VOZ PASSIVA. 116

15-01-2021 18:41

António Telmo e as novas gerações*

Pinharanda Gomes

 

Sendo um autor magistral, de António Telmo podemos, sem pejo de mal ajuizar, considerar que o seu pensamento se constitui num método de regime solitário. Seguindo uma via singular, aliás, contemplativa do que se chama de esoterismo, mas que, nos seus escritos, se expressa como leitura do esotérico, dos signos e dos símbolos, é voz única. Hoje em dia, o esoterismo quase se constituiu em modismo, havendo diversos modos de esoterismo, algumas vezes se transmutando em ocultismo, logo incomunicante.

O esoterismo de António Teimo institui-se como leitura, para iluminar ou trazer à luz o que se acha menos patente ou de modo fingido ou alegórico na signalística e na simbólica. Pensador de facto solitário, porque enquanto pensador não deriva de qualquer instituição de colegialidade, tem, não obstante, criado o seu próprio colégio de artes. Por isso, aludimos ao predicado que lhe convém de autor magistral, não implicando neste predicado qualquer conotação escolástica ou imediática. O mestre não pode nem deve dizer que tem discípulos, mas um discípulo pode e deve (neste caso, se achar adequado) dizer quem é o seu mestre. De modo facilitado: é o filho que ao pai chama pai e à mãe, chama mãe. No caso dos pais, têm estes legitimidade para dizerem quem é seu(s) filhos(s). No caso do mestre, a prudência ensina que se absterá de chamar discípulo seja a quem for, pois corre o risco de ser, ou de vir a ser, como tal recusado.

Quem olhar de fora para dentro tem legitimidade para afirmar que António Telmo gerou, além de admiradores, discípulos. São eles gerados, ou na leitura dos escritos, ou na convivencial audição de tertúlias e de encontros, nos quais António Telmo sempre exercita a arte de iniciação no sagrado e no segredo, ou, se quisermos, no cerne ou nas cifras, cabálicas ou enigmáticas do movimento do homem e da vida das pátrias. O seu nome vive nas novas gerações, que pelo seu magistério dão continuidade a um dos regimes hermenêuticos preconizados no movimento da «Filosofia Por-tuguesa», do qual António Telmo é, hoje em dia, e falecidos os demais (incluindo seu irmão, Orlando Vitorino) a principal figura, já activa na primeira geração de discípulos de Álvaro Ribeiro. Ocorre-nos que esse límpido texto intitulado «Arte Poética» (que de certo modo decidiu, mais do que parece, a posterior conformação da sua obra) é de 1963.

Autores das gerações novas, admiradores não necessariamente unanimistas, e outros nitidamente discípulos em fase de assunção de caminho autónomo, reuniram-se num acto de gratulação e de louvor a António Telmo, cuja obra do mesmo passo procuram interpretar, cada um a seu modo revelando o que nos seus escritos é vivaz e paidêutico, ou iniciático.

São dez autores que partilham desta ceia: Joaquim Domingues (arte poética), Elísio Gala (Pôr a demanda), António Cândido Franco (O filho de Orpheu), Carlos Aurélio (Chegada dos Lusíadas à Ilha de Deus), Pedro Sinde (Deambulações em torno de Filosofia e Kabbalah), Avelino de Sousa (Contos de António Telmo), Rui Arimateia (As ideias são comunicadas pelos Anjos), Luís Paixão (Apontamentos Biográficos sobre António Telmo) e, a terminar, levantada por António Reis Marques e João Tavares, a Bibliografia de António Telmo. Pensador de índole poética, mas de modo análogo sistemática, de António Telmo se não dirá que apresenta várias linhas de pensamento, só porque diversos são os géneros literários em que se exprime e comunica. São, estes géneros, modos de revelação da mesma e una linha de pensamento que tem elaborado: um pensamento especulativo que acede do conhecimento interior e activo (o pensamento é movimento) ou actual, ao conhecimento do mundo (Cosmologia) do homem (Antropologia) e da ideia de Deus (Teologia). Neste caso, alguém preferirá dizer Teodiceia, mas a nosso ver o termo Teologia justifica-se, porque no discurso de Telmo, para além da razão natural que obriga a Teodiceia, há nítidos elementos revelados, que elevam a Teodiceia a Teologia. A construção cabálica do discurso obriga necessariamente ao que designaremos por simbologia teológica. E, quanto à Cosmologia, esta vem a aferir-se à Teologia, pois o mundo é, também ele, como o Homem, um sinal divino. Uma ostentação milagrosa, ainda que solicite uma leitura por dentro, descortinando o significado dos sinais e dos recessos ou esconderijos formulados pelas palavras que, para além do significado patente, podem servir para esconder outro, afastado do profano.

Como muitos dos nossos leitores sabem, António Telmo tem privilegiado a aplicação do método aos temas e problemas da História de Portugal e da teoria filológica e gramatical da Língua Portuguesa. Também os textos classificados como contos são enigmas de espiritualidade, mas, na esfera da interpretação mítico-simbólica da Língua e da História, a obra de António Telmo é vivíssima refutação das teorias materialistas ou simplesmente fisiológicas da linguística, e das teorias economicistas acerca da gesta portuguesa no Mundo, procurando revelar como, em todas as situações, o ponto de partida, ou o motor imóvel do real, é operativa expressão do espírito em acto. O homem resulta ser, em si mesmo, e no tecido universal, um mistério da história divina, enquanto mistério, peregrinando História, tem por causa final a redenção do mundo perdido. No reencontro desse mundo, ao homem será dada a ver a última iluminação: frente a frente, e não já pelo reflexo do especulativo espelho.

Cada um dos autores convoca-nos para a rosácea de valores da obra escrita de Telmo. Nesta recensão jornalística impossível se torna especificar todos os argumentos, pelo que nos limitamos a transcrever, do ensaio de Joaquim Domingues, o versículo que nos parece sinopse de quanto ali vem: «Na aparente selva dos símbolos, das metáforas e dos sinais, há uma estrada real que, embora esquecida e obscurecida pelo tempo, se oferece a quem acredita que o saber tradicional é susceptível de sucessivas actualizações, pelo que a esperança não é uma palavra vã» (p. 31). A causa da gesta pátria é a esperança na redenção.

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* Publicado originalmente em O Diabo de 17 de Agosto de 2004, p. 20.