UNIVERSO TÉLMICO. 38
Apresentação do livro de Pedro Martins
A LIBERDADE GUIANDO O POVO – Uma Aproximação a Agostinho da Silva
Zéfiro, 2016
Helena Briosa e Mota
Quando Pedro Martins me convidou para apresentar, após a manifesta indisponibilidade do Prof. João Ferreira, ao lado de Rui Lopo, o seu novo livro, a primeira reacção foi de recusar a honrosa proposta. Sem rebuço, afirmo que não só me senti como me sinto incapaz de ombrear com qualquer um dos dois convidados. Contudo, posta perante o desejo explícito do Autor e o título da obra que, versando o pensamento de Agostinho da Silva, fora intitulado de A liberdade guiando o povo, o impulso imediato foi de aceitar, sem pestanejar, o repto, dado considerar ser o tema da Liberdade aquele que mais fundo calou tanto no pensamento quanto na praxis agostiniana. Lendo o subtítulo da obra, uma aproximação a Agostinho da Silva, de imediato aflorou à minha face um sorriso, lembrando o «dissídio» manifesto pelo Pedro Martins na sua obra anterior Agostinho da Silva em Sesimbra – amorosamente escrita com outro Amigo comum de ambos, de seu nome António Reis Marques.
Comecemos, então, pela questão do dito «dissídio». Pois se Pedro Martins tanto discorda de Agostinho da Silva (AS), por que motivo lhe dedica – e continua a dedicar – tanto do seu labor reflexivo? Por que motivo continua insistindo em lhe estudar o pensamento? A resposta é simples, e todos a conhecemos. Mais do que as diferenças que dele o separam, as características de que se reveste a personalidade única de Agostinho sobrepõem-se e ultrapassam qualquer argumento de eventual dissidência. Pedro Martins identifica-as e não deixa de se render à sua grandeza quando as enumera:
(i) Agostinho da Silva é um dos nomes cimeiros da história do pensamento português no séc. XX. Se nos lembrarmos da consulta popular, feita via televisão, em 2007, para se eleger O Grande Português, e se abstrairmos os 7 políticos (Salazar, Cunhal e Aristides S. Mendes, Pombal, Salgueiro Maia, Mário Soares e Sá Carneiro), os 2 reis (Afonso Henriques e D. João II) e o príncipe D. Henrique e o navegador Vasco da Gama, e os dois santos (António de Lisboa, Nun´Álvares) e o não canonizado missionário João Almeida, os jogadores e o dirigente futebolístico (Eusébio, Pinto da Costa e Mourinho) e a cantora (Amália), verificamos que Agostinho, a quem coube um 21º lugar, só foi ultrapassado por Camões (5.º lugar) e Pessoa (8.º lugar)! Portanto, como acima se disse, Agostinho da Silva é um dos nomes cimeiros da história do pensamento português no séc. XX.
(ii) como escritor, foi um dos maiores que Portugal leu. E leu de forma entusiástica: de acordo com os relatórios dos informantes da PIDE, ficamos a saber que «contam-se, aos milhares, os seus leitores»;
(iii) no que à oratória diz respeito, reconhece-a como «genial e lendária»;
(iv) é homem de uma coragem cívica caracterizada de «exemplar, entretecida sempre da maior dignidade»;
(v) de «peculiar sentido de liberdade… dirigido, por inteiro, ao que em cada um de nós é mais autêntico e mais aventuroso»;
(vi) de «bondade sumamente dadivosa». (Martins e Marques, 2014: 15-17).
Claro que tão vultoso elenco de características humanas não passa despercebido, muito menos deixa alguém indiferente. E eis Pedro Martins a ganhar consciência de que, se havia algo que o separava de Agostinho, tal residia, tão simplesmente, no «devocionismo que em seu redor se gerou», (Martins, 2016: 4), na «incensação acrítica do seu legado», penas que, de forma alguma, se poderiam imputar a Agostinho.
Daí à aproximação foi um passo. Pedro Martins não resistiu, não resiste à grandeza do «pedagógico monstro» que em muitos passos da sua obra, mas sobretudo no Caderno de Lembranças se auto-analisa e vai revelando. Melhor dizendo, se vai desvelando (2006: 45). Dois anos passados sobre a última obra, durante os quais prosseguiu nos seus estudos, vem o autor dar o dito por não dito reconhecendo, candidamente, que afinal é «um agostiniano». As reservas de pensamento que tinha, continua a tê-las e, salutarmente, qual José Kertchy Navarro irá Pedro Martins mantê-las[1]. Como agostiniano que a partir de agora se assume, ao distanciar-se de Agostinho, não se está a afastar dele, muito pelo contrário. Pedro assumiu para si a agostiniana tarefa de lançar sobre a terra «uma semente de renovação e de íntimo aperfeiçoamento», reservando para si a tarefa «de compreender e unir» (AS, 1989: 59).
Rememorando a conversa havida entre Agostinho da Silva e António Reis Marques no dia em que este, espantado, vê o seu Amigo chegar a Sesimbra, quando seria suposto que estivesse em cerimónia oficial recebendo, das mãos do Presidente da República, uma das mais honrosas distinções, a da Ordem da Liberdade, Agostinho afirma ter sido sempre, «tanto quanto se pode ser, um homem livre», pelo que, em liberdade, decidiu vivenciar tal bem em Sesimbra. Renunciando ao ‘objecto’, ao ‘penduricalho para ostentar na lapela’, Agostinho demonstra não abdicar do ideal do valor supremo, muito menos do seu integral gozo.
A liberdade é o α e o Ω no pensamento de Agostinho da Silva. Explícita ou implicitamente, este valor essencial perpassa por toda a sua obra, condicionando e, simultaneamente, orientando toda a sua acção.
Quando chega a Paris, em 1931, e até ao fim da sua estada na cidade-luz, em 1933, o jovem bolseiro encontra-se no epicentro da Europa que, em crescente preocupação, vai ganhando consciência das ameaças crescentes à liberdade pessoal dos cidadãos. A população é sensível às chamadas de atenção do Doutor Armangaud que, neste ano, vê a Mairie aceder à edificação de uma estátua em memória de Montaigne, o paladino das liberdades. Dois anos passados, por ocasião da celebração do quatro centenário do nascimento do humanista (1533 – 1592), o escultor Paul Landowski vê descerrar o pano inaugural, mostrando o belíssimo conjunto em mármore branco na Rue des Écoles, na Sorbonne[2]. Entre a Sorbonne e o Collège de France, diariamente frequentados por Agostinho.
De Montaigne, de quem estuda o pensamento e traduz alguns dos Ensaios, revela Agostinho que, por admirar os Reis, perante eles se inclina: «Diante deles tudo se deve inclinar e submeter salvo a inteligência» (1933: 112). E para que quanto a isto não reste qualquer dúvida, anota o tradutor a quem declara aborrecer «toda a espécie de tirania» (1933: 105) o comentário: «Em política, como em religião, Montaigne curva o joelho; a inteligência não (1933: 112).
Nada mais óbvio que tal tomada de posição: Montaigne é o dilecto Amigo de Étienne de la Boétie (1530 – 1563), o dedicatário do ensaio Da Amizade e autor de Discurso sobre a Servidão Voluntária, verdadeiro hino à liberdade que não terá passado despercebido a Agostinho que, ao longo de toda a vida, se assume como «Irmão Servidor», aquele que sacrifica a sua liberdade em prol dos direitos universais de seus irmãos.
Foi em defesa do valor da liberdade que, em 1943, no âmbito da campanha de divulgação cultural que empreendera, escreveu Doutrina Cristã, um folheto de quatro páginas, desdobrável, em que apresenta uma tese explanada ao longo de quatro pontos que, por ser considerada subversiva, acabou por o levar à prisão do Aljube. No último ponto da proposição explicita Agostinho a ideia e defende a teoria de que
Para que possa compreender Deus, para que possa, melhorando-se, melhorar também os outros, o homem precisa de ser livre; as liberdades essenciais são três: liberdade de cultura, liberdade de organização social, liberdade económica. Pela liberdade de cultura, o homem poderá desenvolver ao máximo o seu espírito crítico e criador; ninguém lhe fechará nenhum domínio, ninguém impedirá que transmita aos outros o que tiver aprendido ou pensado. Pela liberdade de organização social, o homem intervém no arranjo da sua vida em sociedade, administrando e guiando, em sistemas cada vez mais perfeitos, à medida que a sua cultura se for alargando; para o bom governante, cada cidadão não é uma cabeça de rebanho; é como que o aluno de uma escola de humanidade: tem de se educar para o melhor dos regimes, através dos regimes possíveis. Pela liberdade económica, o homem assegura o necessário para que o seu espírito se liberte de preocupações materiais e possa dedicar-se ao que existe de mais belo e de mais amplo; nenhum homem deve ser explorado por outro homem; ninguém deve, pela posse dos meios de produção e de transporte, que permitem explorar, pôr em perigo a sua liberdade de Espírito ou a liberdade de Espírito dos outros. No Reino Divino, na organização humana mais perfeita, não haverá nenhuma restrição de cultura, nenhuma coacção de governo, nenhuma propriedade. A tudo isto se poderá chegar gradualmente pelo esforço fraterno de todos.
Como Pedro Martins muito bem identifica na sua obra, «na arquitectura do pensamento de AS será possível reconhecer uma função basilar à Igualdade, uma função pontifícia à Fraternidade e uma função reitora à Liberdade» (2016:8). Este é o α da sua obra, que desenvolve ao longo de doze capítulos para, chegando ao Ω, concluir que «Agostinho não é o mito, nem é um mito. Anuncia, pelo mito, o mundo a haver.» (2016:181)
E é ao longo destes doze capítulos que, num passeio pelas obras de Agostinho, mas também pelas de outros companheiros de carteira ou contemporâneos (mestre Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Pinharanda Gomes, António Quadros e António Telmo, para apenas enumerar alguns), e pela mão hábil de Pedro Martins vemos o desfiar e o evoluir dos conceitos relativos à ética, à moral, à política, e a forma como a arte, a ciência, a educação, a economia e a religião, se entrelaçam e alicerçam, ganhando foros de imprescindibilidade na construção da realidade proposta para a sociedade ideal segundo a proposta agostiniana.
A tríade Martiniano-revolucionária que põe em interacção a Liberdade, Igualdade e Fraternidade orientou, qual Estrela-Polar ou Cruzeiro-do-Sul, a acção e o pensamento de Agostinho da Silva. Porque sendo princípios orientadores de uma revolução, a Francesa, historicamente fundadora dos direitos civis, não podem senão apresentar-se em clara oposição a toda e qualquer opção absolutista.
Agostinho pertence ao grupo daqueles que, antes de conceptualizar, age. Age por imperativo, e imperativo de ordem ética, em prol e em defesa d’ O Outro. Fraternalmente, e porque O Outro é, efectivamente, seu irmão, Agostinho não o vê de outra forma que não seja como seu igual. E como igual que é, e igual o quer a si, salta para a liça e combate, lutando ferozmente em prol do valor da Liberdade.[3]
Em 1982, em conversa com seu neto, João Rodrigo Mattos [e Silva], à pergunta: “– Está com algum novo projecto?”, Agostinho responde: “– Vários”. “– Qual deles é o mais importante?” “– Mudar o mundo”, respondeu Agostinho, convicto. “– Não acredito que haja projecto meu mais importante que este.” (2000:206)
Aos 88 anos de idade Agostinho continuava a acreditar no projecto que empreendera desde os tempos em que, menino de escola, em caderno de duas linhas, escrevia histórias descrevendo um mundo melhor. Ao longo da vida, porque acreditava na causa libertária, bateu-se pela convicção de que é necessário, é imprescindível mudar o mundo. Um mundo melhor, de gente liberta, vivendo em fraternidade. Um mundo solidário e justo, de gente mais feliz, porque mais consciente de que, sozinha e isolada, nada é: só em comunhão e em amorosa união cada um poderá ser capaz de, a um tempo, ser uno e plural. E lançar as bases da tão desejada sociedade da prosperidade e da abastança geral, conquistada à custa da paz. Construir o Reino do Divino ou Quinto Império, a propalada Nova Civilização ou Sociedade sem Classes, a Idade Final ou Idade de Ouro, a tão difundida Idade, Reino ou Era do Divino Espírito Santo, que um dia há-de chegar. Pessoanamente, n’ A Hora.
Está na nossa mão decidir se queremos envolver-nos naquele que era ainda o projecto de Agostinho: lutar pela nossa liberdade, pela liberdade dos nossos. E, ganha a luta, ouçamo-nos e detenhamo-nos, em reflexão. Deixemos a nossa consciência de cidadãos empenhados falar. E, finalmente, ousemos agir! Porque, tão simplesmente, dizia Agostinho em A Doutrina Cristã, «… a tudo isto se poderá chegar gradualmente pelo esforço fraterno de todos.»
Pelo que se sabe e vai sabendo da sua vida, não restam dúvidas de que Agostinho da Silva foi um homem bom. E os iguais identificam-se, vendo-se nos outros reflectidos. E Pedro Martins viu-se nele espelhado. E a obra nasceu, para nosso júbilo. Intitulou-a de A Liberdade Guiando o Povo, uma Aproximação a Agostinho da Silva. Ei-la, para nossa reflexão e intelectual prazer.
Obrigada a todos, OBRIGADA, Pedro Martins!
Sampaio, Sesimbra, aos 14 de Maio de 2016,
REFERÊNCIAS
MONTAIGNE, Três Ensaios – Do Professorado –Da Educação das Crianças – Da Arte de Discutir. Tradução de Agostinho da Silva. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933
SILVA, Agostinho da, Considerações e outros Textos. Lisboa, Assírio & Alvim, 2.ª ed., 1989
MATTOS [e Silva], João Rodrigo, “Velho Mestre Menino”. In: Agostinho, AA.VV., coord. Rodrigo Leal Rodrigues, Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes, São Paulo: Editora Green Forest do Brasil, 2000.
SILVA, Agostinho da, Caderno de Lembranças. Corroios, Zéfiro, 2006
MARTINS, Pedro e MARQUES, António Reis, Agostinho da Silva em Sesimbra. s/l (Setúbal), Centro de Estudos Bocageanos, 2014
MARTINS, Pedro, A Liberdade Guiando o Povo – Uma Aproximação a Agostinho da Silva. Sintra, Zéfiro, 2016
Lista dos 100 maiores portugueses
(eleição em 25 de Março de 2007)
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Grandes_Portugueses [consulta em 21-04-2013]
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O político António de Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Ministros por mais de 40 anos, foi o vencedor, com 41% dos votos.
- Em total discordância com o «discipulato», e em suma concordância com a tese defendida por AS e propalada pela voz de seu heterónimo José Kertchy Navarro, de que são seus discípulos, se alguns tem, os que estão contra si.
[2] Desde 1981 que, para fazer face ao desgaste, foi a peça mandada fundir em bronze.
[3] Escuso-me a apresentar o que quer que seja de dado biográfico para sustentar esta afirmação, tautológica que seria perante tão selecta e douta assistência. Em conversa informal, à roda de um chá ou de um café, sem qualquer constrangimento de tempo ou de qualquer outra sorte, poderemos todos exemplificar multimodamente a asserção que acabei de fazer. As histórias ilustrativas são quase que infinitas. E saborosas.