VERDES ANOS. 06

29-06-2014 13:44

Como subsídio para o conhecimento da génese de Arte Poética, livro de estreia de António Telmo, de que no ano em curso se comemora meio século sobre o seu surgimento efectivo (pese embora no frontispício surja impresso o ano de 1963), oferecemos agora ao leitor o artigo "Como traduzir Henrique Bergson", saído a lume, em 31 de Janeiro de 1963, no suplemento "Artes e Letras" do Diário de Notícias, coordenado por Natércia Freire. Da comparação deste escrito télmico com o primeiro capítulo, que tem o mesmo título, de Arte Poética, resultam diferenças mínimas, de pormenor, na redacção, sem que as mesmas anulem, por qualquer forma, a essencial identidade da ideação e da própria expressão. 

António Telmo encontra-se em Évora nos anos lectivos de 1962-1963 e 1963-1964, onde lecciona na Escola Comercial e Industrial. É nesse período que, certo dia, recebe a visita de seu irmão Orlando Vitorino, então inspector da rede de bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian, e vivamente empenhado na empresa editorial Teoremas de Teatro. Orlando pergunta-lhe se não quer publicar um livro com aquela chancela e Telmo, em poucas semanas, compõe o texto de Arte Poética, que depositará nas mãos do irmão numa próxima visita deste àquela cidade.

Apresentado, pelo próprio autor, como um livro mal escrito, por haver sido meditado à medida que ia sendo escrito, e não obedecer assim ao esquema construtivo habitual, que manda caminhar das teses para as provas pelos argumentos, será bem de crer que Arte Poética tenha tido no disperso de Janeiro de 1963 o núcleo germinal de onde irradia. 

Como traduzir Henrique Bergson[1]

 

I

Uma primeira dificuldade é a da tradução de souvenir. Várias palavras portuguesas se propõem: «lembrança», «recordação», «imagem», «fantasma», «sombra». Souvenir, de sous - venir, é o que vem de baixo, o que se oculta na profundidade da consciência, mas que, a todo o momento, tende a vir à superfície, animado como é de uma vida própria. A lembrança é um movimento especulativo da memória; a recordação é uma memória activa repassada de emoções. Os verbos respectivos destes substantivos (na língua portuguesa, quase todas as palavras, que não são directamente verbos, produzem-nos ou deles provêm) são quatro: «lembrar» e «recordar»; «lembrar-se» e «recordar-se». Os dois últimos, na sua forma reflexa, significam movimentos do espírito sobre si mesmo, o que os torna aptos a exprimir a actividade inventiva da memória, tal como a concebe Bergson.

Mas o que é que se lembra e o que é que se recorda? A «imagem» aparece, talvez, como a palavra que melhor traduz souvenir. Dir-se-á, portanto, a lembrança, ou a recordação das imagens onde Bergson escreve «le rappel des souvenirs»? Nova dificuldade, que nos leva a procurar determinar o sentido da palavra rappel. Não parece inteligente traduzir «rappel» por «lembrança». Há qualquer coisa de passivo, de jogo de espelhos, nesta palavra que contradiz a actividade que o espírito desenvolve durante o «rappel». Ao lado da «recordação», surgem «evocação» e «invocação». A evocação ou invocação das imagens é uma expressão mais bem achada para traduzir «le rappel des souvenirs». No entanto, surge outra dificuldade, não já, como até aqui, em relação com o idioma de Bergson, mas dentro da língua portuguesa. «Evocação» e «invocação», se atendermos ao valor dos prefixos, são antónimos. Como empregá-los, pois, indiferentemente, para exprimir a mesma relação verbal? É que a antonímia é apenas literal ou aparente. A «evocação» consistirá em trazer à luz da consciência o souvenir, que se esconde na penumbra da memória; a «invocação» consistirá, não em realizar o movimento inverso, que a oposição dos prefixos sugere, mas em ir lá dentro, lá abaixo, à profundidade onde vivem os pensamentos, as recordações e os instintos, chamar a imagem de que precisamos. Se assim é, qual é o antónimo de «evocação»? A sua determinação torna-se indispensável, se quisermos traduzir o pensamento de Bergson com suficiente profundidade.

Supõe-se que uma imagem invocada não chega a ser evocada. Fica detida a meio caminho. Verifica-se que não se adapta ao esquema dinâmico, ao «conceito» de que a memória partiu. Torna-se então necessário repeli-la. Não há poeta que não tenha experiência, mais ou menos consciente, deste movimento. Dir-se-á, pois, a repulsão das imagens, em oposição à sua evocação? A expressão é deselegante e, além disso, equívoca, na indeterminação do sujeito de e do complemento. Ocorre-nos a palavra «reenvio». Se é a mais apta a significar o que queremos, temos assim dois movimentos que exprimem a actividade do espírito que se recorda: a evocação e o reenvio das imagens. O leitor que quiser relacionar esta fórmula com o que seguidamente diremos verá toda a importância de uma sua exacta determinação.

 

II

Não fará uma boa tradução de Bergson quem, baseado na distinção entre «pensamentos» e «movimentos cerebrais», julgar que os pensamentos, que o filósofo situa, por assim dizer, para lá da actividade cerebral, são aqueles mesmos que formulamos quando o espírito opera num só plano de consciência. Pelo contrário, estes pensamentos são aqueles movimentos. A acção e a reacção das imagens, as articulações mecânicas que entre elas se estabelecem de associação e dissociação, quando só o corpo está interessado em determinada acção, são o acompanhamento motor e exterior dos verdadeiros pensamentos, em relação aos quais o cérebro funciona como receptor, transformando-os em movimentos.

Quem, deslocando pelo «esforço intelectual» o espírito do plano físico para o plano mental, identificando como o centro extracerebral da evocação e reenvio, surpreenda as imagens como origens, isto é, no momento em que se verbalizam e vão ser recebidas pelo cérebro, vê-las-á, ainda antes de serem modificadas, na forma de potências, energias, forças. É o que acontece quando, resistindo ao fluxo ininterrupto de imagens, nos dobramos sobre a nossa própria interioridade, para compreender e para pensar. Verificamos então que o espírito forma um esquema dinâmico, que dificilmente pode ser confundido com uma composição e imagens exteriores umas às outras, mas que é, pelo contrário, uma composição de forças, de potências ou de energias. São estas energias que actuam também na natureza e aí se manifestam segundo a lei da causalidade?

Linhas atrás, referimo-nos à profundidade onde vivem os pensamentos, as recordações e os instintos. Dissemos também que a recordação é uma memória activa, repassada de emoções. Etimologicamente, «recordação» relaciona-se com o centro físico dos sentimentos – o coração. Se a Matéria e Memória incide mais sobre o estudo dos processos intelectuais, é no Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência que devemos procurar as linhas de uma psicologia integral. Será lícito compreender na mesma palavra imagem, tradutora de souvenir, tanto as ideias como os sentimentos? Será uma mesma substância que, conforme o plano – mental, animal ou vital – em que se manifesta, assim é o pensamento, sentimento e instinto? Como quer que seja, parece depreender-se da convergência de certas linhas de ideias traçadas em pontos diferentes por Bergson que os vários planos da consciência em que o espírito se move, quando exerce esforço intelectual, realizam estados progressivos de conhecimento, dos quais o último nos daria o domínio sobre os princípios da vida instintiva, senão até da própria vida mineral, ali onde a vida se cruza com a morte. Isto, porém, como diria Bergson, é uma hipótese simplesmente teórica.

Posto, portanto, o princípio de que os souvenirs (dados na forma de pensamentos, sentimentos e instintos) são dotados de uma vida própria, são forças de energias, nasce o problema de saber como o espírito consegue orientá-los, dirigi-los, submetê-los, enfim, ao seu comando. Bergson responde que por meio de esquemas dinâmicos. O tradutor português verificará que ao «esquema dinâmico» corresponde, na sua língua, a palavra «conceito». Importa, porém, ter presente a advertência de Orlando Vitorino de que o conceito «não se liga a um sentido exterior», mas ao sentido interior, autónomo, real em si, da concepção (Introdução Filosófica à Filosofia do Direito de Hegel, p. 64). Dado um conceito, dado um esquema, logo as imagens acorrem, impelidas por uma necessidade íntima, a que se pode chamar espírito de associação ou de contiguidade, a tentar subordiná-lo. É então que o espírito tem de manter-se bem firma no conceito, actuando como um poder que, em vez de se deixar dominar, pelo contrário a si submente a energia da imagem, dirigindo-a e modificando-a de harmonia com o fim que se propôs. Ao exercício deste poder, que é, aliás, a própria actividade do pensamento, chama Bergson «esforço intelectual». Tal actividade é comparável à espada com que Ulisses afasta os espíritos atraídos pelo sangue do sacrifício.

 

III

Restaria agora ver como o espírito, que, no homem normal, actua sempre no mesmo plano, limitando-se a receber e a deixar-se conduzir pelas imagens, adquire a actividade própria do pensamento. Todavia, todos nós temos a experiência do acto sui generis pelo qual memoramos voluntariamente determinado acontecimento do nosso passado, mas o que é difícil é dispor sempre da faculdade de concentração, não seguir arrastado, quando se não quer, pelo fluxo mental, deslocar livremente o centro da inteligência para um plano profundo. Aqui conviria então interrogar a função que Bergson atribui aos gráficos, aos símbolos, às mnemónicas, às palavras.

Deixaremos tão importante assunto para outra ocasião. Agora, preferimos convidar o leitor a recapitular os momentos essenciais deste nosso escrito, de maneira a ver como de um aparentemente insignificante problema filológico de tradução fomos descendo gradualmente, ou gradualmente subindo, até ao nódulo do pensamento de Bergson. Traduzir qualquer filósofo, limitando-nos a seguir literalmente a articulação exterior das teses e dos argumentos, equivale a trair, a subsumir, a fazer desaparecer o mais importante. Traduzir um livro secreto (e qual não é secreto?) é também formar um esquema dinâmico, a partir do qual se encontrarão as imagens e as palavras mais aptas da nossa língua. Neste sentido, têm razão quantos afirmam, em Portugal, que, para saber traduzir, o indispensável é conhecer a língua portuguesa.  

 

António Telmo

 



[1] Diário de Notícias, 31-1-1963, p. 13 e p. 15 (supl. Artes e Letras).