VOZ PASSIVA. 01

09-12-2013 12:06

António Telmo: a visão esotérica do pensamento português

Miguel Real

 

Entre os diversos pensadores vinculados as teses da "Filosofia Portuguesa", António Telmo é o que mais se encerra no universo simbólico ocultista. Mais do que uma visão providencialista da história de Portugal, de sentido milenarista, como as defendidas pelas obras de Agostinho da Silva, António Quadros ou Dalila Pereira da Costa, António Telmo constrói uma filosofia solitária fundada na totalidade das tendências ocultistas  e  herméticas da civilização ocidental, criando uma das mais singulares casas do pensamento do Portugal dos finais do século XX. Atraído pela leitura cultural esotérica, a obra de António Telmo encontra-se envolvida por um espírito de suspeição, própria do seu universo simbólico, como os títulos de alguns dos seus livros o indicam explicitamente: História Secreta de Portugal, Horóscopo  de Portugal, Gramática Secreta da Língua Portuguesa e Filosofia e Kabala, revelando, de um modo subtil, os arcanos profundos da cultura portuguesa de um modo como nunca fora  feito em Portugal.

Neste  sentido, a singularidade do pensamento de António Telmo para a configuração geral do pensamento português na segunda metade do século XX reside, justamente, na integração que opera do pensamento esotérico no seio da cultura portuguesa, dando a este um cunho de cidadania que, preso a grupos voluntariamente marginais ou clandestinos, até então lhe tinha sido recusado. Este, indubitavelmente, o grande contributo de António Telmo para a cultura e o pensamento portugueses - trazer sem complexos a visão esotérica para a casa do pensamento português.

 

Sublinhamos a sua visão da história cultural do país, explicitada em  A História Secreta de Portugal[1], já que constitui  um importantíssimo contributo para o pensamento português dos finais do século XX.

Profundamente influenciado pelo pensamento de Fernando Pessoa, António Telmo considera existir uma história “secreta” providencial portuguesa, feita de mistérios e cifras, paralela à historiografia oficial dominante, a qual, no seu entender, une as perspectivas só aparentemente contraditórias de “Teófilo Braga [o positivismo historiográfico] para Salazar e de Salazar, através de [Marcello] Caetano, para Vasco Gonçalves [primeiro-ministro de tendência marxista de governos provisórios post-25 de Abril de 1974]”:

 

Compreende-se assim que os políticos e seus serviços, neste últimos cento e um anos, divididos entre si, na medida em que defendem aspectos diferentes da mesma ideia (as numerosas conversões à política de um partido e a deserção de outros, e a facilidade de despir e vestir, conforme as circunstâncias, a cor política constituem o sinal de que nenhuma diferença radical opõe democratas-cristãos, sociais-democratas e comunistas), se conluiem e acertem uns com os outros, quase por instinto, quando no horizonte cultural da Pátria surge a luz de uma doutrina portadora de uma visão superior da vida e da história [a doutrina providencialista e messiânica]. Este nosso livro pretender dar alguns dos aspectos fundamentais dessa visão que, até agora, se exceptuarmos alguns apontamentos de Sampaio Bruno [refere-se ao livro póstumo Os Cavaleiros do Amor] e de outros pensadores[2] onde ela se demorou breves instantes, apenas recebeu uma expressão cifrada [no sentido de “misteriosa”].[3]

 

António Telmo considera que a realização providencialista de Portugal foi interrompida no reinado de D. Manuel I, findando neste reinado o que designa por “Ciclo Heróico ou dos Reis” da História de Portugal. Por deveras original, tem um notável interesse para a história do pensamento português contemporâneo a sua divisão da história de Portugal:

 

Neste nosso livro, procurámos determinar os ciclos da história de Portugal, como se a imagem perseguida pelo tempo fosse a do Quinto Império. Dividimo-la no ciclo heróico ou dos reis, no ciclo do clero e no ciclo do povo, de acordo com o esquema dos estados sociais do mundo medievo. O ciclo do povo coincide, no seu termo, com a implantação da República e principia com o Marquês de Pombal, quando a Igreja Católica perde o favor político a favor da Maçonaria. O ciclo do clero começa em D. Manuel e define-se como tal como D. João III e o estabelecimento da Inquisição. Depois de 1910, não se nos representa novo ciclo, mas surge um período de indeterminação, dominando pela ideia de plebe. Entendemos por plebe as formas degenerescentes que assumem os três estados sociais – nobreza, clero e povo. Neste período, o princípio monárquico da história de Portugal está apenas confiado aos poetas e filósofos da profecia.

A unidade, que comanda de início ao termo todo o processo é, como dissemos, a ideia de Quinto Império, mas se, no ciclo dos reis, é a ideia pura (...), aparece no segundo ciclo, já pela voz de Camões e, sobretudo, em D. João de Castro e António Vieira, como o domínio da Cristandade sobre todo o universo, no terceiro ciclo essa ideia entra em progressiva degenerescência até configurar-se no socialismo.[4]

 

A identidade nacional permanece intemporalmente presa das características determinantes do “ciclo dos reis”, como operador do projecto templário,  findando definitivamente como possibilidade material realizadora em Alcácer-Quibir (1578), prosseguindo desde então em Portugal com existência “apenas em forma fantasmática”[5], representando, seja o clero, seja o povo, um abastardamento ou uma degenerescência da ideia fundadora e mantenedora de Portugal. Princípio e fim da história de Portugal, a ideia de Quinto Império é tomada na actualidade por António Telmo, não no sentido material, político e militar que lhe atribuiu padre António Vieira, mas no sentido simbólico, cultural e espiritual dado por Fernando Pessoa em Mensagem. Por via de uma análise demorada dos adereços sagrados do portal sul e do claustro do mosteiro dos Jerónimos, a partir de indicações lidas nos livros dos espiritualistas franceses René Guenon e Julius Evola, António Telmo encontra a comprovação das suas ideias sobre o Quinto Império e o período magno dos reis na efígie do navegador Nicolau Coelho, na qual se representariam, interpretadas esotericamente, a “iniciação” do próprio Nicolau Coelho, constituída analogicamente como “iniciação” de Portugal, dupla “iniciação” que, devidos aos inúmeros pormenores escultóricos e arquitectónicos, nos dispensamos de aqui repetir. Importante é de referir que seria cerca do ano de 1513, data da entrega do novo mosteiro à ordem dos Jerónimos, que findaria o ciclo heróico de Portugal.

Do mesmo modo que o mosteiro dos Jerónimos, Os Lusíadas constituiriam o poema “esotérico” em que se inscreve a história “oculta” de Portugal tendo como motor a realização do Quinto Império, ou seja, como unidade absoluta ontológica que tudo enlaça, fundindo e não separando, ou, dito ao modo de António Telmo, o reino do “Amor”, expressão de “unida esfera”, princípio e fim de tudo, simbolizada no poder imperial de D. Manuel (a esfera armilar) e na nova forma geográfica da Terra. Camões seria, assim, um “fiel do Amor”, em que esta palavra tanto significa o laço ontológico que une toda a história de Portugal como, igualmente, lida ao contrário, a procura de uma nova “Roma”, não a cristã e papal, mas a portuguesa, perpetuando assim a tradição esotérica templária, centrando a sua epopeia no “Ilha dos Amores”, instância supranatural abolidora do tempo e do espaço e configuradora da dimensão da eternidade no seio do tempo.

Jerónimos em pedra e Os Lusíadas em verso, ambos os monumentos, interpretados simbolicamente, melhor dito “ocultamente” e “iniciaticamente”, exprimem e cristalizam o momento fundante e finalizante da identidade cultural portuguesa. Porém, Camões, vivendo já sob o reinado de D. João III a D. Sebastião, da “apagada e vil tristeza” em que se tornara Portugal já canta na sua epopeia:

 

Os Lusíadas são, de facto, como alguém disse, o Velho Testamento de Portugal, esse povo tríplice: cristão, judeu e árabe. A partir de 1513, forma-se uma sociedade corrupta, semimorta, sem ideal, apagada, vil e austera. Os judeus que não fugiram do país tiveram de converter-se ao catolicismo. As pessoas tornam-se inquietas, temerosas, divididas entre duas crenças. Ser-se inteligente é considerado pela Inquisição o principal indício de judaísmo.

É, porém, o que há de cripto-judaico, inconsciente ou não, que em 1755 se tornará dominante, dando início ao terceiro ciclo da nossa história, o ciclo do povo que, pela Maçonaria, conservará ainda algumas reminiscências  do ciclo dos reis. O Padre António Vieira representa a tentativa, com a sua actividade política e missionária, e com a sua História do Futuro, de restituir ao catolicismo a dignidade do Império. Anos antes, uma organização a que não seria alheia a actividade de António Vieira, lançara as profecias do sapateiro Eanes Bandarra, onde se antevisiona a vitória final da Igreja Católica através do regresso do Imperador do mundo. Tudo isto é irreal, como dirá mais tarde Fernando Pessoa, mas constitui a projecção na perturbação dos espíritos de qualquer coisa de muito sério, da qual Luís de Camões parece ter tido ainda um conhecimento real [o da concretização material do Quinto Império como motor dos Descobrimentos].[6]

 

Vivendo hoje um período de "indeterminação", Portugal, representado pelos seus poetas, especialmente pela obra de Fernando Pessoa, espera o regresso d'O Encoberto, que, revelando-se, activará o advento do Quinto Império, princípio e finalidade da existência de Portugal.

 

 


[1] António Telmo, História Secreta de Portugal , Lisboa, Vega, 1977, cf. Pedro Martins, "Nota Editorial" a História Secreta de Portugal, Sintra, Zéfiro, 2013, edição donde citaremos.

[2] Note-se que António Quadros ainda não lançara os seus dois volumes de Portugal. Razão e Mistério, 1986 e 1987; porventura António Telmo referir-se-á a Dalila Pereira da Costa, cujo texto sobre a saudade, em edição conjunta com Pinharanda Gomes, saíra no ano anterior, 1976, bem como o seu livro sobre O Esoterismo em Fernando Pessoa, de 1971. É evidentemente possível que o autor se refira aos dois livros de Agostinho da Silva Um Fernando Pessoa e Reflexão à margem da Literatura Portuguesa, dos finais da década de 50.

[3] António Telmo, op. cit., p. 30 - 31.

[4] Idem, ibidem, p. 35.

[5] Idem, ibidem, p. 34.

[6] Idem, ibidem, p. 100.