VERDES ANOS. 02

31-01-2014 00:01

Álvaro Ribeiro fala em dado trecho de A Razão Animada na transgressão dos elementos a que os artistas se mostram particularmente habilitados. Só quem de todo ignorar a proverbial escritura etimológica do filósofo, mestre daqueles que sabem, poderá assacar um sentido policial ao emprego de semelhante termo por parte do portuense ilustre. E, todavia, não raro a transgressão – agora entendida a palavra em seu comum sentido jurídico e sociológico – se constitui como condição da progressão. Sampaio Bruno, a quem António Telmo, em 24 de Dezembro de 1957, consagrou, nas páginas do Diário Ilustrado, um breve ensaio levando por título o nome do filósofo, teve de transgredir – implicado que esteve na frustrada revolução republicana de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, de que hoje comemoramos mais um aniversário – para no exílio progredir pela iluminação da metanoia, da qual há-de derivar a superior, posterior ideação do seu pensamento, sobretudo na genial teodiceia d’A Ideia de Deus. Se, a fazer fé em Álvaro Ribeiro, foi Sampaio Bruno o fundador da filosofia portuguesa, mister será então reconhecer como na génese desta se inscreve um acto transgressivo de ruptura, causa instauradora do maior progresso. É importante lembrá-lo, para que assim, uma vez mais, se possa reafirmar a imensa e tremenda lição de coragem e dignidade com que, na matriz, a nobre Escola Portuense, pelo exemplo dos seus maiores, sempre soube preservar aquele sentido último, espiritualmente aristocrático, da Santa Liberdade que não transige no que mais importa.

Paulo Samuel, a voz portuense do projecto António Telmo. Vida e Obra que comenta o brunino escrito télmico agora publicado, é lídimo representante daquela matriz. Membro da terceira geração da Filosofia Portuguesa, editor e autor de uma notável obra ensaística, vivente daquele Porto que aprendemos a honrar em Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro, José Marinho ou  Agostinho da Silva, mas também em Dalila Pereira da Costa, Alfredo Ribeiro dos Santos ou José Augusto Seabra, convivente de quantos fizeram grande a geração do 57, oferece-nos agora um notabilíssimo comentário ao artigo de Telmo. Fá-lo neste dia assinalado, derradeiro do mês primeiro; e ao fazê-lo permite que demos continuidade a um dos vectores mais importantes do nosso projecto: o estudo sério e aturado da obra de António Telmo, em particular daquela que, ainda esparsa, esquecida anda, ou da inédita, desconhecida. Em Fevereiro, serão de Rui Lopo, Eduardo Aroso (neste caso a inéditos) e António Cândido Franco as glosas esperadas; e de Miguel Real e Elísio Gala as de Março…  

Vai, pois, o mês no seu fim, correndo propício a um balanço. Janeiro foi para o projecto António Telmo. Vida e Obra um tempo exaltante. Começou com a assunção da responsabilidade maior que é a de assegurar o apoio científico à edição das Obras Completas de António Telmo, com o inerente estudo, em curso, do espólio do filósofo; prosseguiu com o desenvolvimento desse muito estimulante projecto que é o suplemento télmico da revista de cultura libertária A IDEIA, com inéditos de Telmo, Dalila, Marinho e Fiama; e culminou com a atempada programação das TARDES TÉLMICAS 2014, num feixe de datas, tão realista quão ambicioso, que se antecipa, prolonga e diversifica por outros azimutes e outras paragens. Dito isto, permitimo-nos ainda assinalar, pela sua particular significação, dois tópicos mais: o contributo de Pedro Martins e Rui Lopo, em colaboração com Renato Epifânio, na transcrição e anotação da correspondência de Agostinho da Silva para António Telmo, que sairá a lume no próximo número da revista NOVA ÁGUIA, e que constituirá um dos acontecimentos mais marcantes das comemorações do 20.º aniversário da morte de Agostinho da Silva; e a participação do mesmo Pedro Martins na primeira sessão do  Colóquio “Portugalidade e Lusofonia” , que terá lugar na Academia das Ciências, em Lisboa, no próximo dia 2 de Junho, com uma comunicação subordinada ao tema “Portugalidade e Lusofonia entre Camões e António Telmo”. O outro orador será também um destacado membro do nosso projecto: Miguel Real, que ali irá falar sobre “Portugalidade e Lusofonia entre António Vieira e Fernando Pessoa”, dois vultos eminentemente télmicos, cada um deles definindo, só por si, um capítulo inteiro da História Secreta de Portugal.  

 

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Sampaio Bruno[1]

De algum modo sentiram a importância e a significação do ano cultural que decorre os vários e inúmeros escritores que em jornais, revistas e sessões públicas celebraram o centenário do nascimento de Sampaio Bruno. Viu-se um país a ler, discutir e pensar os mesmos livros; pela primeira vez, na história da nossa cultura, os portugueses se reuniram à volta dum filósofo. Divergiu-se à esquerda e à direita; na altercação, forçoso é dizê-lo, pouco se alcançou: não ficámos a conhecer melhor o pensamento de Bruno. Todavia, verificou-se o que era já inevitável. A filosofia portuguesa, quer se afirme, quer se negue, é a obsidiante, obnubilante, absorvente preocupação de todos os portugueses cultos.

 

Importa sim dizer que Sampaio Bruno, esse homem tímido, apagado e bondoso, domina toda a nossa vida mental. Mas para bem situar o sentido mais fecundo dessa influência necessita-se antes fazer uma consideração de ordem aparentemente historicista e cultural. Formou-se o espírito do filósofo num período de pleno domínio do positivismo. A agitação provocada pela república nascente alvoroçava as almas e, por vezes, obscurecia a inteligência das ideias, dos acontecimentos e das coisas. Só ele viu o que haviam previsto os liberais resistentes menos à admirável ideia republicana do que à doutrina que os republicanos procuravam realizar. Esses homens, iniciados na tradição iluminista, souberam deduzir, das premissas duma doutrina política que prescindia da teologia, a vitória fatal do obscurantismo. Sampaio Bruno assistia à realização progressiva dessa previsão. Por isso, julgou necessário pensar a teologia da república. Insistentemente chamou a atenção dos seus correligionários para o facto de que no destino histórico, senão transcendente, de Portugal, há que contar com a constante do Catolicismo. Também a república teria uma teologia, discutindo-se depois a sua compatibilidade ou incompatibilidade com a doutrina ortodoxa. O positivismo vinha precisamente fazer o contrário: negar ao Homem o poder de pensar por si e por si imaginar o transcendente. Mas como a maioria dos homens e a generalidade das mulheres que constituem um povo hão-de ser sempre religiosas, como as consciências sempre se hão-de procurar umas às outras enquanto existir o mal, a dor e a morte, os resultados duma doutrina que negasse a Teologia estavam à vista.

 

Combatendo o positivismo, pareceria natural que o autor da Ideia de Deus fizesse a defesa da metafísica. Isso não acontece, porém. Pelo contrário, do positivismo se socorre para mostrar como uma das razões da fácil divulgação dessa doutrina entre nós se deve à falta de inclinação dos portugueses pelos problemas metafísicos. A existência da dor, do sofrimento e da morte, o seu natural espanto perante o mistério cósmico e antropológico, obsidiam demasiado os portugueses para se deixarem seduzir, influir e dominar pelas explicações platónicas e pitagóricas, que, durante a meditação do problema do uno e do múltiplo, ignoram o conceito de evolução.

 

Sampaio Bruno, criticando o pitagorismo, que parte da noção do nada, subordinando à teologia as outras ciências que, com ela, constituem a filosofia, estruturando a física pelo estudo do movimento a partir da queda, relacionando a forma da natureza com a palavra da alma, concebendo a causa final como primeira das causas, cria uma filosofia caracterizadamente aristotélica. Discute-se muito, em certos meios, as características do nosso pensamento. Quem ler os livros do estagirita, não só através dos comentários cristãos e islâmicos, mas também hebraicos, logo descobrirá o fio que permite seguir aristotelicamente o pensamento de Bruno, ou seguir bruninamente o pensamento de Aristóteles. Tanto é certo que somos aristotélicos sempre que lemos, traduzimos e interpretamos o notável pensador hebraico pelas verdadeiras categorias da língua portuguesa.  

 

Seria útil distinguir, para avaliar a influência de Bruno na poesia que o segue no tempo, e também na prosa, aqueles escritores de cuja obra se extrai logicamente ou uma teologia ou uma metafísica. Não hesitamos um momento em colocar entre os primeiros Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais e Fernando Pessoa; entre os segundos, Antero de Quental e todos quantos dele derivam. Lembrarão aqueles que se negam a atribuir qualificação filosófica aos poetas e a ver e reconhecer em Junqueiro, Pascoais e Pessoa reveladores da filosofia portuguesa, que Aristóteles começa a Metafísica pela reflexão séria dos poetas teólogos que o precederam, como Homero, Hesíodo e Empédocles? Contudo, no ensino universitário da filosofia grega nunca se deixam de ministrar os nomes e as doutrinas desses e de outros imaginativos. Tão grande é o poder da distância!

 

Eis o que nos ocorre dizer para salientar nas páginas do «Diário Ilustrado», a importância da homenagem que os intelectuais prestam a um dos seus maiores. É natural que, nos anos mais próximos, se venham a publicar livros sobre a obra de Sampaio Bruno. Os seus múltiplos aspectos nunca estarão completamente vistos, a sua imensa profundidade espera ainda o hermeneuta que dela se abisme para dela extrair a luz. Nós, ao caracterizarmos [sic] ter apontado segundo a directriz mais fecunda e esclarecedora das relações do seu pensamento com a ciência e a política, com a moral e a religião, com todas as esferas, enfim, em que actua o espírito humano. Há que estudar Sampaio Bruno como filólogo, como jurista, como crítico literário, como historiador, como médico acima de tudo. Nunca, na verdade, inteligência tão vasta e inventiva nasceu em terra portuguesa.     

 

António Telmo

 

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Comentário

Paulo Samuel

Publicado a páginas 33 e 39 do Diário Ilustrado de 24 de Dezembro de 1957 (ver verbete completo), este premonitório artigo de António Telmo vem anunciar, em quadra natalícia, o renascimento desse semi-patronímico que intitula o artigo, Sampaio Bruno, na esfera letrada e culta portuguesa da época. Telmo começa por situar o contexto da evocação, logo assinalando, num timbre de consonância decerto irónica e humorada, que a partir de então a filosofia portuguesa, “quer se afirme, quer se negue”, é a absorvente, obsidiante, “preocupação de todos os portugueses cultos”.

 

Traçando um breve perfil da figura enunciada, o articulista destaca a originalidade de Bruno, mormente quanto ao seu papel no ideário republicano, à margem de um qualquer mimetismo positivista, defendendo, a contrario, a liberdade creencial como constitutiva da própria liberdade humana. Em parágrafos concisos e que denotam o seu conhecimento do pensamento brunino, António Telmo apresenta topicamente as linhas fundamentais do autor de A Questão Religiosa, obra cujo cinquentenário de publicação ocorria em 1957, pois a primeira – até agora única – edição (formada por textos dispersos na imprensa periódica) fora impressa em 1907, sob a chancela da Livraria Chardron.

 

É curioso que António Telmo não mencione este título ao longo do seu breve ensaio, referindo apenas uma única vez o emblemático livro de Sampaio Bruno, A Ideia de Deus, donde extrai a base que permite estruturar a sua análise em torno da falsa questão da “metafísica” no pensador portuense, apontando o seu aristotelismo incluso. É certo que a primeira obra citada constitui, segundo o próprio autor, proémio àquele que, imaginado, será o seu “último livro”, em contraponto ao primeiro da sua bibliografia, a intitular-se Síntese da Crença Cristã. No denso e informado volume A Questão Religiosa explicita Bruno, com recurso a vasta erudição, as razões que devem levar à separação da Igreja e do Estado, os fundamentos que legitimam a abolição do celibato dos padres, a questão do ensino religioso, os veios cultos e ocultos que faziam do catolicismo do povo português, em seu entender, não tanto a expressão de uma feição religiosa (esta teria outra expressão, nunca dogmática) mas antes uma tendência sócio-cultural, plantada e adubada ao longo de séculos pela vontade de uma hegemonia jesuítica…

 

Retomando o artigo de António Telmo, não se cuide que este seja circunstancial, assinalando o centenário da morte de José Pereira de Sampaio, nem sequer o único que o jovem filósofo então radicado em Lisboa dedica a esse vulto catalizador da Revolução Republicana Portuguesa de 31 de Janeiro de 1891... A recolha de dispersos em curso, que alimentará a edição das “Obras de António Telmo” e vivifica, por enquanto, este lugar digital, poderá certamente comprovar esta asserção. Até lá, garantem essa particular e até precoce atenção télmica pela obra do obscuro publicista portuense outras fontes e leituras comparatistas. Recorde-se que a memória da bibliografia activa de Bruno apenas está disponível, por essa data, na “antologia” organizada por Álvaro Ribeiro, em 1947, para o elegante livrinho do SNI, na colecção “Idearium”, já que as suas obras não foram entretanto reeditadas – o que só ocorre a partir de meados dos anos 80, enquanto parte das existências de alguns outros títulos estiolam esquecidas em velhos armários de antigo editor portuense –, e só nas bibliotecas públicas se podem ler e folhear. Em Lisboa, todavia, sempre era possível encontrar um ou outro exemplar nos alfarrabistas, por vezes assinados pelo autor e deslocalizados do seu inicial acervo (como ocorre com este de O Encoberto, que agora consulto, com carimbo da Sociedade Literária lisbonense Almeida Garrett, assinatura de posse de Luiz Pacheco no frontispício, datada de 54, e recentemente oferecido a quem estas linhas escreve por Luís Amaro). O mencionado volume antológico rapidamente adquiriu uma notória repercussão, não só atendendo à selecção dos textos recolhidos, importantes para uma aproximação ao pensamento nuclear de Bruno, como pelo facto de registar os estádios da reflexão filosófica do antologiador, que a dado momento escreve que Bruno só admite uma “teologia sem fundamentação metafísica”, ideia que Telmo recupera para a formulação da sua tese aristotélica.

 

Também em 1957 vem a público, em Lisboa, o livro Sampaio (Bruno) – sua vida e sua obra, de José Pereira de Sampaio, com prefácio de Joel Serrão. Em páginas iniciais, o prefaciador reconhece a importância do autor de A Geração Nova para a Cultura portuguesa e a história da filosofia, mas critica “certas interpretações parciais da sua obra” concepções “soi disant filosóficas que na sua obra pretendem enraizar”. Sobre a antologia organizada e prefaciada por Álvaro Ribeiro, a que atrás nos referimos, considera-a “além de pequena” tendenciosa, porquanto o prefaciador “sugere um Bruno que só na imaginação do autor terá existido e existirá, e esboça uma interpretação do pensamento do autor seleccionado que apresenta o leve inconveniente de se não adaptar nem à especulação estudada, em si considerada, nem a declarações expressas do respectivo autor”. (p. 11). Em todo o caso, bastará consultar o livro que o próprio Joel Serrão trará a público um ano depois, em Dezembro de 1958, para se verificar que algumas observações e pistas deixadas por Álvaro Ribeiro ali se encontram retomadas, servindo outras leituras, como a dessa distinção positivista entre “prospectivismo” e “messianismo”. Além disso, a posição do autor contra a “Filosofia portuguesa” não deixa de ser aí reiterada.

 

Ora, António Telmo não havia lido o livro de Joel Serrão quando escreve o seu artigo para o Diário Ilustrado, nem tão-pouco quando cita Bruno nos primeiros parágrafos do seu artigo sobre o “Futuro do Romance português” (e as suas relações com o Lirismo), surgido no 1.º número do jornal 57, com data de Maio desse mesmo ano. Tal como ocorre nas linhas finais deste texto do Diário Ilustrado, também naquele António Telmo acentua a importância do referente filosófico para a literatura, afirmando, no limite, que a “evolução da humanidade se opera […] de harmonia com a doutrina expressa da reintegração dos seres nos seus princípios e nas suas virtudes”. Leitor e discípulo de Álvaro Ribeiro, frequentando as conhecidas tertúlias dos Cafés de Lisboa onde se originou o Grupo da “Filosofia Portuguesa”, Telmo ainda apresenta nesse mesmo número do 57 o escopo de A Razão Animada, em recensão que mantém plena actualidade.

 

Meses depois, no suplemento dominical donde foi extraído o presente disperso, o futuro autor de Filosofia e Kaballah escreve, convicto, que a “imensa profundidade” da obra de Bruno “espera ainda o hermeneuta que dela se abisme para dela extrair a luz”. Tão paradoxal podia então parecer esta certeza como a de vaticinar que a figura e obra de Bruno mereceriam, nos anos a vir, uma atenção e estudo que naquela data apenas começava a ser seminal. De particular relevância é ainda o parágrafo em que Telmo suscita a reflexão, por via da recepção e leitura comparada, da influência de Bruno noutros autores, em particular nos de filiação teológica, como Guerra Junqueiro, Pascoaes, Fernando Pessoa. Ainda no elenco dessas reflexões, propõe que se aprofunde o pensamento de Sampaio Bruno na Filologia, na História, na crítica literária. Obscura é, porém, a última menção – ao “médico” –, salvo se se tratar, quem sabe, de uma velada alusão às investigações de Bruno em torno da Cabala e do misticismo judaico.

 

Enfim, aí fica este disperso de António Telmo, compilado por Pedro Martins, a suscitar as leituras que outros, com maior sageza e desenvolvimento, decerto lhe poderão dar…



[1] Diário Ilustrado (suplemento Diálogo, n.º 45), ano II, n.º 381, Lisboa, 24 de Dezembro de 1957, pp. 33 e 39.