre a mesa e ao sol, esta personalidade tão complexa e tão simples, cujo interesse e área de acção vai do estudo das moscas à política mundial com Jânio Quadros.

O homem que recusou pensões e títulos e devolvia a parte que não gastara dos subsídios que lhe eram atribuídos para projectos, assim criando embaraços técnicos institucionais, porque não estava previsto. O homem que dava quase tudo o que recebia, porque não precisava, já que os seus únicos gastos eram com viagens e a fransciscana única refeição por dia. O homem que afrontou todos os poderes que se opuseram à sua realmente inalienável liberdade, o homem que não trocava nada por uma boa conversa, que fazia mais facilmente amizade com o porteiro do que com o embaixador, mas que não desprezava ninguém, o homem que traduzia do latim e do grego, como quem traduz do inglês, que estudava quando os outros dormiam, ia fazer conferências aonde o convidavam e pelo meio de um sem número de outras coisas ainda escrevia livros a um ritmo e qualidade muito acima do normal.

É desse homem que tão incompletamente acabo de descrever que tratam as setecentas e tal páginas do livro que me vai acompanhar durante umas semanas.

Garrett começa à janela as suas Viagens e eu também próxima de uma janela de onde vejo árvores, é sobre a mesa da cozinha que viajo. Depois da louça lavada e tudo em ordem, sento-me perto da janela e aí recebo, saudosa, Agostinho e o sol. Abro o livro e deixo vir até mim o passado. Para ser rigorosa, é mais do futuro que se trata. É na Primavera que se passa esta leitura, e quando começo a escrever este texto, ainda estou na Primavera do biografado, saudoso Agostinho da Silva. Pela narrativa rigorosa e expressiva de António Cândido Franco, seu biógrafo, torno-me personagem de uma infância que no tempo me teria sido inalcançável. Dia após dia a leitura prosseguiu até à aparentemente impossível e quase indesejada última página e eis o que ficou em mim:

Esta biografia tem a forma de relato comovente e épico em tom paradoxalmente lírico, terno e sorridente, que exemplifico facilmente, bastando-me abrir, quase ao acaso, o livro:

“Esta do meu plantígrado se pôr em pé na asa de um avião em voo só mesmo para Agostinho. É outro leão de ouro para pôr no mostrador da sua biografia. Nem Sinatra se atreveu a tanto; ficou-se só pelo cantar à chuva. Que pobreza, ao pé da grande dança cósmica de Agostinho na asa de um avião em voo!”

Lê-se esta biografia sobre o morto mais vivo do mundo e queremos ressuscitá-lo. Pela leitura o faremos. Precisamos dele.

Escrevi num outro lugar, a propósito de mortos e vivos:

“Há muito quem se amofine com o estado de graça em que entram os mortos na boca dos vivos uma vez ausentes desta comunidade.

A mim aborrece-me mais que os vivos se maltratem por palavras, obras e intenções.

Se a morte traz aos que partiram algum estado de graça, apenas vejo aí uma graciosa mudança dos vivos em relação aos que não o são.

Diria mais, talvez o sentido do morrer seja, pelo menos por enquanto, ensinar os vivos a verem as qualidades para as quais estão obnubilados durante a vida dos outros.

Beneficiam os mortos com isso? A mim parece-me que mais ganham os vivos do que os mortos, porque aprendem a criar novos filmes com suas línguas, aí onde antes apenas destilavam veneno nasce um alquímico cuspo de beijo ou amor.”

Também numa biografia não vejo necessidade de fazer criação de larvas, e ainda que as haja, porque sempre as há, estamos no mundo delas, cumpre ao biógrafo o esforço de compreender fraquezas , reveses e condições, aparentes deslizes e desaires.  Como competiria a um médico de mortos.

Com a vida de Agostinho, não tem o biógrafo de fazer grande esforço para apresentar a estrela, ela brilha com luz própria, mas não há vida sem sombra, e é o que se percebe na passagem que segue:

“Este exame de consciência roeu-o por dentro. […) Mas Agostinho não era um triste que ficasse a chorar os pecados em que caíra. Se errara, havia que alterar a direcção e seguir por diante. “

Quem quiser aprofundar-se nestas páginas encontrará um olhar sem maquilhagem, mas fundo, profundo e misericordioso. Como o do “mestre”.

A biografia de Agostinho possui, além de outras de que falarei, uma particularidade que é um mérito: a escolha do eixo, ou tronco mais ou menos visível, consoante a parte da vida em que se encontra, no qual vai plantando os ramos. Esse tronco é o Agostinho escritor, aquele que não tem sido, pelo menos para o grande público, que mais o conhece por via das entrevistas televisivas, o revelado.

“… andando no desconhecimento geral, chegam para fazer um escritor aos 18 anos.”

Não que ACF confunda biografia com percurso literário, mas porque nesta exuberante selva que foi esta exuberante vida é necessário seguir um trilho, o mais desenhado no chão, tanto mais se o mais expressivo trilho tiver sido, também, o mais ocultado.

O escritor está, então, feliz e generosamente presente nesta biografia, com especial dedicação à vertente deliciosa que é a do criador de heteronímia para… os heterónimos. E entretanto “mata” os heterónimos para que não possam queixar-se. Ou denunciá-lo.  ACF fala, preferencialmente, de pseudónimos, um rol infindável de pseudónimos, muito antes de Pessoa ter entrado no horizonte de vida de Agostinho. 

Paralelamente à actividade literária, com ela e através dela, vai-nos conduzindo pelos meandros da vida do seu biografado e para que não nos percamos nem fiquemos para trás, que a tentação de saborear é grande (quem quiser apenas o alimento mais frugal dos factos pode limitar-se a ler a cronologia que ocupa cinco páginas no fim), para que não nos desorientemos, dizia, vai-nos puxando por um fio narrativo às vezes sorridente, pelo gracioso método de retomar acontecimentos anteriores. Sem duvidar da nossa memória. Com bondade. Com rigor e vivacidade.

Com ele, passei a fazer parte da infância de Agostinho e desconfio, até, que alguns fios do tempo se cruzaram realmente.

Revi o Porto que não fez, julgava eu, parte da minha infância, mas afinal o Porto que eu não conhecia é o de hoje. Este é, ou tornou-se-me, estranhamente familiar.

Viajei com Agostinho pelas galáxias até divisar o sítio onde, por quase engano, nasceu. Mas como é sempre possível, enquanto se está vivo, corrigir um erro, lá foi parar, ainda nos primeiros tempos, onde era seu propósito. Podia ter ficado logo pelo resto do mundo, mas este homem gostava de viajar. Era preciso afastar-se para ter o prazer de se aproximar. Além disso, para quê nascer apenas num lugar, só para um país, se se pode viver ao mesmo tempo quase em dois? Como o compreendo, eu alentejana nascida virada para Espanha, sul da Europa e norte de África.

Talvez por ter faltado a Agostinho um GPS ao nascer, este livro vem acompanhado de um GPS de última geração.

À semelhança da selva, onde A. também viveu, a sua vida é um longo emaranhado de lianas pelo qual o biógrafo nos vai conduzindo e criando, de vez em quando, como nos aeroportos e espaços de grande confluência de gente, pontos de encontro. Esses pontos são sinopses onde agremia determinados aspectos da vida de Agostinho já narrados, nunca os mesmos, com que nos orienta no espanto que é impossível não partilharmos com ele, por muito que tenhamos acompanhado, mais ou menos perto, mais ou menos de longe, esta admirável vida.

Essas analepses ou recuos temporais, concentrados, pegam com um talento notável, nas pontas de várias páginas aparentemente dispersas reunindo-as em coerência; uma aranha antiga pode fazer a síntese:

“… quem diria que Agostinho se levantava das duas e meia para as três, para trabalhar de seguida – com uma única paragem às quatro da manhã para audição das Sonatas de Beethoven tocadas por Fritz Kreisler e leitura do Larousse Ilustrado – até às nove da manhã. Momento em que entrava nas explicações – que Ruben A. Diz que ele aviava como quem come figo. Era o que dizia quem lá estava e é o que pode pois interessar esta biografia. Mais tarde, em Santa Catarina, foi com uma negra tarântula tropical a passear-lhe na mão, a rir, sem a mais pequena preocupação, que o meu Silva recebeu Lourenço e esposa. E quem o diz é quem o viu. É pois esse ponto negro que melhor o retrata nesse período. “

Esta, uma das imensas e sempre criativas, novas, surpreendentes sinopses em jeito de analepses (acaba de ser inventado um estilo novo), apesar de feitas com acontecimentos narrados, aqui elegantemente rematada por uma prolepse:

“Agora é tarântula na mão, amanhã será puma na cama. Espere o leitor para ver. “

 

O estilo abrange arcaísmos, como “nanja”, “bonda” “destarte”  e outros, neologismos como é o caso deste a nível da conjugação:  “adolescera”,  passando pelo uso original da metáfora, riquíssima:  “tricotar letra no papel”, “talha dourada verbal”, “quando abriu os olhos, era apóstolo de Agostinho”, “escrever uma biografia de Agostinho da Silva é andar com o mundo ao colo”, a alegoria de uma quase insuportável beleza, a propósito da agonia dos últimos dias:  “Era um castanheiro centenário cujas raízes já não tinham forças para chupar a terra. Já as partes baixas estavam secas e ainda as folhas teimavam em despontar.”, o humor: “Foi por um triz que se salvou de ser frei Agostinho da Selva.”, passando pelo coloquial, “Boa malha, ó Silva!”,  “é tanga, meu!”, “dar cana”, ou mesmo o calão, a par da linguagem mais elaborada e culta. Mesmo nas páginas mais recheadas de listagens e exaustiva informação, nunca há monotonia ou tédio nesta montra lírica, informativa, exclamativa, dialogante, coloquial…

Como texto biográfico, saliento a habilidade para conduzir subtilmente o leitor pelo meio de indícios, dúvidas, até lhe apresentar a prova documental. Outras vezes (mais raras) é mesmo com a dúvida que o deixa. Então ficciona-a. Assumidamente. Abertamente, à vista do leitor, com a sua cumplicidade. Assim lhe dando (ao leitor, à dúvida) honra e dignidade:  “Agostinho palestrou no departamento de Machado da Rosa. Aposto que a conversa, de que não conheço registo, nem mesmo a mais pequena referência, meteu no público muito açoriano […] e de mistura, claro, muito Império do Espírito Santo.”

O tom, de um risonho humor e ironia : “nem uma palavra deixou. Foi e acabou. Ponto de exclamação.”, aparece temperado com generosas camadas de entusiasmo e espanto: ”Boa malha, ó Silva! Assim é que é! Fazia afinal o preparo de alguém que não estava disposto a esperar por uma revolução para viver num país livre; comportava-se como homem livre e bastava.”

O biógrafo não consegue e não se esforça por esconder a admiração pelo biografado.

ACF introduz, ou segue os passos do mestre num novo estilo de biografia que, sem abrir mão do rigor, se liberta do frio espartilho pseudo-científico.

A admiração e o nunca ultrapassado espanto do biógrafo vão avivando as páginas, se é que estas disso necessitavam: “Que obra!”, “Notável! Não é?”, “este homem  foi uma excepção. E que excepção!”, “Que malha, dia meu!”. Entre inúmeras outras emocionadas  exclamações.

E interpreta o que vê: “Só o sonho justifica tanto ânimo.”

Às vezes não sabe ou não tem a certeza ou não consegue provar e afirma-o:

“não sei”, “que agora não encontro”, “Não garanto, mas é muito aceitável que…”, “Impossível saber. Presumo porém que…”, “Pode ser que sim”, “Não digo nem que sim nem que não. Passo.”, “Não me admiraria que…”, “Não me custa imaginar…”.

No entanto sabe os seus limites, afirma:

“Posso ser solto de palavra, mas tenho por ponto de honra ser escrupuloso.”

O biógrafo que se conhece. E respeita.

Quando inventa, anuncia que está a fazê-lo desta deliciosa e sedutora forma que vai buscar ao modelo de inocência, o menino que nele vive: “Esta dos condutores que iam à bola com ele não é da minha testemunha, é minha, só minha. Às vezes deixo-me embalar e o resultado é este, dou por mim a inventar.”

Um estilo pessoalíssimo, um “dolce stil novo” que, se não se inspira, é certamente inspirado pelo biografado na sua faceta de biógrafo.

Vejamos:

“Sem pudor, que era escusado, pegava de conversa com o seu escolhido e ia com ele de passeio, a céu aberto, […] de modo que o leitor pudesse seguir a sua presença. Dito doutro modo: a biografia era o modo de dizer que Montaigne estava vivo e respirava.”

Refere-se este trecho a Agostinho biógrafo. Mas se experimentarmos substituir os tempos verbais pelo presente e “Montaigne” por “Agostinho” não há aqui nada que não se ajuste ao biógrafo António Cândido.  Na biografia Agostinho está vivo e respira, neste passeio a céu aberto com António Cândido.

E aqui temos o que poderíamos designar como uma Arte Poética aplicada à biografia, de que ambos comungam. Fazer biografia é restituir o sujeito à vida para o leitor. Um trabalho… colossal! E, provou-se … possível!

Veja-se outra passagem e avalie-se se não seria possível afirmá-lo sobre esta biografia:

“a biografia de Montaigne por Agostinho da Silva é um livro poético com largos recursos criativos que não pode ser tido como um repositório documental nem como o fruto asséptico dum historiador; ele é antes o resultado de uma operação delicada de selecção e montagem, que passa primeiro pela percepção de uma alma e depois pela criação de um modelo mimético, quase dramático, capaz de restituir no papel a vida desse arcano eterno.”

A biografia de Montaigne, e a biografia de uma montanha, uma mesma concepção acerca do que é fazer uma biografia de alguém que não acreditava na morte, que era o caso de Agostinho, logo, apenas como vivo, ou trazendo-o à vida, se pode falar dele. Tal foi o feito de ACF.

Aproximamo-nos da relação com o biografado.  De que forma se lhe refere?

Não serei exaustiva, nem sequer respeito a ordem, mas não resisto a “exemplificar”:

“meu jovem”, “meu moço”, “…meu Plutarco…”, “o meu exilado”, “o meu aldeão”, “meu pedestre”, “  meu macróbio”, “o meu maduro”, “o meu Hércules”, “o meu Silva”, “meu mestre”, “o meu biografado”, “anormal que sacava vintes”, “Adamastor de Palhavã”, “Aquele lapuz”, “meu Tertuliano, “o meu doutor”, “o meu anormal”, “o meu Atlante”, “meu bicho”, “meu cavaleiro andante”, “meu George”, “O meu escritor”, “o meu inventivo”, “meu novel professor”, “o meu bandeirante”, “meu celtibero”, “meu zagal”, “o meu cigano”, “o meu chefe”, “o meu crítico”, “o meu rústico”, “o meu templário”, “meu boieiro”, “meu berbere”, “o ecuménico do candomblé”, “o meu despreocupado”, “O velho grisalho de terno preto”, “meu astuto”, “o meu índio”, “meu velho índio”, “meu homem”, “este meu bárbaro”, “o meu doido”, “o meu filósofo”, “o meu brincalhão”, “o meu despachado”, “o meu falador”, “o meu mestre-sola”, “o meu meileca”, “o meu pião”, “o meu campestre”, “meu soldado”, “o meu velho”, “meu irreverente”, “o meu vagabundo”, “meu danado”, “índio da Itatiaia”, “o meu sáurio”, “meu peixe”, “incêndio de generosidade e génio”, “o meu socorrista do sertão”, “meu sátrapa”, “um tripeiro de Campanhã, um Zé dos Anzóis qualquer…”, a que acrescenta: “… que chega a conselheiro da Presidência do Brasil aos 55 anos”

Às vezes senti por detrás o sorriso, mais frequentemente o espanto, a admiração, muitas vezes a incontida emoção.

Certas designações tanto podem comparecer com ou sem o possessivo, é o caso de “Atlante” e “anormal”.

Verificamos que a maioria das vezes usa o possessivo, com ou sem o artigo, com que cria ou desfaz intimidade, outras o deítico espacial: “aquele” com que o distancia para melhor o observar?, enquanto que outro deítico espacial associado ao possessivo “este meu” o puxa para junto de si e se apropria dele; “meu Silva” é frequente e atravessa todo o livro, talvez com incidência no início, algumas expressões são absolutamente isoladas, servem para um retrato instantâneo, há uma evolução de trato, diria de confiança ao longo do livro, um maior à vontade, também isso evolui com a vida de Agostinho, alguns epítetos não são o que parecem, quando o designa como “anormal” é ao nível da épica que o eleva, o ser especial, diferente, o Titã, o divino em aparência humana. “Anormal” quase substitui uma interrogação de espanto ou quase incredulidade ou incapacidade para integrar tanta grandeza. Também aqui está presente o neologismo, como as mães que nem sabem que mais nomes inventar para os filhos… e criam nomes novos, usam os insultos como cúmulo de ternura, alternam entre substantivos e adjectivos. Algumas expressões poderiam ser de uma mãe orgulhosa do filho que teve: “é um caso raro, se não único, de dar saltos e gritos de vitória.”.

Um biógrafo apaixonado pelo biografado (nem seria possível escrever uma biografia assim sem essa condição…) : “O meu doido”, de onde extravasa todo o amor, ternura e admiração que cabem num coração.

Agostinho, lendo esta biografia, teria posto de lado a admiração, como a carne que não comia, mas não teria sido insensível ao amor, ele que toda a vida o respirou e recriou. Nem ao humor; acima de tudo ter-se-ia divertido com a sua própria imagem, com o riso refletido dela, ele que nunca se levou demasiado a sério. Eliminava da sua vida os problemas próprios para ficar mais disponível para os dos outros, como na biografia, a páginas tantas, é dito.

Quase poderíamos recriar a vida de Agostinho com uma boa listagem (que não seria esta minha caótica e incompleta lista) dos epítetos utilizados, exaustiva e seriada.

Não se pense, todavia, que este herói, pela excepcionalidade, aparece nebuloso, mental e diáfano. Não. Ele é bem corporal. Às vezes a descrição é quase animalesca, e desta forma ainda mais o eleva: “recebeu, quando calhou receber, […] quarto onde metesse corpo em leito decente e manjedoura modesta mas limpa onde arrumasse dente.”

“Agostinho é um varão seguro, espadaúdo, bíceps rijo e teso.”

Avançando na leitura, há quatro momentos especialmente dolorosos: aquele que corresponde ao tempo da prisão política,  o acidente do filho Pedro, a fase das Conversas Vadias e a doença, que no fim da vida acabou por levá-lo. De resto, até os problemas são divertimento e animação, para Agostinho. E para nós, que com ele vamos aprendendo.

Mas é doloroso, faz mal ao coração recordar o período destas entrevistas televisivas, onde o ouro foi algumas vezes desvalorizado pelo outro. Um homem de idade avançada brilhando de vivacidade e futuro e, em alguns casos, não em todos, jovens bolorentos fedendo a naftalina. Foi o que viu quem esteve atento, é o que a biografia confirma.

Agostinho que acreditava, como testemunho encontrado mais à frente no livro, que as doenças reflectem o que nos fez mal na vida, não terá ficado bem do esforço que o coração teve de fazer nestes duelos desiguais opondo coração e mente, inocência e preconceito, sabedoria e resistência.

 

Não referi as muitas considerações sobre educação, sobre política, sobre amor e sexo, crítica social, crítica literária. De biógrafo e biografado. Lá estão, mas não se confundem. Uma abraça a outra, uma dá colo à outra. Não era possível caber tanta coisa neste texto já longo.

Ler este livro torna-nos melhores. Porque nos recorda o que de melhor pode existir num ser humano, como inteligência, coragem, talento, resistência, modéstia, generosidade, humildade, misericórdia, criatividade, espontaneidade, fé, compaixão, entusiasmo, optimismo, desprendimento, solidariedade, liberdade, fraternidade, frontalidade…

E também porque o livro é a prova de que a literatura e a arte podem ser uma forma de justiça pela reunião do amor com a sabedoria e a beleza.

Não consigo imaginar alguém lendo este livro a espernear. Embora já tenha havido quem o fizesse. Deve ser um enorme sofrimento. Como se nos pusessem à frente a melhor e mais divina das iguarias, mas por razões obscuras não pudéssemos mostrar o nosso prazer e fôssemos obrigados a deliciar-nos, mas ao mesmo tempo fazendo caretas e contorcendo-nos obscenamente de agonia a fingir que não gostamos. Deve ser doloroso. Mas é possível, porque já aconteceu. Mistérios. Ou talvez não.

Não vou esmiuçar, o ambiente está perfumado de Agostinho e seu biógrafo, não quero estragá-lo, mas  quem tiver curiosidade sobre a explicação para um ou outro feroz ataque com que o livro foi recebido, explicações não faltam.  Bastariam as páginas entre 276 e a 284 para, numa certa óptica, ajudar a compreender acicate tão cerrado a esta biografia.  Que, aliás, não é ela, a biografia, que incomoda, mas flashes de biografias outras que, em nome da verdade, aqui aparecem. Como diria o Garrett das Viagens¸ ele poderia descrever a estalagem desta ou daquela maneira, ao gosto da época, dos leitores, dos críticos, o problema é que nada disso lá estava…

Esta biografia na aparência épica, em V cantos, épica pelo tema, pelo herói, pelo tom, pela extensão, apenas aparentemente o é. É biografia, não é épica. É que, para além de uma ou outra passagem em que assume brincar com os factos, não há aqui ponta de invenção. O homem era mesmo assim, um muito, mas mesmo muito estranho colosso. Não há volta a dar-lhe e outro título também não poderia ter, para não deixar de ser fiel à vida:

“Um homem sem medida… na bitola comum.”

Mesmo assim, uma ou outra vez acontece a necessidade de relacionar a extensão e a tarefa com o valor e a acção:

“É por esta e por outras invulgaridades que o meu Silva merece longa biografia.”

“Mas é por isso mesmo que ele merece vir aqui. Se não fosse este seu espírito livre, não estaria eu aqui, tantos anos depois dos sucessos, a falar deles.”

Quanto  mim, direi sem pudor que estou ainda em espanto como em criança perante qualquer tipo de grande monumento. Como é possível tal livro, tal vida?

Este livro talvez pudesse também intitular-se “Da felicidade”, porque afinal de contas de outra coisa não falou Agostinho desde que falou: Como podemos ser felizes e criadores e assim espalharmos a felicidade no mundo?

Contudo, este título não daria conta do monumento realizado e da monumental forma de o fazer. Nem da estranheza perante a grandiosidade da vida e da obra.

ACF percebeu a dificuldade em abraçarmos a complexidade desta vida, pelo que, como professor que não deixa de ser, para além do poeta, do investigador e do escritor também aqui presentes no seu livro, foi fazendo resumos, sinopses, sínteses, elipses, revisões da matéria. E que matéria!

Como se tivéssemos de prestar provas. E não teremos de prestar provas à nossa própria vida depois de lermos sobre esta Vida?

Será o próprio biógrafo que se sente em prova?  Ou talvez solidário com o leitor, entre o III e o IV  capítulos, o Brasil ficando para trás:

“Quem passa a prova do Brasil na biografia de Agostinho está safo.”

Quem é que está safo? Ele? Nós? Nem me passa pela cabeça pensar que poderia ser Agostinho. Agostinho, se tivesse ficado no Brasil, ainda estaria vivo. Este cantinho mental era demasiado pequeno, as artérias não cabiam em espaço tão acanhado.

E assim terminou o gigante, aquele que não precisava de descansar. As últimas páginas são comoventes, a narrativa do abandono do sopro faz-nos sentir mais sós, como se ele voltasse a abandonar-nos em cada leitura.

Por isso prefiro concluir as minhas impressões sobre esta tese na forma de biografia, com um início.

A tese deste livro seria, na minha atrevida especulação:

No princípio é o verbo, isto é, o livro faz a defesa, no meu entender com muita propriedade, justiça, arte e competência, de que o seu biografado foi especial e quase miraculosamente visitado pelo sopro, tendo, para além da espantosa vida que viveu, um raro talento na área do verbo, que se expressa quer na comunicação oral, quer na palavra escrita.

Quem leu, quem ler, julgará este meu atrevimento.

 

Maio de 2015