VOZ PASSIVA. 117

24-01-2021 11:03

Pôr a demanda

[História Secreta de Portugal e Horóscopo de Portugal]*

Elísio Gala

 

Se Portugal não existisse, não existiria a filosofia da história de Portugal concebida e ideada pelo filósofo António Telmo. É claro que nos podemos questionar sobre o modo de existência de Portugal: existirá desde Alcácer-Quibir em forma fantasmática? Existirá como um corpo cuja alma foi substituída por um demónio estranho? E estaremos nós habilitados sequer a perceber tais diferentes modos de existência, nós que vivemos na distracção, na espessura e na insignificância tudo quanto diariamente nos acontece?

Parece ser certo que só estaremos presentes no que viermos a ser, se tivermos consciência do que fomos e do que somos. Procura o filósofo ver melhor, interpretando o passado pela sua ideia de futuro, conferindo sentido à história, pela razão primeira do movimento que garantida está no fim ou na enteléquia.

A sua filosofia da história é uma filosofia de visão e de revelação. De visão, porque apresenta aspectos fundamentais da luminosa e superior doutrina da vida e história da nossa Pátria - todos os que vivemos e a cadeia invisível dos nossos antepassados – consubstanciada numa acção consciente e intencional de redimir o mundo do mal e da divisão. E de revelação, quer porque não explica muito, já que há coisas que só ocultando-se revelam; quer porque revelar é voltar a velar para mostrar.

É também uma filosofia da história cifrada e por isso só decifrável na metáfora. Como por mais de uma vez nos ensina António Telmo é completamente inútil procurar nos documentos que os historiadores utilizam, a prova do que avança. Documentos onde tão hermeticamente se guardava a sabedoria da demanda do centro, como o «manuelino» – cifra que cala o mistério da história de Portugal – ou a poesia trovadoresca das cantigas de amigo, influenciadas pelo Cântico dos Cânticos, só falam para “quem sabe e quer pôr a demanda”.

Trata-se por fim de uma filosofia da história fundamental de Portugal. A que não reduz a história da Pátria portuguesa ao culto sentimentalista dos valores pátrios, de que o salazarismo e seu socialismo positivista constituíram exemplos. A que não subordina a Pátria ao pragmatismo economicista, socorrendo-se da tecnologia dominadora da natureza e anulador da ideia de terra natural. A que não é servil perante qualquer internacionalismo com que historicamente nos deparámos.

Como afirma o filósofo, desenho, desígnio e destino, são tudo palavras irmãs. A obra teológica e filosófica de António Telmo – Horóscopo de Portugal – votada ao esforço de patentear o carácter inteligível da sucessão e desenvolvimento dos acontecimentos no tempo, dá dessa irmandade a prova numa zona de ser que não a situada no plano social, político ou cultural. Como assim? Pelo desenho e hermenêutica dessa oração de pedra, que é o sistema simbólico gerador do Claustro da Senhora dos Reis Magos; pela caracterização do desígnio que presidiu à viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia; pela apresentação do destino transcendente de Portugal desenvolvida com base na simbólica astrológica do horóscopo de Portugal traçada pelo poeta Fernando Pessoa.

Almas de Portugal

 

No pensar de Fernando Pessoa, há vários “Portugais”, que serão em planos sucessivos a manifestação da ascensão gloriosa da alma portuguesa, depois da viagem pelo céu e inferno da sua História: o 1° Portugal, o que nascido com o país está no fundo de cada português, como alma da própria terra, emotiva, clara e enérgica, reflexo do infinito azul e verde do Atlântico; o 2° Portugal cuja alma nascida com o início da segunda dinastia, se tornou subterrânea após Alcácer-Quibir – hora de fractura entre os portugueses – tornando-se então verdadeira, já que a sua origem também era subterrânea, vinda de mistérios e sonhos antigos da alma helénica, de histórias contadas aos Deuses antes do Caos e da Noite, fortificada na sombra e no abismo. Tendo outrora descoberto a terra e os mares, criou o que o mundo moderno possui que não é antigo, como o oceanismo, o universalismo e o imperialismo, produções conscientes do primeiro movimento divino da alma portuguesa, “do segundo estado da Ordem secreta que é o fundo hierático da nossa vida”; o 3° Portugal encontrado à superfície dos Portugueses é o que, após a dominação espanhola, o curso da dinastia de Bragança, da sua decomposição liberal, e da República, formou a parte do espírito português que contacta com a aparência do mundo, reflectindo errónea e hipnoticamente o caminhar do estrangeiro.

Chegado o fim do ciclo da vida de Portugal, afirma Fernando Pessoa em carta ao Conde de Keiserling, que haverá para além do primeiro dia da manifestação da alma portuguesa (aventura terrestre, material, conquistadora de costas e areias, cumprido com a dinastia de Avis), o segundo dia (formidável aventura de natureza supra-religiosa passada na “No God’s Land”, mundo intermediário entre o Homem e os Primeiros Deuses), e o terceiro dia (a prometida conquista do mundo divino, do Céu de Deus, ascensão do povo – o que foi, é e será? – a um plano substancialmente diferente).

 

Da ambivalência da História

 

António Telmo aproxima a tríplice divisão da alma de Portugal, com o horóscopo de Portugal traçado pelo mesmo Fernando Pessoa. Uma das singularidades mais relevantes que o filósofo torna patente é que no curso do Sol – que  o mesmo é dizer, no curso de Portugal e do povo português que é uma história e uma luz na sua manifestação para a exaustão – a inversão do hemisfério superior

e diurno no hemisfério inferior e nocturno se produz nos acontecimentos ou ideias. A correspondência das Casas opostas. Há o mesmo movimento na sua forma luminosa e tenebrosa.

Mas António Telmo leva ainda mais longe a original profundidade das suas aproximações hermenêuticas: apresentando os Jerónimos como os Lusíadas em pedra dos Descobrimentos e os Lusíadas como sendo os Jerónimos em verso; apresentando as razões de prova de que o horóscopo de Portugal é a base astrológica e geomântica da Mensagem, onde Fernando Pessoa rectifica à luz de princípios maçónicos a ideia de Quinto Império nas suas primitivas determinações. Tomando as correspondências elementares do círculo com o Céu e do quadrado com a Terra, imagina o Claustro dos Jerónimos como a figura do horóscopo de Portugal. A Terra relacionada com o Céu, com uma diferença porém: o horóscopo de Pessoa é o desenho dos momentos históricos – passado, presente e futuro – de Portugal; e o Claustro é o desenho dos momentos simbólicos propiciadores do cumprimento do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia.

 

Dos Ciclos Históricos

 

A história, mais do que um problema a resolver, é um mistério a contemplar. Mistério dependente dos desígnios de Deus e envolvendo a materialidade e contingência humanas. É certo que a história não pode ser racionalmente explicada ou reconstruída mediante leis necessitantes, ainda que possa ser decifrada desde que existam orientações e leis inteligíveis iluminadoras dos acontecimentos sem os necessitar.

Tendo o tempo da história humana um significado e direcção interiores, cada ciclo da história humana apresenta uma natureza inteligível e portanto, particulares características fundamentais. Os ciclos aparecem qualificados de acordo com o esquema dos estados sociais do mundo medieval e caracterizados como: heróico ou dos reis (a ideia de Quinto Império representa-se exemplarmente como contacto com o centro invisível do mundo, no portal voltado ao sul, da igreja de Santa Maria de Belém); do clero (começado com D. Manuel e definido com D. João III e o estabelecimento da Inquisição, a ideia de Quinto Império aparece pela voz de Camões, D. João de Castro e António Vieira, como o domínio da Cristandade sobre todo o universo, domínio que já não atende àquela relação com o centro. E porquê? Pela cisão de dois organismos que se complementavam: o rito antigo e transcendente comum aos povos da Península – árabes, cristãos e judeus – e o rito que adaptou pela religião, essa sabedoria às condições específicas de um povo); do povo (iniciado com o Marquês de Pombal e terminando com a implantação da República, a ideia de Quinto Império conservada ainda de algum modo na Maçonaria, configura-se no socialismo, verdade refractada e, portanto, mal reflectida, imaginado sob a forma de um círculo envolvente sem. centro); a que sucede um período plebeu de subordinação à categoria económica de todas as categorias mentais, período de indeterminação e afastamento do centro que é motor do nosso corpo. Da identidade do princípio e do fim ou enteléquia infere António Telmo, a necessidade de representação do movimento histórico de Portugal, desenvolvido e envolvido serpentinamente por ciclos, comandados pela ideia de comunicação do Oriente e do Ocidente, a ideia de Quinto Império, que enquanto ideia pura só se poderia realizar mediante um contacto com o invisível centro do mundo.

 

O Corpo e o Mundo

 

Organiza António Telmo a sua reflexão sobre o corpo chamando a atenção para o carro e a relação que com ele estabelecem muitos seres humanos. Serve-lhe tal reflexão de pretexto para, ao caracterizar a actual insensibilidade humana, tornar patente as múltiplices quedas que o corpo humano padeceu: da queda de um corpo de luz – por causa da transgressão de Adão – num corpo de carne e da queda deste, num corpo de metal fabricado pela tecnologia proliferadora de queda atrás de queda.

Pode então ser como afirma, que a redenção consista na restituição ao homem de um corpo glorioso – espécie de veículo de luz, de carro da alma nos mundos invisíveis – sem abandono do corpo físico e realizando o prodígio de não saindo do mesmo lugar, estar tão realmente noutro como no primeiro. A doutrina do Carro como Trono de Deus – recebida da visão de Ezequiel – é para António Telmo a imutável matriz sem a qual impossível seria qualquer outra ideia. O aviso de Maimónides no Guia dos Perplexos, não pode deixar de ecoar nas nossas almas: só deve ser esta doutrina transmitida a quem pela idade, matrimónio e pensamento se tenha previamente purificado. É pois uma doutrina para gente madura. Não se pode pôr um carro nas mãos de uma criança!

Se na visão de Ezequiel está a matriz, no Fedro de Platão encontra-se uma possível compreensão dessa matriz dada na imagem que compara a alma a um carro constituída por uma armação de ferros e madeira assente sobre rodas, puxado por cavalos e guiado por um auriga. Forma-se assim o seguinte quadro de relações:


 

Cada um deles constitui um cérebro, uma alma ou um centro, a que António Telmo adiciona um outro factor, o passageiro, que diz ao Auriga, ao condutor, como deve conduzir, qual o caminho que deve tomar, qual o destino da viagem. Este pode não conhecer a região para onde o mandam, mas porque quer ganhar a vida dispõe-se ao risco do desconhecido, aos caminhos difíceis, com desvios, perfeitamente atendendo às indicações do passageiro e não menos perfeitamente dominando o carro. E o carro estará em condições de fazer a viagem?

Tendo sido o homem feito para viajar, tudo o que venha a introduzir nessa viagem qualquer alteração inabitual produz alteração na convivência das três almas. Para António Telmo, como para nós, na maioria dos homens tudo deriva ordenado de baixo para cima, que o mesmo é dizer, tudo deriva da vida instintiva que forma a carne: o cio e a fome. Mas, e repetimos, o homem fez-se para viajar, que o mesmo é dizer, para se abrir às emanações divinas, ordenando-se de cima, do centro, do profundo, para o baixo, a periferia, o superficial. A sua viagem faz-se numa busca da íntima relação dos três centros.

O mundo revela-se em sucessivos graus de profundidade. Ora o percebemos pelo corpo, ora pela alma, ora pelo espírito. Na superficialidade com que tantas vezes vivemos os actos correntes da nossa vida, pouco nos esforçamos para adquirir consciência de nós mesmos, deixando-nos ir no desequilibraste automatismo das actividades. Como conceber então a intimidade daqueles três centros? António Telmo dá-nos dela o esquema geométrico:

 

 

A relação íntima dos três centros, faz com que todas as circunferências se toquem no centro por onde igualmente passam, de onde a harmonização das diversas correntes. O círculo central, o dominante é o relativo à vida sensitiva, não o superior (relativo à vida intelectiva), nem o inferior (relativo à vida instintiva). É pois no plano das emoções que se opera a transmutação do homem num novo homem, com um novo sentimento, uma nova emoção.

A mesma percepção vibrando em formas diferentes, mas em simultâneo nas três almas, permite compreender porque situa Aristóteles a inteligência no coração. É Camões que afirma residir no coração o «ponto fundo» onde convergem todas as percepções. A iniciação pelo amor, a potência divina que tudo rege é o que permite chegar à vida nova. A eclosão desta só ocorre quando a potência vegetativa, dominante em todos os homens não iniciados, for conhecida pelo intelecto, potenciando o que une e separa e separando o que está unido. É a imaginação que promove tal potenciação e separação. Por virtude da imaginação, a energia amorosa despertada pelo poder da feminilidade –  manifestação carnal do Amor – da mulher amada, é conduzida não para o inferior plano da vida vegetativa – plano do fogo que arde, vendo-se e portanto extinguindo-se – mas para o superior plano da vivência da imagem feminina por nós eleita. O amor, lume vivo causador de dor, que queima e não consome, elevado no centro da vida é como uma chaga (equivalente a chakra) - simbolismo fundamental da Pátria - um fogo que arde sem se ver. Conhece o homem com todo o seu ser, pelo que a razão não deve proceder sem a experiência da alma. Na intimidade do encontro dessa razão com essa experiência, o Homem descobre-se. Na intimidade da solidão que essa descoberta constitui, descobre-se o Homem como ilha animada pelo secreto Amor.

A Ilha do Amor coloca-nos em movimento de regresso à natureza, como contacto com aquilo que a natureza é, o lado oculto, as sombras (segundo Pascoaes), imagem secreta das coisas e dos seres. Como? Pela invocação da ideia, pela elaboração dos nomes próprios das coisas, dos nomes que as significam enquanto irrepetíveis, iluminando-as por dentro.

A Ilha do Amor é uma imagem do Centro do Mundo, uma imagem de que está dependente o imenso mundo sublunar quanto ao seu movimento, forma e vida. A visão da «unida esfera», causa em Vasco da Gama, espanto e desejo – forças motoras do conhecimento integral – e parece conferir a quem a vê o dom profético. Nesse microcosmos feito de elementos subtis, residindo em si próprio numa imóvel paz profunda, reflecte-se especulativamente o macrocosmos. Se no coração reside o motor imóvel, o «ponto fundo» onde convergem todas as percepções e todas as potências de vida e de intelecto, é ele a Ilha do Amor. A iniciação não é pois mística ou extática, mas realiza-se e passa-se no corpo, no fim de uma viagem de iniciação, realizadora de um conhecimento integral porque transfigurador do próprio ser. Regressado ao Paraíso o homem torna-se imagem do Arquétipo que o criou. O Simpósio de Platão completa-se com o ensinamento do Livro do Céu.

Atingida a maioridade, o Homem dá dela expressão na vida política e social.

 

Do acesso à Maioridade Política e Social

 

A ideia de maioridade política e social aparece em António Telmo garantida e sustentada na reflexão que faz da Monarquia de Dante. A ideia de uma Monarquia Universal, onde todos os homens participariam na unidade do género humano, estaria ordenada ao fim – próprio do género humano – de tornar em acto a potência de intelecção. Unidade do género humano, não significa igualdade do género humano, homogeneização e indiferenciação geral das matérias. A aceitar uma tal identificação, estaríamos a reduzir as diferenças ao ser genérico. Sendo o homem, na concepção dantesca que Telmo aceita, um ser duplo, dividido entre uma natureza ou plano corruptível pelo tempo e uma natureza ou plano incorruptível ao mesmo, a transformação da potência intelectiva em acto intelectivo, não se traduz numa anulação, mas numa integração das diferenças, base da conversação dos espíritos. Integração do inferior pelo superior, integração final do espírito num centro único do ser.

Um tal processo decorre do exercício do maior dom concedido por Deus à natureza humana: o dom da liberdade. Se livre é o que existe por si mesmo e não por outro e se o Monarca é o que melhor pode zelar pela liberdade do povo, então é entre todos livre aquele que está submetido e atraído pelo melhor, o Monarca representante e símbolo máximo da comunidade. Símbolo máximo da terra dos viventes, vencida que foi a divisão e a morte da terra dos homens. E como identificar o Monarca? Resultado de uma epifania, envolto em poder e majestade, atrairá para a sua volta os melhores, aqueles que não se demitindo de pensar, alimentaram o intelecto superior com razões irrefragáveis, o intelecto inferior com experiência e os sentimentos com a doce persuasão divina, como afirma Dante. Quem será ele? Na concepção de Dante, que também é a de António Telmo, será o Príncipe da Paz. A maioridade política e social do povo patenteia-se na Paz, simbolicamente correspondente ao centro do Claustro, fim para que tendem os quatro reinos da natureza (correspondentes a cada um dos lados do Claustro) e fim para que tende a incontável humanidade.

 

Tomar Consciência

 

A vida de cada homem não é um episódio inconsequente apenas susceptível de prolongamento pela espécie. A consciência que tem do absurdo que a morte representa, implica um tríplice esforço: o de se pensar como consciência que se continua e perdura num espaço e tempo qualitativos; o de reactivar o sentimento metafísico da natureza; o de encontrar pontos firmes susceptíveis de suportarem a edificação de uma nova ordem espiritual.

Se a iniciação consiste na conquista pelo indivíduo de um estado de invulnerabilidade face à morte, como aceder à possibilidade de uma tal “iluminação”, quando tantas barreiras no ensino, nas relações políticas, no trabalho, na relação com a natureza, se levantam à mesma? Ficar firme na solidão de si mesmo, constituindo-se como um ponto isolado é o caminho possível para que a esperança cifrada nos Jerónimos possa de novo bater no coração de cada português.

O sentimento do centro do mundo é para António Telmo a saudade. Aceitando o movimento serpentino do tempo, que se dobra e apoia em cada ciclo sobre um arquétipo, no centro que o define cruzam-se assim, passado e futuro, invisível e visível, desejo e lembrança, presença e ausência. O regresso ao Paraíso, só é então possível – como defendeu Pascoaes – pela iniciação poética pela saudade.

 

Venha a nós o Vosso Reino

 

O Reino de Deus, está próximo no espaço e no tempo, porque nenhum abismo com sua força ou maquinação de degradação, consegue afastar a luz iluminadora que assiste ao homem. Essa luz iluminadora patenteia-se no portal sul dos Jerónimos, centro espiritual significativo de um contacto com o centro do mundo, lugar da manifestação divina, sempre representada como Luz: no alto, a imagem do arcanjo São Miguel, arcanjo do Juízo Final, um dos intermediários celestes que em todas as passagens da Escritura onde aparece é referido à glória da Shekinah; no centro a imagem de Santa Maria com O Menino nos braços e com um vaso na mão onde recolhe os três dons dos Reis Magos ou príncipes de Centro do Mundo: o oiro da realeza, o incenso do sacerdócio, a mirra da mestria espiritual; na base da linha vertical que passa pelo arcanjo e pela Senhora, está a imagem do verdadeiro guardião do Templo, o Infante D. Henrique – responsável pela construção da ermida de Santa Maria de Belém – com três cruzes da Ordem de Cristo verticalmente dispostas sobre o seu peito, olhando as naus na rota para o Sul.

Referimos atrás serem os Jerónimos, um centro espiritual significativo de um contacto com o centro do mundo, lugar da manifestação divina, sempre representada como Luz. António Telmo apresenta-nos o Claustro do mosteiro segundo uma tripla perspectiva: como mnemónica da Viagem; como horóscopo do nosso destino transcendente; como imagem arquitectural, símbolo em pedra do Carro do Deus do Universo e seu trono. Do mesmo modo que o corpo nos leva de lugar a lugar, mas somos nós, os por ele levados, quem o levamos, também nós levados de lugar em lugar pelo Claustro, não seremos nós, os levados, quem o leva?

Para percebermos a profundidade de uma tal afirmação, há que primeiro que tudo, dar a chave interpretativa da série dos vinte medalhões (cinco em cada lado do Claustro), combinada com os elementos contidos nas oito figurações (duas em cada canto) onde se combinam momentos fundamentais do Evangelho. Essa chave é um livro. Encaminhemo-nos para o Claustro dos Jerónimos e aí, acompanhando as indicações de António Telmo façamos a viagem. Um dia basta? Quanto é o tempo que dura o deslumbramento das teses apresentadas e da reflexão que as firme no nosso peito?

 

Um Sonho

 

Há uns anos atrás fui convidado para realizar uma conferência numa Universidade. O tema, se ainda bem me lembro era algo como “A Democracia no Pensamento Filosófico Português”. Tinha como companheiro de mesa um amigo e um mestre admirado, então, como agora, o Dr. Orlando Vitorino.  Se alguém de Democracia me esperava ouvir falar, breve se desenganou. Estava ali para falar de um sonho... um sonho a que atribuíra sentido suficiente para o considerar como significativo e esclarecedor do tema proposto. E também eu me desenganei. Sustentar uma reflexão com base na matéria de que os sonhos são feitos é algo que não se revela a desconhecidos e nos faz conhecer a ironia de alguns que julgávamos conhecer.

O que agora, à distância destes anos passarei a descrever é nada mais do que o esquema desse sonho e a interpretação que dele fiz, socorrendo-me de fontes como Sampaio Bruno, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro e António Telmo. Mas cabe a questão: porquê fazê-lo agora? É que à medida que redigia este texto, que lia, relia e trelia a História Secreta de Portugal de António Telmo, muitos dos tópicos sujeitos à sua hermenêutica, revelavam-se-me como susceptíveis de me permitirem projectar uma outra luz sobre a matéria do sonho que me visitara. A descrição e interpretação do sonho que então fiz, só encontraria pois o seu lugar adequado, aqui, no ambiente suscitador de convivialidade que caracteriza num dos seus rostos o pensamento de António Telmo.

Talvez agora me encontre habilitado para uma melhor hermenêutica do sonho, mas perdoem-me os desconhecidos que ainda têm paciência para continuar a ler este escrito, não o farei. E porquê? Por duas razões. A primeira delas é que a matéria desse sonho em contacto com as categorias do pensamento de António Telmo, permite-me adivinhar um movimento, no secreto centro da minha vida. E o que tão secretamente vive proteje-se na segunda das razões: não cair no engano de novamente me desenganar.

O sonho li-o do princípio para o fim e do fim para o princípio. Interpretei-o como uma viagem. Os momentos significativos, se é que no “espaço/tempo” do sonho se pode falar de momentos, são quatro:

 

III

Vi uma baía de mar calmo

I                ***               II      

Carro      Nevoeiro    A pé e só

 

 

IV

Vi um templo cristão

tendo sobre o seu tecto e com o tamanho do mesmo, uma pomba imensa, com um olhar e

sorriso humanos

 

Importa antes de mais esclarecer alguns pontos. Como já referi trata-se de uma viagem, com um primeiro movimento de ida. Depois, no Carro onde viajava era acompanhado por três sombras de forma humana, arredondadas e volumosas, seguindo duas nos bancos da frente e a terceira atrás, comigo, do meu lado esquerdo. À sombra que conduzia, denominei “Pai” no íntimo da voz do meu coração. O Carro em movimento e dentro dele imperando o silêncio. Subitamente no caminho seguido surge forte nevoeiro. O Carro despista-se e quando dele saio encontro-me a sós. Uma vez refeito da excessiva velocidade, do despiste e da solidão em que me encontrava, caminhei aproximando-me de uma baía de mar calmo que sabia situada numa ilha. Foi aí que vi, após voltar o rosto em sentido contrário, o templo com uma cruz de braços iguais voltada a Este e a pomba voltada a Oeste, com o seu olhar e sorriso humanos, como que saudando quem entrava no templo.

O sonho lido do princípio para o fim, foi sujeito ao primeiro nível de abordagem, a abordagem pelo espírito dos elementos: primeiro a TERRA. Porque o Carro se movia sobre ela, não me detendo eu na visão das suas paisagens e das suas raízes, não a considerei como elemento de repouso ou detenção de movimento. O Carro aparentava estar possuído na sua excessiva velocidade, por um espírito voluntarista de domínio, de conquista, de repúdio ou desconfiança da imaginação e da transcendência, susceptível de manifestação nos absolutismos da razão prática, das ideologias e totalitarismos dogmáticos. Agora sei quem guiava tal Carro...; a ÁGUA surge primeiro com o nevoeiro, primeiro com um sentido passivo, como que de uma degradação mental se tratando. Pelo menos assim interpretam o nevoeiro Sampaio Bruno e Fernando Pessoa. Sofri um acidente após entrar nele e perdi os meus companheiros de viagem. Mas surge também com outra face: seja como sede de Sofia (segundo Álvaro Ribeiro), seja como caos cintilante, tradutor da expectação da alma antes do surgir do Sol (segundo António Telmo). Em ambos os casos do que se trata é de uma inquieta fluidez, carente de aventura o que se confirma na visão. da baía de mar calmo, de mar propício à partida; o FOGO, vislumbrei-o na cruz de braços iguais (como a grega ou a templária), símbolo do espírito da verdade – que queima como fogo e que como ele purifica – símbolo também da sabedoria, da revelação divina, do pensamento aberto e transcendente; O AR, surge na Pomba que nele se sustém, nele respira, sobe e voa em musical e ritmado movimento inspirado pelo olhar e sorriso que ela nos dá. E tudo se passa numa Ilha que em si sublima a vivência de todos os elementos. Como nos diz António Telmo, a ilha é um absoluto, representa o Universo e tal como a estrela, cria no infinito a visibilidade pela sua luz. Cada um de nós pode ser essa ilha, sem os egoísmos.

Feita a primeira viagem há que fazer a viagem de regresso e ler o sonho do fim para o princípio. Partindo da afirmação de Fernando Pessoa de que “As nações todas são mistérios / cada uma é todo o mundo a sós”, a pergunta a fazer é: qual a razão de ser de Portugal? Pergunta feita no Templo com a Pomba, sobranceiro à baía de mar calino. A razão de ser de Portugal é teleológica e escatológica, é um diálogo com o divino. A Filosofia da História de Portugal firma-se numa matriz paracletista e espiritualista, claramente negadora do materialismo, do positivismo e do utilitarismo. Enquanto entidade espiritual, Portugal é uma Pátria. Num tempo de patriotismo sentimental, a mensagem recebida no Templo manda-nos fazer a arqueologia da tradição portuguesa. Nos Lusíadas, enquanto livro sagrado da nossa Pátria encontra-se uma revelação recebida por tradição. Qual é ela? Que o galardão de Vasco da Gama é a Harmonia do Mundo; que a obra a realizar (o V Império) é mais do que a do povo português; que a missão dos portugueses não é na terra, mas sim no mar, superando a sua condição telúrica; que a essência da Europa é Portugal, reunião da alvorada – Oriente – e do crepúsculo – Ocidente.

O movimento do Homem português dá-se depois na solidão do andarilho caminhante. Pelas estradas do mundo, dirigindo-se ao Rei, à Aristocracia e ao Povo, pede-lhes que se regenerem pela filosofia. E mais, dá-lhes as causas da crise que também é a sua: causas anti-filosóficas (ataque à cultura aristotélica; oposição à filosofia pela cultura e o ensino; descrédito da filosofia perante a literatura); causas anti-pedagógicas, onde se joga a questão democrática (a didáctica fixista; a preocupação mais com a instrução do que com a educação; a ordenação dos estudos sem curso de ensino, relação de meios a fins ou relacionação espiritual; o ensino elaborado por imitação do estrangeiro); causas anti-políticas (o exclusivismo das ciências e técnicas que oblitera o significado da doutrina que ao Estado cumpre realizar fins espirituais; a formação na opinião pública de uma falsa modéstia que a predispõe a aceitar o preceptorado de um Estado forte; a Constituição, vista mais como um código do que como uma poética representativa da alma pátria).

O nevoeiro surge aqui como uma poiesis transfiguradora, como uma arte de fazer, edificar pela palavra e magia do verso, do ritmo.

Por fim o Carro, surge como o espaço da prece ao divino, como símbolo da retoma da grande viagem cuja condição está em atravessar as portas do silêncio, invocando as sombras.

Que se sugere entretanto? A supressão das organizações de cultura dirigida; dar maior margem de ser pessoa e menor à de ser cidadão; a monarquia anárquica ademocrática, em que cada português possa proclamar o Rei que entender; decretar a liberdade de pensamento em função da autonomia de Portugal, e esta em função da salvação do Homem.

Aí está o sonho... agora calo-me!

 

Conclusão

 

Talvez eu me tenha limitado a papaguear o que li. Mas procurei fazê-lo como se fosse um de entre os trovadores – ousada comparação – esses que automaticamente repetiam as palavras do segredo, sempre do mesmo modo e sempre as mesmas. Repetindo procurei fixar imagens, conceitos, ideias que em procissão ou peregrinação levava e levo comigo para onde quer que vá, como mnemónica de um escudo, como força de uma espada, como palavras de uma oração rezada numa viagem de demanda de luz. É momento de o dizer:

O que me pescou para o pensamento de António Telmo foi a constância no seu vivo falar da palavra LUZ.

Bem sei que não tive a intenção de interpretar, mas que incorri no mesmo erro de quem o faz, que é dizer o mesmo por palavras mais pobres. Bem sei que não fiz hermenêutica, ainda que conscientemente saiba que é de Hermes que tudo parece depender.

No dia em que finalmente perdido o receio de errar e convencido da necessidade da errância, me aprestava para dar forma, conteúdo e finalidade a este texto, quis o destino que um galo me visitasse não certamente para presidir à celebração de um mistério iniciático, mas para marcar com a sua presença o mistério de um início. Não no alto de um campanário ou no alto de uma coluna ele me apareceu, mas postado sobre um braço de uma palmeira, mirando a porta do meu quarto, num lugar chamado Ponta do Sol, voltado a Sul, numa ilha de nome Madeira, rodeada pelo Oceano Atlântico.

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* Publicado originalmente em António Telmo e as Gerações Novas, Lisboa, Hugin, 2003, pp. 35-54.