UNIVERSO TÉLMICO. 60

29-07-2018 15:50

De Risoleta C. Pinto Pedro, publicamos hoje o ensaio escrito à guisa de posfácio para o mais recente livro de poesia de José Santiago Naud, amigo e colega de António Telmo na Universidade de Brasília, de que ambos foram professores, integrando, com João Ferreira, Conceição e Silva e Eudoro de Sousa, o círculo candango de Agostinho da Silva. Cara de Cão, assim se intitula a obra, que foi lançada no passado dia 24 de Julho, em Brasília, numa sessão que as fotografias documentam.

O salto no abismo e o rosto do cão[1]

Risoleta C. Pinto Pedro

 

«este salto

mortal

saltado no vazio, ou cão

que sai do rio»

in: Cara de Cão, José Santiago Naud

 

«O verdadeiro escritor [...] está dependente do seu tempo [...]

 é o seu servo mais humilde.

Está amarrado a ele com uma corrente curta e irrompível [...].

Ele é o cão do seu tempo.

Corre pelas terras do seu tempo, fica parado aqui e ali,

aparentemente arbitrário, mas incansável,

receptivo aos assobios vindos de cima [...].

Esse mesmo cão que ao longo de toda a sua vida

anda atrás do seu focinho [...].

É uma exigência cruel, realmente,

e é uma exigência radical.»

in: A Consciência das Palavras, Elias Canetti

 

Talvez sugestionada pelo título de uma das partes deste livro (“Dos Nomes”) ou por alguma outra misteriosa razão daquelas que o coração compreende, mas a mente oculta, fui sendo conduzida, ao longo da leitura deste arrepiantemente belo mapa poético, para a decifração dos nomes.

«Contente como um cão» mesmo não o sendo, recolhi os nomes pela boca e não sei quem foi meu dono que me chamou:

«Porque, sim, talvez, quem sabe

o domínio que tens sobre o teu cão

venha do que nem sequer descobriste,

e trazes em ti como um sigilo, a luz

quando lhe dás um nome

que ele atende.

Soltos

no susto da selva ancestral,

desordenada

memória obscura do instinto,

estes sinais

que caem da tua boca

e ele recolhe no ar como um dono,

ordenam o invisível

que ele não apreende muito bem,

(quem sabe?)

mas obedece.»[2]

Odedeci. Como amável cão, ousei tentar acompanhar os múltiplos saltos sobre o abismo do cão de plumas que habita este livro. Com ventos de cortar a respiração, segui-o com o olhar da metáfora transfigurada pela poderosa pena (ou pluma) de Santiago Naud que quase esmaga, que a seguir ressuscita. 

Alguns passos por certos espaços da minha geografia pessoal convergiram, nos símbolos, com aqueles que aqui fui encontrando, pelo que o mistério da revelação foi o luminoso nevoeiro que me foi orientando na leitura como na vida, durante estes dias em que andei acompanhada pela linguagem desafiadora e sagrada de Santiago Naud (SN).

Este livro é uma viagem com mapa dentro. O mapa é cifrado, mas na liberdade da cifra, apesar de temperada pelo rigor das margens, a viagem torna-se infinita. E o cão não é um animal fixo, mas um ser de passagem, viagem ou transição entre raças, entre estados, entre mundos: «cão de jejum entre a raposa e o lobo», um cão em trânsito entre a terra e os céus («o cão/da via constelada»).

Livro dedicado à esposa, de nome Leda, e aos dois filhos, Marcos e Cristóvão,  e em memória de um mestre de grego, o que por si só já diria muito sobre o autor, e foi, neste meu caminho arqueológico pelo coração dos nomes, um sinal. É em parte ao grego que precisamos de ir, no encalço dos inumeráveis sentidos (e não estou a criar uma hipérbole) deste poeta. Muito mais haveria a dizer, mas impossível se revelou, repito, ignorar a influência dos nomes.

Começamos por ficar em estado de alerta a partir dos símbolos pré-anunciados na capa pelo nome e apelido do autor, José Santiago, onde se unem judeu e cristão neste homem de sensibilidade ecuménica; e nos já referidos nomes da dedicatória: Leda, Marcos, Cistóvão. Marcos deriva de Mars, é Marte, portanto oriundo do céu, tal como a constelação com nome do animal que dá título ao livro. A figura evangélica de Marcos concentra unanimidade acerca da sua santidade pelas igrejas católica, ortodoxa e copta, sendo, por esta última, considerado o fundador da igreja de Alexandria, logo, o patriarca. Também à figura mítica Leda não é alheio o mundo celeste, pela atracção de Zeus. Leda tem uma dupla significação, se atendermos a uma origem grega (mulher, esposa), o que é uma feliz redundância no nome próprio da esposa do poeta, felicidade espelhada na outra possível etimologia latina (alegre, risonha); um nome espelho o dela, Leda. A Santiago, aquele cujo corpo deu à costa na Hispânia numa barca, e a Cristóvão, esse outro que, segundo a etimologia grega transportou, levou ou suportou Cristo, regressaremos.

O livro, glossário da vida material e transcendente, foca a atenção das suas palavras nos meses, nas estações do ano e nos nomes, essas entidades de criação.

Livro de uma profunda coragem ao nível do afecto, um nível superior onde estética, amor e coragem se fundem e se tornam na mesma coisa, Cara de cão é uma surpresa, como se fosse impossível concretizar o que realiza, e no entanto aqui está o impossível realizado.

Tentarei seguir o rasto do cão, «bicho/essencial/podendo ser tudo o que não é», fá-lo-ei «como um cão de rastro», prosseguirei junto ao chão, de onde melhor se vêem as constelações, e farejando, assim esperando olhar-lhe o rosto para me ver («o cão/reflete outro cão passando/um outro e outro»). Na fidelidade ao rasto espero encontrar o rosto da fidelidade («e o cão/fiel na cara do dono»). Pegadas e indícios não faltam, basta a atenção:

            «Tudo está

            pesado e medido, sob véus

            que encobrem a inicial

            cara explícita de cão.»

Apesar de «disfarçado/um cão, o astro te olha». A cara é explícita…  («a cara na cara/tu és teu cão, e teu cão/precário aos nós da energia/é o tu ressurgindo/puro de força e magia») para lá dos véus, que tentarei atravessar «como um olho de cão/que contempla». Ainda que tenha de passar pelas «entranhas de cão» e nelas ler como num livro de poemas «iluminado pelo fogo».

Não afirmo que não exista, mas não conheço outro texto que ilumine com a mesma profundidade a presença do cão no mundo, a sua relação com o humano («Usava um/cão, simplesmente/um cão sem corrente, ligado na luz/e no vazio,/atravessando a treva/com toda a humanidade») e com os deuses. Não conheço outro texto «seguido pelo cão» que tanto ilumine o ser humano através do símbolo obscuro e brilhante que é um cão:

            «a cintilação, a fuga, o irromper

            da visão, em que imprevisto o meu cão

            parece ser tudo.»

Esta paradoxal e ambígua relação do humano com o «animal e visionário[3]» está magistralmente aqui disposta. E nenhuma linguagem senão a poesia poderia fazê-lo com este rigor:

            «Estás cioso da tua realidade, mandas

            e não pedes, régio

            te assentas no poder,

            quase um imperador

            quando baixas a ordem no teu cão.

            Ah, que ironia

            podia cintilar o teu nobre animal,

            fiel como escudeiro

            e antigo como um deus,

            se deuses falassem

            ou ladrassem,

            ou pelo menos tu compreendesses as suas falas

            quando sacode o rabo

            e, entre a mão do afago e a cabeça bruta,

            qualquer coisa de certo

            incerta fulgura.»

 

O cão, o rosto e as máscaras é uma das leituras que o monumento poético de SN me suscitou. Num livro de tão generosa poesia, num livro estrela múltipla de inúmeras irradiantes pontas, apenas poderia percorrer uma das luzes. Este foi o caminho que logo de início me foi apontado em Tomar[4] para onde fui arrastada e posteriormente imobilizada junto a uma pintura mural representando S. Cristóvão com cabeça de canídeo. Teimosamente, muitos outros caminhos mentalmente iniciei, a eles recorrentemente regressei e os mesmos repetidamente tive de abandonar ou libertar no céu das ideias. O cão não me largou mais, abocanhou minha pena e foi ele que a conduziu. Com razão, pois não teria sido possível seguir tantos possíveis e paradoxalmente quase infinitos trilhos. E eu já me encontrava num trilho conducente ao infinito. Muitos outros entretanto me surgiram durante a leitura e tive de levar para o mesmo mundo daqueles que soltei. Porque tendiam a criar uma imensidão que o espaço físico que considero razoável para conter a minha expressão neste livro, ao contrário de Cristóvão levando (suportando) Jesus aos ombros, não suportaria. É que esta poesia é quase de se ficar sem respiração, torrente inimaginável de impossível, e no entanto, como se respira melhor quando se entra nela e por ela nos deixamos arrastar.

Começo pela capa, o cão de Goya, duplicado algures no poema:

«brincando o quadro em nós

como se nele

brotasse aquela árvore de inverno

com um cão debaixo.»

Para alguns, o cão de Goya é nada menos que um cão… a afundar-se. Todo o cão, para o seu dono ou amigo, está a afundar-se, porque cada minuto que passa é o drama de menos um minuto com ele, digo, com o Amor. Como quase a afundar-se se encontrou quem já adiante veremos, transportador de Cristo.

Nas narrativas sagradas cristãs, o cão é uma presença importante, desde o cão de Tobias ao de S. Roque, o peregrino. Que nesta enorme moldura também não deixa de estar presente com seu joelho em sangue:

            «Vívido rosto da morte,

            na total decomposição

            os recolho, esses rostos

            desfeitos,

            faço-lhes lamber meu cão,

            que pelo joelho em chaga

            vem fazer o pão do peregrino

            coma túnica erguida

            ao dedo afirmativo.»

Este livro coloca pelo menos (muitas outras contém, mas esta, por introdutória, é incontornável), uma pergunta essencial: de que modo alguém que nunca tenha vivido uma relação de amor com um cão ou com outro ser capaz de dar e receber o amor total  de que só os cães capazes, sente esteticamente este texto? Isto é, a emoção amplia a estética ou o sentimento da estética pode existir sem o conhecimento da emoção?

Será, por isso, necessário amar um cão para compreender o rigor deste retrato?

            «a hora do cão

            mordendo mais forte o punho do dono

            para que a mão se solte

            e deixe que ele salte,

            de repente

            lambendo a sua cara cheio de efusão.»

Nunca nada, que eu conheça, foi escrito sobre cães (e sobre cães e nós e tudo) com esta força demolidora e construtora, arrancadora de torrentes de lágrimas de desgosto e redenção:

            «os olhos

            do teu cão,

            transformado em ti

            lá atrás, quando te correspondeu

            no momento em que lhe disseste: “Vem”,

            e ele saltou no abismo.»

Este cão, ou a sua cara, neste caso não do dono, mas do cão, elevada (ou restituída) à dignidade e importância de um rosto de Janus, é um mapa de orientação no mito, no símbolo, na erudição e no coração, tarefa impossível, contudo aqui materializada. Janus ou «Anfisbena» ou «Exu», os de dupla face. No caso deste poeta, a erudição rebrilha e torna-se uma espécie de novo recurso estilístico, porque perfeitamente integrada no processo poético que, pelo muito talento a dispensaria, mas que com ela requinta a alquimia.

A tripla dedicatória, cujo terceiro nome é Cristóvão, leva-nos misteriosamente até uma pintura mural muito apagada, bastante imperceptível, da extraordinária Charola de Tomar, esse templo de Jerusalém construído pelos mestres templários no coração de Portugal. Aí se vislumbra, com grande esforço de discernimento visual, um São Cristóvão cinocéfalo, o que significa que se insere na tradição do bestiário, porque tem uma cabeça de cão.

São Cristóvão, o pagão que por transportar (ou suportar) sobre os seus ombros Cristo para a outra margem (por isso se sentindo a afundar, como o cão de Goya, o que, se mais razões não houvesse, justificaria totalmente a imagem da capa), margem também associada a outro plano, sagrado ou céu («cão sideral»[5]), é ligado à Ascensão. Não será por acaso que a Cristóvão, Santiago Naud agradece, na dedicatória, «por me suportar». E salvar? Salvar para ser salvo?

A data do fresco de Tomar é irrelevante, porque estamos perante o mistério. Século XIV ou século XII, isto é, muito provavelmente contemporâneo a Gualdim Pais, o Grão-Mestre Templário? As opiniões dividem-se.

Subtil e transcendente, a ligação desta pintura com as viagens de Gualdim Pais, que no médio oriente poderá ter tido contacto com as primeiras representações de S. Cristóvão com cabeça de cão, em Antioquia, onde o santo terá sido martirizado, e deste, a ligação a Goya, o que pinta o cão quase em afundamento, como o arquétipo do santo antes de o ser ou que por isso o foi. Ou de Goya a Santiago Naud. Um Anúbis, uma cara de cão trazida da Idade Média resistindo ao afogamento das águas, das emoções e do tempo, uma imagem, não de crucificação, apesar de conversão de S. Cristóvão à religião não da cruz, mas da ressurreição. Pelo amor. Na arte. É muito curioso que representando o deus egípcio Anúbis, o da cara de cão, a passagem entre duas dimensões ou estados de consciência, isto remeta insistentemente para o barzakh, segundo António Telmo:  

«a palavra pela qual Ibn Arabí e demais sufis do mundo muçulmano significam o entre dois, o mundo intermediário entre dois mundos que, sem ele a harmonizá-los, se excluem. Assim, a linha divisória que passa por Tomar, divide e une o Sul do país ao Norte do país. Todavia, o melhor exemplo é o que nos dá o próprio Ibn Arabí: o da linha que, ao mesmo tempo, separa e une a sombra de um corpo, da luz que a projecta. Não se pode dizer dela que é luz ou que é sombra. Como que existe por um prestígio da nossa imaginação, mas não é uma linha imaginária.»[6]

Linha que simboliza o entre dois «dourado o matreiro espaço/aberto entre cão e lobo./Anúbis/me conduza», como também «anjo/infinito, traçando a linha infinda/entre o humano e o bestial». Difícil não é imaginar o cão correndo sobre esta linha e assim salvando o mundo pelo sentido, da cisão do abismo (ou abysmo[7], como teria preferido Pascoaes): «Definitivo abismo, se/neste espaço cindido/não ponho a correr meu cão:/entre o que eu sou e penso,/ele prega o sentido».

E o sentido é o espaço entre dois, o claro e o sombrio, o ficar e o partir, que ele, o ser que se encontra entre as patas de trás e as patas da frente, conhece melhor do que ninguém:

«intimamente, ergue-se

nas patas de trás, com as duas da frente

ao modo de bruxo antigo

e avança, a cara de cão

nas artimanhas do uivo, se explicando:

Quem sou?

Eu sou aquele que veio

para ficar, porque sou aquele

que vem para partir, quem reúne

o claro e o sombrio»

Esta linha entre dois mundos simbolizada pelo rosto de canídeo, encontra-se, como já dito, na Charola de Tomar onde também eu fui conduzida ou levada, e neste livro de poesia ela está igualmente presente. O mito de Cristóvão é o daquele que atravessa o rio, por isso assim considerado um psicopompo, segundo a etimologia grega o que conduz as almas na viagem para a outra morada, um guia, que pode ser espiritual como Hermes, ou animal,  sendo no caso um misto de humano com animal. Este guia, presente num fresco talvez do século XII do templo de Jerusalém em Tomar, tem para guiar, aí, a viagem mística, viagem que é, neste livro, a via poética. E talvez as vias ou viagens se unam num caminho comum que é o do amor. Ou, melhor dizendo, o da arte ao serviço do amor.

Talvez não seja de menor importância que em termos celestes a constelação de Cão Maior se situe no extremo da estrada de… Santiago[8], nome de santo e de… poeta, que o mesmo é dizer-se, no final da Via Láctea[9]. E mais uma vez as duas vias se encontram, a do céu e a dos que, na terra, percorrem os caminhos sagrados (Santiago, ou como Santiago, peregrino do sagrado na palavra poética) guiados pelos cavaleiros do templo, protectores desses viajantes entre duas vi(d)as.

Independentemente desta minha especulação meta-poética, o poema, ele mesmo, não se escusa à referência, com frequência, às duas constelações do cão: «ou Sirius, imperador/ da própria constelação — incluindo/ Canícula, irmã menor, oculta/ na Virgem bem parida». Constelações ou estradas no céu, Via Láctea ou Campus Stellae que os templários foram seguindo enquanto iam construindo, ao longo do percurso terreno de Santiago[10], templos poligonais irregulares, estrelas densas, inspirados poemas em pedra, como tinham o hábito de semear nas estradas. E nada disto é estranho a Cara de Cão: «um cão e sua cara que atravessam/de leste a oeste e norte a sul/os fixos confins da Via Láctea».

Regressemos, por isso, ao início destes poemas por palavras, que começam iniciando um diálogo poético em diferentes línguas, epígrafes onde o autor cita outros poetas, alguns assim reconhecidos pelo cânone, outros poetas informais, mas reais, porque nas suas bocas houve poesia. Aqui os junta reabilitando Babel, pois estas línguas conversam e entendem-se como que banhadas pelo fogo do Espírito Santo semeando logo aqui, e continuando livro adentro, na sua própria poesia, passagens em espanhol pelo meio do português («donde hay niños, por certo/ como dizia o Lorca, para quem Dios/ es el punto. Disse.»). Quanto aos poemas/epígrafe iniciais, são poemas brevíssimos que têm a força atómica de um haiku, se nos voltarmos para o oriente, ou de um paradoxo, se quisermos honrar a terra do ocidente onde aprendemos a música dos sons, porque nem sempre, nem para tudo necessitamos de cruzar o planeta. Às vezes, no permanecer é que reside a compreensão. Nestas epígrafes poéticas pré-introdutórias onde texto alheio convive com citações de si mesmo, epígrafes preciosas, pois são chaves que nos oferece para penetrar em tão notável castelo de símbolos, mitos[11]e metáforas, o português alterna com o espanhol  com um único poema em inglês, de Oscar Wilde, após o qual, como numa moderna instalação, dispõe um poema em português que partilha com os outros o ser pérola e tem, além disso, a responsabilidade sua de ser chave:

«Além de todo o negror, nada/ pode matar o homem. Sobram sempre/ a cara de cão e um castelo.»[12]

Mais do que uma chave, considerou o poeta, com razão, que necessitaríamos de um chaveiro, e tinha razão. Não é despreparadamente que se entra neste templo. Assim, vários são os autores que acorrem de variados tempos, obras e lugares até nós, leitores, como o magnífico  poema  que se segue, de um camponês cuja intenção não parece ter sido, a avaliar pela informação em nota de rodapé, fazer poesia. E no entanto, foi o que fez:

«Yo sin mis bichos no soy el mismo,/porque mi perro es como mi hijo/y más que mi hijo,/pues mi hijo es él pero mi/perro es yo, y yo y mi perro/somos igualitos.»[13]

 

A generosidade dá, pois, o tom, no início deste livro que busca e acolhe a poesia onde, inesperadamente, ela se mostra, e depois, no borbulhar que se segue, em que os seus próprios poemas jorram como de fonte sagrada, em liberdade que nos parece tão inspirada quanto pensada,[14] num equilíbrio perfeito.

A liberdade («este esforço de ser independente/que o cão sabe, e sobe»), ainda que dentro de um castelo, ou domínio, é um tema que percorre o livro («solto meu cão/no passeio que faço»), a liberdade mental que a fantasia serve e o amor dignifica, por causa da «tendência de reduzi-lo à trela»:

« O meu cão se escapa da trela

e correndo vai por-se nas lindes do bosque»

 

Ainda sobre o nome do cão, importa ter presente que nestes poemas as coisas e as pessoas com seus nomes não se representam a si mesmas, mas inscrevem-se em círculos infinitos, por causa dos símbolos que as acolhem:

« logrou situar

ou definir, nome

entre os nomes — cão,

esta cara, esta sombra,

esta cara, esta luz»

Em termos lexicais, «face» e «cabeça» lideram o vocabulário, neste livro que também acolhe prosa poética, ainda que disposta na página em modo de verso, sendo aqui «cabeça» não apenas a parte superior do corpo, mas a parte superior do ser: «Que espiritual a cabeça!». Imprescindível numa poesia onde sentimos que algo nos «espreita, como um cão». Talvez nós mesmos: « cão/para o homem desde há muito é reflexo,/cara no espelho/sem ilusão da ruga».

Quanto à forma, estes poemas apresentam uma característica muito curiosa que é o facto de, apesar de se tratar de poesia, a maior parte das vezes em verso, revelar algumas características da prosa poética, o que não impede que as sonoridades aí se encontrem em sérios jogos expressivo-musicais, como aliterações e rima interna, criadores de ainda maior profundidade nos sentidos, assim se recolhendo esta prosa à poesia, como um desenho de Escher, ao jeito de uma coluna infinita.

Vejo a coluna deste livro tendo o cão como eixo. Mesmo quando não é mencionado, é uma presença, espécie de grande princípio, quase deus, quase criador:

 «E o cão/ alarga a cara; são duas, Jano/ retorna, e os homens/ enchem o mundo».

Um «Anúbis/ surgido das sombras», o cão torna-se o centro do Universo e uma lente com que o poeta olha o mundo e reflecte sobre o profundo. Embora, por vezes, com alguma nostalgia do olhar baço de Alberto Caeiro: «para que um cão seja cão/ ou, o gato, gato/ e rato, rato — sem/ outra significação que eles mesmos».

Em termos da linguagem poética, é quase em permanente apoteose o constante domínio das formas e dos sentidos e do alquimizar deste casamento, assim criando um superior altar poético perante o qual é impossível não ajoelhar. Num templo cujo traçado, não deixando de ser sagrado, é arrojado. Não deixando de reconhecer e ilustrar as regras canónicas da construção, apresenta uma arquitectura pouco canónica:

   «Também

   assim, macho e fêmea, reúne

                                                 a i-[15]

 nocência da estrela Também

 donde hay niños, por certo

 como dizia o Lorca, para quem Dios

             es el punto. Disse.»

 

É difícil, nesta poesia, quando é mencionada a «estrela», não se pensar em cão. Aqui caracterizado como inocente, o que é reforçado pela chamada de atenção da nota de rodapé.

O mistério («segredo do teu cão») que atravessa os tempos ou os anula, que atravessa os espaços ou os funde, revela, eleva ou desfaz o poder do destino transportando-nos da terra ao cosmos pela prancha de saltar que é um tabuleiro de xadrez, o raio de uma estrela ou o fio de uma aranha. Interrogação perplexa sobre a vida, recuando até à desobediência de Eva, cuja inocência, pela dúvida de interpretação humana acerca do sentido das palavras do Livro, resgata, e assim a todos nós passados, presentes e futuros, salva. Com, como vimos, o cão. A ambiguidade do paradoxo ao nível do sentido é acompanhada, reforçada e apoiada pela ambiguidade da sintaxe, assim criando um tom profético, ao mesmo tempo que nos despe com verdades cruéis que levámos demasiado tempo a esconder.

Assistimos nesta poesia, ao triunfo do entrelaçamento do sagrado com o profano, da infância com o fim, da ficção com a vida, do literal com o transfigurado, do sentido com a forma («e a mão/ não pesa mais o pensar»), da citação com a criação. E a arte de dizer sem afirmar, de evocar sem nomear: «o chapéu-de-cobra/da tua infância, que sabe das coisas fundante/com singeleza e sem filologias», saltando da árvore de Jessé para O Principezinho e daí para o fim do mundo. Ou princípio… visto que é de cobras que se fala («A cobra/circunda o mundo/e guarda o universo»).

Neste universo de Naud os mundos não são estanques, tocam-se, causam-se, recriam-se:

«Ao peso da cabeça

cansativamente posta, a mão

repousa céus mais altos, claridade

irrompendo as trevas de saber.»

Porque: «tudo o que antes era/mente ou indicação/se unifica» enquanto o Poeta questiona a palavra para se aprofundar nela («Criar/ ou crear?/Coisas distintas»), despertando em nós a saudade de outro professor da Universidade de Brasília, António Telmo[16], pela lembranca que estes versos evocam, da sua Gramática Secreta da Língua Portuguesa.[17]

É esta obra de SN um livro poético de tese, uma Arte Poética entre a ciência, a psicologia e a teologia, denunciando «Os exegetas do sagrado/e os cientistas e seus sistemas,/válidos enquanto vale a hipótese», porque «dizem e querem convencer/que esta é a única linha/ e aquele é o caminho reto», quando, afinal, são «seus muitos caminhos, infindáveis». E é importante que isto seja dito assim cantado, porque «há algum tempo me despachavam na fogueira,/Se eu dissesse». Não é uma poesia alheia aos grandes movimentos da história nem desatenta dos perigos. E neste mundo onde as fogueiras ainda estão quentes, impossível não falar de Deus por cujo mando se incendiaram. Mas como salvar Deus das fogueiras que acendem em seu nome? Se já tudo foi tentado, resta ao poeta inventá-lo e, com humor, salvar o Amor, um dos possíveis nomes do inominável:

«Se eu creio em Deus?/Não posso te dizer que ele seja meu chapa/e venha a conversar na hora do crepúsculo/quando uma suave brisa sopra no jardim,/tomando o chá das cinco e jogando bridge/com fleugma de inglês/sob o leque de palmeiras hindus,/ sem pressa americana. […] Mas nos teus gomos, amor,/ enquanto a hora não chega/não me impeças que eu mexa. Vai!/Deixa-me pois brincando.»

Um hino ao amor e à imperfeição com que a divindade desenhou o mundo, às «brechas/que ele deixou no mundo» onde o deus e os deuses e o diabo criadores e criados representam seus clássicos, repetidos e mais do que conhecidos, estafados papéis, de tão decorados dispensando o papel do ponto.

Ao mesmo tempo, canto de profundo amor deste Deus pelo herói humano, a ponto de com a humanidade partilhar os segredos guardados pelo mítico guarda («um cão ladrava à/multidão/também falando com ela,/muito individualmente:/dois mais dois são cinco»), humanidade jogando com a divindade um jogo desleal por desigual, por isso tanto necessitando do cão[18]: «Deus se debruça ao tabuleiro/a ver movermos as figuras,/como se quiséssemos/ou pudéssemos, e toca de leve/uma que outra, a rir-se/vendo-as cair». Afinal, «a risada de Deus, para o caso que exista/e jogue a realidade/dolorosamente, com o próprio Deus/imaculado em ti». A serpente que volta a enrolar-se. Mas sempre tudo ao nível das hipóteses, porque é o não saber que confere heroísmo ao herói aqui cantado. Que, como todos os heróis, tem de aprender a palmilhar o caminho do meio, aquele que é percorrido depois de conhecer o sim e o não, e as manhas dos poderes num permanente carnaval de disfarce para agradar consoante o esperado: «a arena relativa das tuas ideologias,/antes embandeiradas com a seda dos ricos/e agora embrulhadas no macacão dos pobres,/conforme te convenham as aspas do poder».

Se nem Deus se esconde nestes versos, nem os seus intermediários, nem a ciência, também não o esperaríamos dos ideólogos do tesouro e dos outros poderes, como o do sexo. A força das imagens onde a força das ideias ainda assim permite a música interna nos versos, o lirismo a coexistir com a dor e a denúncia do cinismo do causa…dor: «torrar o saco/nos forros de vinil fingindo natureza/e postos ao passo eunuco/pelo esforço viril de submeter o feminino/com fera delicadeza».

Na sua assumida liberdade de poeta contemporâneo, SN mantém-se contudo ligado ao sentimento lírico por vários poderosos fios: pela rima, como no exemplo anterior, e por todas as formas de expressão musical, como a rima interna: «nas têmporas do tempo,/ puro sangue» e ainda juntando rima externa, interna e repetições sonoras por vezes funcionando simultaneamente como rimas: «o imenso/no incenso».

Vai mais longe, em processos quase fisicamente arriscados, como fazendo inclinar repetidamente, a ameaçar queda, um «que» como tijolo saído da construção, ou gárgula a escorrer, no final dos versos:

« firme em suas quatro patas. Que,

cordeiro ou pomba,

murmuravam no ouvido

as palavras satânicas? Que,

outra antiga ação,

lhe arrancava dos olhos

o para além do teto? Que,

mais que o que do que,

ocultava a imagem? Certo!»

Arriscando ainda mais, usa os versos como metalinguagem onde pensa a língua:

«Ask a question? É isso aí!

Na minha língua, não podes

perguntar perguntas. Fazes

perguntas, ou perguntas

simplesmente»

O Poeta olha através da transparência das coisas com o olhar transfigurador do mágico («outro azul cintila»; «este olho enxerga outro nauta,/ lá»), numa poética para além dos limites da lucidez («pretensamente lúcido»), servida por uma sintaxe onde a aparente incoerência penetra sentidos expandidos («ponho-me a rezar/ao deus que me criei») interpenetrando mundos («faço-me aranha») numa espécie de interseccionismo reinventado para aquilo  que poderíamos designar como uma tentativa de explicação de Deus: «bastaria leve ruptura/de ponto ou linha,/para que o mundo/que é seu/negasse o próprio nome/ou, sem nós,/falecesse de perfeição». Deus, esse ser frágil e dependente da humanidade. Num leito poético muito humano, sensorial («o grito do louco/riscando de vermelho o céu azul»), ainda Deus, o grande dramaturgo («o grito do louco/riscando de vermelho o céu azul») e o cão («cão celeste») é anjo («o cão é a companhia/que volta os nossos olhos para a luz/ou nos compassa o passo»). Este cão acompanha o ser humano («esperando o Menino,/e acompanhado do meu cão») tal como este é acompanhado pelas estações e assim ambos percorrem o tempo a ele se moldando: «o cão/enreda a primavera/com todos os seus excessos». Mas também é companhia de deuses: «o deus retorna/com seu cão».

Há nestes poemas uma espécie de inocentização do mal a que só um cão poderia proceder («na depravação absoluta/um dedo de inocência/tocando o mundo,/a cara de cão, a cara/de homem, a cara/de nada/e a cara do deus/esquecendo o nome na inclusão de tudo»), conferindo a esse mesmo mal um estatuto de naturalidade («às palmas infantis,/a alegria do cão ou do neto/em torno de ti faz-se incontrolável »), sendo isto possível pela presença do cão «no coração», uma outra forma de ganhar coragem para «atravessar neste mundo/como quem viaja em seu quarto».

O cão é, assim, a figura de convite que me conduz na leitura do infinito que é este livro e sem a qual me perderia. Nesta poesia erudita, semeada de citações, alusões a uma imensa herança religiosa, histórica,  cultural, artística, literária, poesia erudita, mas não menos sábia, sigo o trilho do cão, a constelação pela qual me oriento nesta longa via láctea («um cão atravessando os fios da Via Láctea») concorrida em cruzamentos e múltiplas vias: «a remissão inicia/quando começa a compreensão/do cão, da loba, o companheiro/da concha e do bordão/no caminho da estrela».

Cão de guarda e seu aparente estereótipo («um pastor e seu cão»), cão de saber («e isto soube sempre o teu cão») e cão de poder: «Este é o poema/que meu dia ilumina/e meu cão transfigura», o que, perante mim, mais do que justifica a escolha deste caminho:

O cão «sábio» («o meu cão é sábio e diz/o que não diz») e livre («solto da trela»), aquele que «sacode a coleira» é múltiplo e complexo: «bicho/e figura/ou constelação»; cão elemento, cão vento: «cão enrola, na rua/os ventos do seu redemoinho»; cão quase Deus: («até o infinito»; «o grão imemorial, como um cão»). Com sua cauda de poder, participa dos milagres do mundo («o cão transitará o seu caminho/libertando o réptil»); cão transcendente,  ao qual ninguém ou nada apaga o riso, porque pode uivar e ainda que seja «o seu uivo longo e sozinho», não é um monólogo: «outros cães respondem». Este cão que são muitos cães («mil cabeças/na clareza cósmica») e é só um, é acima de tudo o cimo de si, a sua cabeça, aquela que sustenta a cara, que não perde a face. Cara de cão, para além de dupla constelação, como dupla face, é máscara («a cara de cão esculpida»), enigmática («muito minha /mas não compreendes»),  precisamente como a máscara deve ser, por isso sagrada. Então, ainda que a derrota pareça avassaladora e «morto de fome o teu cão», ainda assim:

                           «podes recomeçar

            no campo devastado

a lenta e longa marcha das efemérides

e dos eventos, como um sol

nimbado de lua,

até a reposição das coisas no seu lugar

                     axis mundi

com fatal recuperação da tua dignidade».

Com o eixo do mundo, mais uma vez, agora no seu duplo “i” no centro do poema, como a poesia visual que a esta estética não é alheia tão bem sabe, dispondo o poema como uma obra plástica.

Não é caso único, outros é possível encontrar no desenho do livro, o cão druida e alquimista dispõe geometricamente as palavras sobre a página como o ilustrador sobre a história, como o mago sobre a bancada:

«Enrolado de espiral, aberta na palavra

que ocioso arrancas

do sangue, e armas em cruz

ao ranço fatal da Máquina do Mundo:

Sator arepo              opera rotas

                    TeNet

Rotas opera              arepo sator

                         e

                   viceversa

*

 

Tudo o mais sabiam os druidas

suspendendo antas ou plantando

                   menHirs»

Estando o “i” ou o “e” que se lê “i”, mais uma vez no lugar central, ou da luz.

Tal como outras vezes é o próprio corpo do cão, a bancada do alquimista ou do mago, e o seu lombo o lugar de onde surgem estrelas:

«as cores se apagassem

e, jubilosamente, cintilassem

no lombo escuro

de um cão.»

 

Afinal, pelo meio de todo o mal, fracção e perversão, esta poesia crê e cria a redenção:

« O rei está dentro de ti,

não é exterior

e nunca aos teus pés virá depor

os tesouros terrestres.

Porque os bens tu levas dentro,

estão votados à morte

e na tua semente já mora

            a destruição.»

É o cão, que entre as ruínas de Pompeia e a cruz, eleva madeira e pedras e completa os desenhos apenas esboçados pelos ângulos da cruz, assim criando espirais com que se eleva sobre os autos-de-fé. O cão multiplica as máscaras para se proteger, para poder Ser e salvar a face:

«a cara desse cão, devoluto

nos bosques, antigo

a ladrar para o corvo

e a buscar o castelo,

na voz da mãe dizendo

que a razão de estado

é razão

           de loucura».

É o «Regenerador e seu cão, em campo talado/de novo plantando a vida, superada a morte», pois por baixo dos escombros existe um «menino» que:

«buscava a merenda

na hora do recreio,

da maletinha marrom

saltava a banana de ouro

tresandando o papelão grosso,

onde o fecho fazia trec,

e à imagem do augusto

mordia os sabores do inferno

— metade cheiro de fruta

a iludir o fastio, e na outra metade

a podridão, hora

de voltar aos deveres, vendo Israfel

oculto no ar da aula,

que continuava a soprar.»

Menino que não desiste da Terra Prometida, mas sem «salvadores do mundo»: «Livre-nos, Deus!»

E a cara de cão é, como em S. Cristóvão,  «olho de homem»:

«Como se me fez esta cara de cão? Pois,/como se te fez esse olho de homem». Não há dúvida, são «os olhos/do teu cão,/transformado em ti».

Cão lírico e surpreendente de tão angélico, de tão humano:

«que brota em cima do arco-íris

seguro pelo olho deste cão

no meio do pelo, fixo

em âmbar, fogo, ouro, e posto

a rir»

Por isso continua o Poeta atento ao cão que «Longe,/uivava». O mesmo que, na escola, pelo meio da voz do mestre cada vez mais distante, com a geometria sagrada salva a geometria ensinada e as formas já são presépio e dos arquétipos da antiga gruta salva-se «o touro longínquo,/tangido pelo cão». É que este cão, não deixando de ser animal e como já vimos, humano e anjo, é ao mesmo tempo redundantemente, guardião sagrado do sagrado:

            «como um cão,

            guarde o corpo do santo, ou seja ali

            de Sagres o guardião».

O trilho do cão é o aquático caminho do Santo, o único que é seguro seguir, atravessando rios:

«Soltar, ou alçar, e

por íntima saudade,

que faz estar aqui

o que esteve lá atrás

molhado de futuro,

sacudir a morrinha

como um cão faz com a água

quando sai meio de viés do rio»

Do conhecimento do mito ao reconhecimento aos que, como Yung, designado «o chaveiro do tempo intemporal», possibilitaram que:

«vamos buscar juntos

mais no fundo,

enquanto um cão de plumas

uiva, cintilante e sereno, os compassos

da flauta, mágica

no lado escuro da lua.»

Esta poesia, sendo busca, lanterna no escuro, interrogação, não é a da procura fácil, muito menos linear:

«e, na luz, o cão

devorando a Lua,

ou tu, arvorando o Sol,

o mundo todo se ordene, tim-tim,

            na copa de Baco»

Porque este cão é um prestidigitador cósmico:

 « Em torno, o cão

brincava de arco-íris,

Melquisedec numa ponta

e Tobias, do peixe, na outra.»

Ele tem os segredos celestes:[19]

«uiva o teu cão

arcaico, e sua goela

regulada minuciosamente

ao mecanismo da lua»

Não esquecendo, contudo, as coisas da terra, como o amor entre um homem e uma mulher:

«É claro, se a tomas

como um cão de mostra, e deixas

que ela te tome como um cão de rastro,

na manga ou no mato

não resta escapatória.

Dia mais, dia menos,

estareis como um cão e gato:

em vez do oaristo,

aristos.»

Muito interessante, absolutamente surpreendente e feliz este jogo poético entre «oaristo» e «aristos»,  em que o grego «aristos» num contexto linguístico português pode ser interpretado, na liberdade do poeta, como um plural, contendo por isso em si em forma repetida o melhor, logo uma oposição ou impossibilidade, uma espécie de luta entre dois que pretendem Ser contra o outro. Mostrando como às vezes o amor, ou o «aristos», ao contrário do «oaristo», se apresenta como luta e prisão e mais uma vez é o cão a medida do cárcere, como já o foi da liberdade. Da nossa e da sua. É uma escolha e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade:

            «Eu posso atar o pescoço do cão,

            posso aprisioná-lo

            na sua fome ou na minha palavra

            e meu afeto, posso mantê-lo

            junto de mim até a morte,

            posso retê-lo até,

            seu atavismo entretanto

eu não amarro.»

Talvez por isso, aguardando o veredicto dos deuses em concílio, «o cão ladrava/num canto da esquina,/segurando-se ao uivo».

E nem sempre a sua face é bela: «essa dupla face/de cara monstruosa». Porque «o rio/de leite» tem seu leito «sobre o rio Letes», fatal condição, numa existência onde até o amor é assassino.

É traduzindo talentosamente para a sua linguagem poética Oscar Wild[20] e integrando-o no meio do seu poema que expressa esta tremenda verdade:

«Pois! Todos nós matamos

o que mais amamos.»

 

Destrói as máscaras, como outras vezes retira a própria máscara de mago ou poeta e coloca a máscara de cão: «põe-se a ladrar»; «não pergunta/e, rubro,/limita-se a ofegar em ti/total, com a beleza inteira».

Tempo de ser apenas cão, quando «acompanha» com «seu focinho de bicho» e «segue teu passo». Ou «subitamente para». É o cão na caça, quando «é difícil dizer/quem fareja,/(que é bicho? que é homem?)/unido em tal forma está/quanto vive e morre». Por isso «O cão/nem uiva nem ladra, arfa/à lua em crescente» ou apenas «intempestivo/o cão salta, contente» e «te acompanha».

Este é o cão usando como máscara o seu próprio rosto:

«Pachorrentamente, o cão atravessa o lajedo xadrez

e vem estirar-se ao borralho, onde a cinza cai acesa

nas brasas do velho tronco de carvalho.

E fica assim, o focinho entre as patas

igual a todos os cães».

Aquele cujo sono «demora a morte e o inverno». Embora não haja máscara que os salve do destino comum, homem e cão: «é a paisagem/em que jazes com teu cão/sob este rosto arcaico».

Está o Universo certo desde que não o tome a «ilusão/de tomar um cão por gato/ou caçar com gato em vez de cão».

Aqui está um importante princípio desta arte profética que é o de saber dar os nomes às coisas por conhecer «a indistinção do cão […]/ à suave magia do poente»,  um cão que, com toda a naturalidade, apenas aspirará (ou nem isso…) à poética de um Caeiro, «cão sem análise», como quem

           «assim inteiro,

            do todo me inteirasse,

            inserindo-me em tudo

            quando não mais quisesse reter esse real

            que designo, vão desígnio

            de querer dizer

            o que não se alcança dizer

            e, sem dizê-lo, dobrar as riscas do vário

            no único que nos converge.»

Aspiração de poeta a este olhar translúcido de Caeiro ou cão, cujo mundo seria assim, e Caeiro não o teria descrito melhor:

            «tudo

            somaria a paisagem, íntegra

            que passa, sim, nos olhos de quem passa

            mas continua lá, e fica

            além de mim,

            pois sou eu só

            que vou passando.»

Acontece, porém, que este é o cão dos mitos, um cão «prodígio», o que «olha, com olharsimbolo/reflexo», aquele que é «senhor de dois mundos», «metido entre lobo/e cão,/bem e mal» e «ao lado do diabo», atravessa «as cascas da emoção» e domina os elementos: «troca os elementos/em sua circulação». O cão guerreiro «armado/de escudo e lança». Um cão de olhar profundo, pois não foi ele o que quase conheceu o afundamento sob o peso de um Deus?

Recordemos o ponto de onde partimos, que este «prodigioso» cão é aquele que «alcança as margens, espanejando água», um cão que «nada nas dimensões da peça,/voga seguro/e é, nesta água azul que a tarde derrama,/um campeão vigoroso».

Ele é o símbolo da salvação, o que suportou sobre seus ombros e por isso o salvou, o Salvador. O cão que dá coragem, que no «limite insuportável/de toda a minha capacidade de suportar/o cão gargalha, vindo enredar-se aos meus pés/em silêncio grave» e me permite a segurança ou voltar «para meu repouso» enquanto «um cão ressona». E mesmo quando ali fora «um cão faminto fuça os detritos», «meu cão dormindo recomeça a voar». Ressonando, voa e salva.

Este cão bússula («Meu cão é que me diz,/e uiva dourado: este/Este, a oeste/do Oeste, posto a este/do Este preso a Oeste,/é toda a origem»[21]), não é apenas o ponteiro que reorientando ocidenta o horizonte, é a própria explicação do Começo.

O cão que «se atravessa no caminho» é Hermes, que transporta o Poeta para o «velho café, onde o estudante/comia», numa «tardia peregrinação,/do que és agora, e eras antes», «só porque um cão atravessou teu caminho/enquanto atravessavas a rua/que não era dele,/e se pôs por ali a buscar o rabo/com ganas de morder, num movimento de roda/não sendo nada disso.» E é o «não sendo nada disso» que nos alerta para quão longe estamos já de um olhar opaco à Caeiro. Esse não teria, ao contrário deste, a saudade da liberdade:

«o que há

nos olhos de um cão

que contempla, além de si e do tempo,

é a floresta densa

e o instinto, saudade

de quanto o deixavam livre

as prisões da fome»

Ou de como uma prisão tem sempre uma porta dentro que liberta.

Este livro é um texto impensável, inesperado. O poema rodeia o cão e observa-o por todos os prismas como nenhum cientista conseguiria fazer, mas apenas um grande poeta ou um apaixonado saberia: interroga-o («Que leva a sonhar um cão/olhando, em torno?)»; mede-o («Entre homem e cão, a distância é a mesma/que entre cão e lobo»); empodera-o («Dorme o cão,/e a tua rede embala/o que existe»); usa-o («contemplas teu cão a correr/o espaço, que moves/sempre que o senhor da forja/sofre de ingratidão»); cronometra-o («Esta velocidade de cão/correndo da macega ao bosque,/não há como contar/em medidor mecânico»); olha-o profundamente («e vai/e vem, metade lobo/metade cão, impudico e contente»); ouve-o («Ganha sua voz o meu cão»); atravessa-o, trespassa-o com a visão («a verdade de um cão/há de ser essa cabeça pendida/e essa língua de fora, em marcha/por todas as derrotas»); humaniza-o («o cão, obediente, ao mesmo tempo/distante, humilde e orgulhoso/no seu porte de cão/ajuda a indefinir este crepúsculo/que me envolve»; «Ao sabor da invenção,/construída a ossatura do cão,/de repente é a razão/que ilumina toda de instinto a tua consciência»); reflecte-o (de mim recebe/essa cara dócil»); brinca com ele («Jogo de esconde-esconde/entre mim e o meu cão); entrega-se («Brinco com meu cão!/Ao cair do sol, cansado/volto para casa cheio de brincadeira,/feliz por saber que fiz o meu cão feliz»); perde as ilusões («e vejo, sem ilusão,/que foi meu cão quem brincou comigo»): compreende-o («Entre a obediência de cão/e sua argúcia»); vê-se nele («e um cão, rendido ao confortável,/baixa a cabeça e obedece»); acrescenta-o («Meu cão começa num ponto/encerrado em si, e progride/à medida que o ponto avança/sobre si, a cadência das patas/em curva cada vez mais regular e maior./1, 2, 3, 4 são as patas,/5 é o ponto de reunião,/6, 7, a progressão/e a reflexão não pára»); com ele se pacifica («Chega o cão, serenado»; «com muita tranquilidade e com seu cão»); infinitiza-o («No friso figura o cão,/que reenceta/infinito os círculo»); paradoxiza-se com ele («Eu e o meu cão, próximos/e distantes, somos indefinidos/no limite em que estamos»); une-se a ele na interrogação epistemológica e ontológica («Quanta coisa me separa,/na árvore, do meu eu e do cão!»); relativiza-o («Que sabe um cão,/nas suas sabedorias,/de toda essa tralha abstrata?»); anula-se com ele («não haver mais, nem cão nem homem»); justifica-se ou explica-se com o cão («se eu não estivesse aqui/imperativo, ridículo/como um rei sem trono,/não obstante dando ordens,/tentando compreender/o que me ultrapassa, a tocar/no fugidio,/que esperança haveria para o cão?»); associa-o ao princíoio da incerteza («não se alcança, esse ponto/finito a que chego, e parte sempre/noutra direção, como a corrida/do meu cão»); admira-o («Só meu cão lambe tal perplexidade»); amplia-o («baixas a mão nos lombos do cão,/sobes-lhe a carícia/macia/é a lomba, a loba, a pomba/com dois olhos de cobra trocando de fulgor/nos teus»); absolve-o-o («o cão, todo inocência»)[22]; ama-o («olhos que se cruzam/e compreendem, inteligentes de ternura»); coroa-o («cão/atravessando imperial os arcos do teu paço»); espiritualiza-o («Quem, à fulguração do ouro/ou tons de âmbar fugidio, podia adivinhar/a metafísica que ensina a matéria/e o corpo deste cão?»); eterniza-o («volta sempre esse cão/guardado na memória»); sagra-o («em porte inteiriço/que o torna/porta de templo, antro/de gruta, pedra/e cão/erguido, portentoso/triângulo»; «sagrado como cão»; «Atiro os dados/depondo a coroa na sua cabeça/e, coroado, de cara suja/meu cão vai dormir»); e com ele explica o mundo («e mundo/e homem/não são mais que o novelo redondo,/ou cão/em si enrodilhado, cão também/sem seu nome»).

Esta Poesia é um salto no abismo e o salto no abismo é a libertação da grande grelha ou grade da humanidade, a acusação e a culpa, de que apenas o cão e seu amor animal, total, poderá salvá-la:

«aqui está o teu cão, que

equidistante da macieira

ou tuas teorias

é como um horto de paz

no teu ressentimento.»

 

Nas prateleiras das livrarias imagino este livro numa nova secção para ele inventada, uma disciplina para a aprendizagem da ciência através do amor e da metáfora a que ainda não sei como chamar, mas pela qual fiquei a saber da existência de «fios do coração» e de anjos infinitos e outras maravilhas coexistentes com os demónios deste mundo aflito onde nos movemos e os poetas também.

 

 É difícil a quem se proponha escrever sobre esta poesia, não ceder à tentação de transcrever longas passagens. Porque as ideias se entrelaçam nos versos e a beleza é transversal do primeiro ao último. Cortar o que vem antes ou depois de uma passagem selecionada para ilustrar uma ideia é renunciar à perfeição da beleza. E no entanto assim tem de ser, ou arriscar-nos-íamos ao perigo anteriormente aludido: a que este texto excedesse em páginas o seu próprio objecto de admiração.

 

Santiago Naud é um Poeta (injustamente, para ele, mas sobretudo para nós) ainda não suficientemente conhecido em Portugal. Faço votos para que este livro possa ser distribuído no mercado livreiro português, que aqui seja lido, falado, transmitido. Para nosso bem. Porque não ganhamos um, mas três poetas: um poeta brasileiro reconhecido pelos seus pares, um poeta a escrever em português páginas douradas que desconhecíamos, e um poeta universal que não poderíamos, por mais tempo, ignorar.

Risoleta C. Pinto Pedro

27 de Setembro de 2017

 



[1] As palavras «abismo», «face», rosto», «cão» são algumas das mais presentes neste livro: «A face para os abismos»; «ele mesmo um abismo»; «Nós somos: o cão, o pastor, o menino,/às margens do rio das águas profundas/ante o espelho liso de líquida negrura...»; etc, etc, etc.

[2] José Santiago NAUD, Cara de Cão. Excepto quando devidamente identificadas, são deste livro, e portanto deste autor, todas as citações no texto.

[3] «eu presto ouvido

à voz cheia do cão, que me fala

de bruxos e navegantes.»

[4] E minhas faço as palavras do poeta:

« Para aqui me trouxeram,

pois mesmo vindo por conta própria

é sempre alguém que nos traz»

[5] Sem deixar de ter corpo, sem deixar de ser matéria:

« o que sabe incidir um cão

quando morde e baba, em nossa mão

quanto sua boca toca e a ultrapassa.»

[6] António TELMO, “Viagem a Granada”, in: Volume VI das Obras Completas: Viagem a Granada seguida de Poesia, Ed. Zéfiro, Sintra, 2016.

[7] Aquando da Reforma Ortográfica de 1911, insurgiu-se Teixeira de Pascoaes: «Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério… Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal». Santiago Naud põe o cão a correr no lugar do y a escorrer.

[8] «figura de cão, atento à chaga aberta

do dono, mostrando o joelho

e o bordão na mão

ao fim da Via.

Sant’Iago!»

[9] « Este cão

maior, pontuando o fim da via

do leite, é transição

entre cão e lobo»

[10] «desunindo as pontas do Caminho de Santiago,

como aquela loba em seu palácio»

[11] «Tobias foi,/tão longe, que hoje/quase me esqueço do meu cão.»

NAUD, Santiago. Ofício Humano. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1966.

[12] NAUD, Santiago. Conhecimento a Oeste, Lisboa: Moraes Editores, p. 28, 1974)

[13] Nas palavras de S. Naud: «Explicação de Juan Capittin, camponês argentino da província de Buenos Aires, em conversa com o psicólogo Basílio Benítez, autor do livro Rabia, Indignación, Tristeza – em jaque-mate (1974), que tive o privilégio de ler ainda inédito em 1977».

[14] Numa atitude estético-filosófica a que António Telmo não hesitaria em designar como razão poética.

[15] Estando aqui o “i” colocado quase rigorosamente no lugar que, na árvore da Kabbalah, é atribuído ao “yod”. A propósito deste assunto, refere Pedro Martins: «Na Gramática Secreta da Língua Portuguesa, António Telmo é expresso em referir-se ao i, enquanto yod, posto no lugar de Tipheret, “como um Sol irradiante”, como “a luz ou o seu princípio”. Neste momento, uma correspondência solar é algo que não nos deve já surpreender». Pedro MARTINS, “António Telmo e Teixeira de Pascoaes: Sete Notas e uma Oitava acima, para uma Kabbalah pós- atlâmtica”, in: revista A Ideia, 2015.

[16] «É evidente que existem vários modos de articular os vinte e dois elementos, pelo que é possível multiplicar o número de fonemas da língua portuguesa. Todavia, só aqueles funcionam como traços distintivos. Eles bastam-nos para distinguir umas palavras das outras quanto ao seu significado. Não precisamos de mais nenhum para ser uma língua perfeita e totalmente significativa. Se deixamos de utilizar um deles, toda a fala se corrompe.»

[17] António TELMO, Volume II das Obras CompletasGramática Secreta da Língua Portuguesa precedida de Arte Poética, Ed. Zéfiro, Sintra, 2014.
[18] «cão das plumas», presença recorrente nestes poemas. As plumas são mais do que adormo, são um dos símbolos do poder e transcendência do representante, na terra, do ser divino nos céus:

«Mas teu cão, o negro,

luzidio e distinto

continua nos céus, nobre e incólume,

os gestos como quem nada

e manda,

dono dos ventos ou do aberto,

alto, muito alto,

ao alcance dos olhos

que a tua mão, sem tocá-lo,

toca

além do destino.»

.[19] «conhecimento do meu cão

solto com as sabedorias da lua»

[20] No início do livro, como epígrafe:

«yet we all kill the thing we love

by all let this be heard

some do it with a bitter look

some with a flattering word.»

[21] «Há quem habite a origem

como este cão».

[22] «O cão levanta o seu olhar

inocente, inunda-me

de luz»