UNIVERSO TÉLMICO. 66

30-07-2019 09:40

Pinharanda Gomes

O contrabandista de Deus

Miguel Real

 

Possuidor de um vasto saber sobre a história do pensamento português, de que se destacam os três volumes da História da Filosofia Portuguesa, bem como os seis volumes da série Pensamento Português, regista em todos os seus livros uma adesão viva ao modo religioso e espiritualista de problematização das questões filosóficas. Autor prolífico, tem resgatado do esquecimento histórico inúmeros autores integrados na mundividência espiritualista, prestando sólida consistência à existência de uma corrente filosófica em Portugal que, em continuidade, por vezes subterraneamente, desprezada pelo racionalismo e pelo positivismo, condenada pelo modernismo, tem privilegiado, dos alvores da nacionalidade até ao século XX: o espírito face à matéria; a alma face ao corpo; a transcendência face à imanência; a metafísica face à positividade empírica; enfim, Deus face à idolatria dos produtos humanos reificados segundo desejos sociais e ambições ideológicas ou políticas. Este é, de facto e de direito, o estatuto singular de Pinharanda Gomes no seio da cultura portuguesa contemporânea. O seu legado patrimonial.

Lega um exemplo de disciplina, esforço e persistência no estudo, de minimização das coisas materiais face às espirituais e uma obra que vincula Deus e Homem enquanto desacerto ou desequilíbrio entre ambos, buscando o segundo, como Peregrino, amparo e paz no regaço do primeiro.

Autodidacta (porventura, o último, após a morte de Saramago), nascido em Quadrazais, Sabugal, terra raiana de contrabandistas, a que devotou parte importante da sua obra, Pinharanda Gomes só soube ser de nacionalidade portuguesa quando iniciou a frequência do ensino primário. Fiel à natureza candongueira da sua terra, Pinharanda Gomes conservou sempre a capacidade de transmutar e converter conceitos de uma área de estudos para outra ou outras. É assim que a Filosofia lhe serve de caminho montanhoso para os céus da Teologia, a História alimenta uma Antropologia da espiritualidade portuguesa, comprovada e sedimentada pela Historiografia, e a Filologia ampara a Filosofia.

Contrabandista de ideias, Pinharanda Gomes toda a vida se postou fora do pensamento mainstream, exterior às academias bem-pensantes, brilhando, em cada livro, não por brilho alheio, mas por luz própria. É normal, até natural, devido à natureza formal das universidades, que estas lhe não tenham concedido privilégios. Até que a Universidade da Beira Interior decidiu atribuir-lhe o doutoramento Honoris Causa em 2018.

Até sempre, Pinharanda! Lá nos encontraremos de novo, agora não na Biblioteca Nacional, mas no teu Céu.