UNIVERSO TÉLMICO. 62

28-11-2018 15:12

Publicamos hoje “Da Pluralidade Fecunda: João Ferreira e a Filosofia Portuguesa”, texto da comunicação que Pedro Martins apresentou ao XII Colóquio Tobias Barreto, no passado dia 13 do corrente mês, no Palácio da Independência em Lisboa. É um olhar sobre o livro pioneiro e clássico deste insigne membro do nosso Projecto, que é hoje o decano do movimento da Filosofia Portuguesa.  

Da Pluralidade Fecunda: João Ferreira e a Filosofia Portuguesa

Pedro Martins

 

1. Entre 1957 e 1961, João Ferreira publicou em Itinerarium, Revista Portuguesa de Filosofia e Diário Ilustrado uma série de estudos que, «sob a pressão dos amigos», veio a reunir em Existência e Fundamentação Geral do Problema da Filosofia Portuguesa, editado em 1965. À distância de meio século, este livro do emérito Professor da Universidade de Brasília permanece como referência no correspondente domínio, na senda dessa obra seminal que foi O Problema da Filosofia Portuguesa, publicada por Álvaro Ribeiro em 1943.

Não sabemos o que nele mais admirar: se a serenidade, a elevação e a elegância com que o autor participa num debate não raro marcado pelo acinte de surdas polémicas; se a clareza didáctica da sua prosa límpida e a erudição actualizada que o enformam; se a ponderação, o equilíbrio e a lucidez dos juízos formulados; se a genuína atitude de paixão filosófica que o determina; se o espírito de missão e serviço que, com sentido prospectivo, o motiva.

 

2. Em larga medida, as páginas de Existência e Fundamentação Geral do Problema da Filosofia Portuguesa obedecem frutiferamente a um desenvolvimento analítico, dicotómico ou dual, mas não dualista, das matérias que aborda ou das questões a que responde.

A este respeito, e antes de mais, convém que se saiba do que se fala quando se fala de filosofia portuguesa. Para João Ferreira, a expressão comporta dois sentidos diferentes, numa relação de género e espécie.

Em sentido amplo, filosofia portuguesa «significa o conteúdo doutrinal da nossa história filosófica e abrange a filosofia cultivada pelos portugueses durante a sua sobrevivência histórica como tal». Por um lado, consideram-se os «monumentos literários dos autores» em que essa filosofia se concretiza como «corpo histórico» a partir do qual pode objectivamente ser estudada. Por outro, atende-se ainda à sua «feição vivencial formulável», «latente no espírito do povo e na consciência individual dos que se consagram à problemática filosófica». À dicotomia assim enunciada, corresponde a destrinça entre uma «filosofia explícita» e uma «filosofia implícita», que constituem a «dupla face» da filosofia portuguesa na sua mais ampla acepção.

 

3. Mas há ainda que tomar o termo num sentido mais restrito, pelo qual se significa já «a atitude mental e cultural de alguns pensadores livres, com fundo filosófico e cultural, os quais reunidos em torno dum símbolo comum, que é Sampaio Bruno[,] advogam a existência, originalidade e a supremacia da filosofia portuguesa sobre as outras filosofias e a sua missão na condução do povo português para o futuro».

Fundada por Sampaio Bruno, trata-se, nas palavras de Álvaro Ribeiro, que João Ferreira cita e traduz, «da corrente “dos livres pensadores religiosos, tão afastada do positivismo agnóstico como do catolicismo ortodoxo e colocada fora do ensino das instituições públicas». Evidentemente, é «por direito próprio, no que tem de conteúdo e afirmação filosófica», que este segundo sentido «fica naturalmente incluído» no primeiro, «ecuménico e universal», da expressão filosofia portuguesa, que designa «o pensamento filosófico pátrio diferenciado e característico», em referência «às formas históricas e vivenciais da filosofia portuguesa, incarnadas na existência temporal da velha casa lusitana».

 

4. Ainda que João Ferreira o não diga abertamente, não será ousado supor que estas duas dicotomias – filosofia portuguesa em sentido amplo e em sentido restrito; face explícita e face implícita da expressão na sua acepção mais vasta – possam ser aproximadas, nos termos variáveis de uma sobreposição tendencial, de outra que logo nos propõe, ao distinguir professores de publicistas:

 

«Os primeiros, com uma função docente oficial, são geralmente de espírito universalista, procurando estar atentos às novidades exteriores para se manterem ao nível das melhores produções estrangeiras, informando os seus alunos dos temas, problemas, métodos e resultados do estrangeiro culto. Os segundos, pensadores livres ou independentes, sem responsabilidade oficial de ensino, inspirando-se em temas de livre escolha, não impostos pelos programas, nacionais, circunscritos, procuram corresponder a uma linha histórica e caracteriológica da nação em nome da qual filosofam. Esta disjunção, demasiado evidente para que a passássemos adiante, reúne e comporta dum lado a filosofia universitária e doutro, a filosofia a-universitária. Ambas, porém, representam, no esforço comum do país, dois momentos funcionais.»         

  

Se esta distinção permite já antecipar, no desenvolvimento da obra, a questão da extensão do próprio conceito de filosofia, facto é que, nas palavras do autor,

 

«ambos concorrem para um despique útil à revitalização filosófica do país, pois enquanto os professores vão lutando por que o pensamento não se feche numa insularidade asfixiante e provinciana, os publicistas, de sua vez, vão lembrando que não podemos ir à busca de nós fora de nós, lamentando simultaneamente a conversão do pensamento dos portugueses às formas estrangeiras e a importação não assimilada».  

 

Sublinho as ideias de concorrência e de despique que, se não impedem o diálogo ou a colaboração entre os dois grupos, não será de crer que consintam a cooperação em termos que possam conduzir à confusão ou dissolução do grupo dos publicistas, no qual naturalmente se inclui o movimento da Filosofia Portuguesa, no grupo dos professores, por assimilação ou desvirtuamento, com ou sem mediação confessional. Esta observação não pode deixar de se mostrar de vital importância para um movimento de livres-pensadores religiosos que, pela voz da sua mais alta figura, se afirma equidistante do positivismo agnóstico e do catolicismo ortodoxo e se coloca fora do ensino das instituições públicas.

À distância de cinco décadas, e enquanto não chegar o tempo em que os desígnios de Álvaro Ribeiro se cumpram, a lição de João Ferreira pode ajudar a mostrar, de modo iluminante, que o problema da filosofia portuguesa, no tocante ao seu aspecto ontológico, isto é, à sua existência, perigosa e lamentavelmente se enuncia, por referência à acepção mais restrita da expressão, como um problema de sobrevivência.

 

5. Persistindo na abordagem dual ao problema, João Ferreira distingue a questão de direito da questão de facto. A primeira «resolve-se no plano da possibilidade das filosofias nacionais, de que a filosofia portuguesa é capítulo especial». A segunda, de solução eminentemente probatória, faz apelo ao «testemunho histórico-crítico» como «critério de aceitação».

Para responder a estas questões, teve o autor o cuidado propedêutico de propor uma definição teleológica da filosofia, a esta assinando o propósito de «tornar mais inteligíveis ao homem os reinos do conhecer, do ser e do valer, dos quais, o mais importante, em prioridade e pressuposição é o reino do ser. A filosofia encara o ser na sua noumenalidade, que apreende no ser concreto, dado em fenomenalidade», sendo, pois, «um caminho para a inteligibilidade do ser, um caminho para a inteligibilidade da vida, do homem e dos seus problemas». Noutras palavras, «a filosofia tende essencialmente a exprimir a visão que o espírito humano pode formular acerca do cosmos, no que ele tem de mais profundo e misterioso, ou seja, na escala dos seres que o integram, na sua origem, natureza, fim e inteligibilidade».  

Por outro prisma analítico, João Ferreira concebe-a ainda, ora «como uma atitude humana», ora, na senda de Ferrater Mora, como «“um conhecimento ou uma série de proposições, quer seja sobre objectos considerados como próprios, quer sobre quaisquer proposições para averiguar o seu sentido ou falta de sentido”», sendo que «estas duas facetas da intenção filosófica dão à filosofia um âmbito que está longe de ser restrito».

 

6. A referência, que vem de ser citada, à intenção filosófica, devolve-nos à questão de direito, que o autor resolve com sólida e aturada argumentação, concluindo pela possibilidade teórica da existência de filosofias nacionais.

Concedendo na justa medida da evidência, não pode João Ferreira deixar de admitir que «a filosofia entra no grupo das ciências apátridas», pois que seja

 

«sua intenção inquirir primariamente o ser enquanto ser (ens ut sic), isto é, por ser a busca desinteressada e conceptualizada do reino ôntico, em seus núcleos totais de essência e existência, é universal. A verdade perseguida pela intenção filosófica é, neste sentido a-espacial e intemporal, exigência natural do espírito humano, que tende a formular síntese de orientação e método para dominar, de posse de categorias universais, o mundo (cosmos).»

 

Mas importa distinguir o objecto da intenção filosófica, que é a verdade, realidade de natureza universal a que o espírito ascensionalmente aspira, do seu sujeito, que, como sua condição sine qua non, é o homem, a pessoa humana.

Em decisiva passagem, escreve João Ferreira:

 

«Se, efectivamente, a verdade filosófica, de direito e de natureza, é universal, a-espacial, intemporal e apátrida, de facto, porém, enquanto pesquisa e formulação humana, ela situa-se, temporaliza-se e espacializa-se. Situando-se, participa da circunstância em que o homem, ao exprimi-la, vive. Temporalizando-se, é tocada pelas condições da terra em que seu teorizador geograficamente vive.

Convém por isso, de todos os modos, sublinhar esta simples verdade fundamental: a filosofia é obra humana. Sendo obra humana, é obra do homem todo. O homem tal qual o conhecemos não é nem puro espírito, nem alma penada em catarse metempsíquica, mas é um ser imerso no mundo, feito de alma e corpo, e unitariamente realizado. Esta realização unitária chama-se pessoa humana

Nesta base, enquanto obra humana, a filosofia acompanha o homem concreto onde quer que ele se situe ou acondicione, comungando, enquanto factura, da base antropológica do seu autor, e sofre assim limitação e influência positiva ou negativa das condições naturais do homem situado.»

 

Percebe-se aonde conduz a constatação desta evidência. Condições comuns como a raça e a língua, individuais como a índole e o temperamento, e históricas, «que podem afectar toda uma época, uma classe ou um grupo», como a religião ou outra concepção do mundo e das coisas, o espírito comum e o estado da cultura da época, a tradição de escolas filosóficas e o estado das ciências particulares, são factores que «determinam em grande parte tanto as questões que se põem, como a mesma formulação dos problemas e as soluções que deles se dão». Assim, escreve João Ferreira, «admitidas as condições antropológicas, sociais e históricas na produção filosófica, abre-se caminho para a tese da existência das filosofias nacionais». E admitir que estas existam – esclarece – «não é admitir a relativização da Verdade».

Relativos serão antes os caminhos que a essa verdade conduzem, pela relação que com ela estabelecem, quais raios de um círculo convergindo da circunferência para o centro.

O adjectivo universal comporta diferentes acepções, que se não opõem. Pela etimologia, exprime a qualidade do que versa para o uno, de um quid que não pode, pois, ainda ser o uno, sob pena de impossibilidade lógica do movimento, isto é, do verbo, que a proposição para, exprimindo direcção ou lugar de destino, ou destinatário, ou intenção, denota. Daí que entre as acepções de universal dicionarizadas encontremos a de algo que provém de tudo ou de todos. Se a análise da totalidade se resolve em plúrimos diferentes com um destino comum, a universalidade surge justamente garantida pela diversidade da alteridade. «Diferença», ensina António Telmo, «é, etimologicamente, o mesmo que irradiação», com o que retomo, uma oitava acima, a geometria do círculo, na imagem que há pouco propus.

 

7. Procurando surpreender a emergência dos nacionalismos filosóficos no movimento que «lançou raízes com o liberalismo e o romantismo», observa João Ferreira: «Para enriquecer o complexo geral da verdade, havia que expor a face concreta dos problemas situados, para que surgissem interpretados na sua realidade». Desta sorte, «a ideia duma verdade supranacional apareceu em oposição à alegria produzida por uma mundivivência de características nacionais, criando-se nos pequenos povos uma confiança própria nos seus destinos intelectuais e na linha característica do pensamento próprio do seu temperamento».

Não será outro o sentimento da Renascença Portuguesa, em que o movimento da Filosofia Portuguesa, na sua especificidade, se filia. A Álvaro Ribeiro, seu mentor, se deve a ênfase depositada na questão da existência de uma filosofia portuguesa. João Ferreira, uma vez solucionada em sentido afirmativo a questão de direito, seguirá de perto o mestre na resposta, igualmente positiva, à questão de facto, sem, contudo, deixar de carrear outros contributos, próprios ou alheios.

Fá-lo operando nova destrinça dual: entre a filosofia como conhecimento e a filosofia como atitude; ou como teoresis e como vivência; ou como ciência e como arte. As sucessivas dicotomias equivalem-se em termos de correspondência, por elas se significando uma filosofia em sentido restrito, ou técnico, e uma filosofia entendida já em sentido amplo, pois a verdade é que «pode existir filosofia, mesmo onde não há rígidas estruturações dialécticas (a dialéctica é um meio de expressar a reflexão filosófica) ou profundas questões metafísicas, reduzidas a sistema». Tributário da dialéctica, o próprio sistema, como observa João Ferreira,

 

«é apenas uma forma de manifestar, em coordenadas, o pensamento filosófico. Nele impera a ordem e a síntese, o que favorece geralmente a didáctica e a comunicação. Entretanto, a filosofia não pára aí, nem é exclusivamente sistema. Há outras articulações, outra forma de manifestação filosófica: a filosofia como atitude e como vivência. Em Portugal, julgamos existirem também as duas formas: a filosofia como conhecimento (conimbricenses, por ex.) e a filosofia como atitude.»

 

Se bem o entendemos, na visão de João Ferreira só imperfeitamente coincidirá esta dicotomia com a que distingue professores e publicistas. Mais importa sublinhar que, apesar de a filosofia-especulação nela encontrar representação, é na «ars vivendi» ou na filosofia como arte de viver que se enquadra a tendência mais forte da filosofia portuguesa.

 

8. O amplo conceito do autor, libertando a filosofia da unicidade expressiva da forma sistemática, permite-lhe integrar no corpus filosófico nacional obras literárias de «grande altura filosófica», entre cujos autores se contam os nomes de Pascoaes, Raul Brandão, Antero, Florbela Espanca, Régio, Torga e Pessoa, plêiade que considera deste modo:

 

«Pela sua qualidade de autores trágicos, para quem a vida é uma interrogação que procuram desvendar como Esfinge, a filosofia aparece no sangue palpitante do próprio problema vital que eles contornam através de uma cálida expressão trágica. São por isso autores ou escritores de interrogação existencial, da corrente vitalista, protótipos da filosofia do concreto, sem coragem de obedecer a cânones rígidos de uma dialéctica transcendental ou coisa do género, mas ricos de intuições e de filosofemas de pureza humana, dignos de assinalar. Apesar de pertencerem mais ao género emotivo e intuitivo do que ao tipo intelectualista e abstracto, entram também no sentido original de filósofos, pois são verdadeiros mendigos da sabedoria, peregrinantes da realidade, encoberta pelo verbo escuro, que esconde a Verdade.»

 

Partindo desta fulgurante passagem, algumas notas se impõem. A primeira é a de que só uma radical, e por isso integral, concepção da filosofia a pode explicar:

 

«A filosofia é verdadeiramente dinâmica. O amor da sabedoria supõe no espírito uma direcção prévia, depois um apego e paixão pela interrogação, uma fixação na admiração (princípio do filosofar, segundo Aristóteles), daqui uma progressão para a dialéctica e por fim, uma aproximação do espírito com a verdade. A filosofia que aprendemos, que se estuda, que se escreve, que se expõe, pode ser metodologicamente apresentada e toma, neste sentido, uma articulação que pela sua altura sistemática e silogística, pode receber o nome de ciência, no sentido moderno (com objecto e método próprios), Mas não será isto uma visão da filosofia ab extrínseco?»

 

Sublinhe-se, todavia, que a esta visão exterior corresponde objectivamente uma coessencial realidade imprescindível à afirmação das filosofias nacionais. Como esclarece João Ferreira,

 

«não se poderá considerar (…) o pensamento implícito ou explícito nas obras literárias como suficiente simpliciter e a se para se poder afirmar a existência de uma filosofia nacional. Para esta se constituir, é necessária uma objectivação mais formal, um corpo mais real e mais claro que só as produções filosóficas, portadoras de temas, de dialéctica e de altura metafísica, genuinamente, podem dar.»

 

No que se lê, supõe-se ou consente-se, afinal, a tese de Álvaro Ribeiro, amplamente desenvolvida por António Telmo, de que cada filósofo tem o seu poeta, o que mais claramente se infere duma outra passagem de Existência e Fundamentação Geral do Problema da Filosofia Portuguesa:

 

«Se admitimos o pensamento das obras literárias dentro de uma noção ampla de filosofia, consideramos porém que a ânsia perfectiva e simplificativa da razão humana na sondagem da realidade, não pára na intuição, nem na emoção, como aliás a curiosidade científica não se satisfaz com o processo indutivo. O primeiro contacto com a realidade leva a uma sistematização mais pura. Os conhecimentos de primeira mão levam a uma formulação geral e a uma ordenação sistemática dos conhecimentos. Daí nasce a teoria, o sistema, a dialéctica unificadora, a estrutura mental condensada em cânones e outras exigências, também reais, do espírito.»            

 

Estas palavras evocam irresistivelmente Pascoaes, que João Ferreira tanto admira e que algures escreveu que uma verdade, quando vem ao mundo, visita o poeta em primeira mão. Mas intentam superá-lo, à vista de muito do que o vate deixou escrito, notadamente quanto à oposição entre poesia espontânea e poesia culta no primeiro capítulo de Os Poetas Lusíadas. Seja-me permitida, em lance de convergência, uma nova citação, desta feita de António Telmo:

 

«Os nossos poetas situam-se, inocentemente, do lado do irracionalismo. Para eles, a linguagem poética – a sua linguagem –, com as suas estruturas metafóricas, é imediatamente distinta da linguagem da razão, senão oposta. Na medida, porém, em que os poetas, de acordo com um falso bergsonismo, defendem, como o fez Pascoaes, maior projecção e amplitude cognitivas para a poesia, recorrem logo a termos como inspiração ou intuição, contrapondo-as à inteligência como uma faculdade a outra faculdade. Bastar-lhe-ia, contudo, observar que onde quer que o homem escreva, fale ou pense, logo surge o adjectivo e o verbo, sob pena de se ficar mudo ou fascinado pelas imagens fixas que compõem o ser. Este envoûtement corresponde ao que, num plano mais profundo, Pascoal Martins chamou o êxtase de Adão.»

 

9. Na visão de João Ferreira, ampla, generosa e compreensiva, mas dada em rigorosa coerência com as premissas propedêuticas de que parte, «a filosofia nacional alimenta-se, dentro de uma pluralidade fecunda, dos vários quadrantes, que podem fazer dela, em certo sentido, um bloco unitário, ao qual também pertence a literatura com recheio filosófico». É nessa pluralidade fecunda que reside a sua força vital. Pouco importa que uns a reputem dispersiva ou descontínua e outros dela afirmem não possuir «um grupo de pensadores poderosos e originais que tenham exercido acção e influência na marcha geral das ideias». A estas e outras imputações, responde o autor com serena e objectiva ponderação, matizando-as ou restringindo-as por nunca perder de vista «a realidade da própria filosofia». Menos lhe interessando, numa época em que a investigação historiográfica, ainda incipiente, se deparava com um vasto campo de trabalho em ordem ao levantamento dos nossos monumentos filosóficos, ocupar-se do problema axiológico da filosofia portuguesa, isto é, de apurar qual fosse a sua real valia no panorama internacional, João Ferreira desfia, como quem desafia, em dezenas de páginas uma perspectiva histórica das principais fontes da Filosofia Portuguesa, ao mesmo tempo que, considerando dezenas de nomes, mostra topicamente como se pode alcançar uma estruturação e sistematização doutrinal e filosófica, feita sobre autores portugueses, nos diversos domínios basilares do saber filosófico, os mesmos que em 1965, ao longo de um volume ainda hoje interpelante, lhe permitem afirmar a existência, em termos de originalidade ou de aclimação, de uma filosofia portuguesa, da qual, aliás, ensaia caracterizações, em correspondência com a dupla acepção em que toma a expressão.

Chega esse livro até nós como um marco decisivo na abordagem aos problemas da filosofia portuguesa. Decisivo, que não definitivo, e por isso mesmo, como há pouco afirmei, ainda hoje interpelante, pois por ele se pode aferir em que medida e em que sentido entretanto se progrediu.