VERDES ANOS. 16

26-10-2015 08:43

No centenário do nascimento de Sampaio Bruno[1]

 

Comemora-se este ano o centenário do nascimento dum filósofo português. Tal acontecimento reveste-se de extraordinária significação, pois trata-se de Sampaio Bruno, talvez o nosso pensador mais amplo e profundo. Já alguns jornais contribuíram com artigos, sendo justo destacar os de José Marinho, Santana Dionísio, Luís Zuzarte e Álvaro Ribeiro, no sentido de que só estes escritores consideram Sampaio Bruno no cerne ou em relação ao cerne da sua actividade mental – a filosofia. A Álvaro Ribeiro se deve o acto de recordação que lhe prestamos. Sem os seus estudos de hermenêutica, este ano não seria assinalado pela discussão do pensador.

Esta discussão deriva duma dupla dificuldade acusada nos livros de Sampaio Bruno: dificuldade de estilo e dificuldade de pensamento. Esse estilo e esse pensamento são, porém, difíceis? É ao que vamos tentar responder.

O estilo de Sampaio Bruno é fácil, na medida em que se oferece numa linguagem comum, embora clássica: por vezes tão lhana e simples, que parece que o filósofo conversa connosco à mesa do café. Não se complica nunca da terminologia cientificista, com que é hábito espantar os ignorantes. É o estilo dialogado, intimista, erradio e errante de quem encara os problemas filosóficos sem intermediação culturalista, o que não quer dizer que, em busca de soluções, não interrogue as várias respostas que a cultura foi fixando ao longo do tempo. Conta-nos anedotas; narra, com minúcia, episódios autobiográficos; intercala, na discussão dos temas mais difíceis, expressões vulgares. No entanto, muitos consideram Sampaio Bruno quase ilegível.

É, na verdade, uma forma de escrever invulgar e singular; trabalhada sobre os nossos clássicos e sobre a língua do nosso povo. Como, entre nós, se escrevem línguas estrangeiras com aquele mínimo necessário de fonemas portugueses, o que é legitimamente português resulta difícil ou, então, exótico. Sampaio Bruno não tem o talento de Camilo, Fialho ou Aquilino, mas também a prosa deste último nos aborrece se inconscientemente o ritmamos por um esquema mental adquirido na leitura de escritores estrangeiros.

Quanto ao pensamento de Sampaio Bruno, a todos é acessível. Julgamos ser lícito utilizar análoga argumentação à de que nos servimos para com o estilo. Emerge esse pensamento das profundidades da sabedoria popular, mas o filósofo vê-se obrigado a fazê-lo defrontar as filosofias estrangeiras que, no seu tempo, se tornaram seguidas entre nós. Se a nossa educação filosófica partisse dum fundamento popular e nacional, com vinte e oito anos qualquer de nós se encontraria apto a compreender o pensamento de Sampaio Bruno em toda a sua profundidade, pois aparecer-nos-ia como um prolongamento natural da nossa mais funda sabedoria. Infelizmente somos educados para reflectir as filosofias estrangeiras e, esquecidos de que a estas é aplicável análoga relação para com as origens, vemo-nos limitados a conhecer apenas o que nelas é susceptível de versão internacionalista. Na verdade, como se torna fácil o aristotelismo, o hegelismo, o bergsonismo, uma vez desligados da essencial relação com as origens, e como é difícil Sampaio Bruno, se o queremos moldar a uma visão internacionalista!       

É de admitir, pois, que todo o problema de aceitação e reconhecimento compreensão e aprofundamento dos nossos filósofos é um problema de educação. Na Ideia de Deus estuda Sampaio Bruno o significado do erro e, com não admite fim para a aventura espiritual, isto é, como concebe Deus como infinito, é conduzido a combater o espiritualismo, que reduz toda a filosofia ao método, «com ponto de chegada já conhecido no ponto de partida». O mestre não aprende também; sabe já tudo o que o aluno irá saber. Este não pode seguir por outros caminhos; não pode aventurar-se errando; é obrigado a repetir a ciência feita do mestre; a submeter-se sucessivamente a provas numa infindável humilhação da consciência. Traz para a vida pública o medo obsessivo de errar e, se escolhe a literatura, será um inimigo da filosofia, isto é, da liberdade de pensar.

No centenário do nascimento de Sampaio Bruno, «um alento de esperança nos inunde». Ele é um filósofo vivo, mais do futuro que do presente e mais do presente que do passado. Seja esse o sentido do acto de recordação que hoje prestamos ao autor do Encoberto!  

 

António Telmo



[1] Diário de Notícias, ano 93, n.º 32678, Lisboa, 14 de Maio de 1957, pp. 7 e 8.