VOZ PASSIVA. 29

21-09-2014 12:00

Os Cadernos de Filosofia Extravagante foram uma criação de António Telmo, que aliás escreveu o texto de apresentação do seu primeiro número, lançado em Março de 2009, na Biblioteca Municipal de Sesimbra. Desta publicação saíram, até ao presente, quatro volumes: Universalidades (Serra d’Ossa, 2009); Singularidades (Serra d’Ossa, 2010); António Telmo (Zéfiro, 2011); e Interiores (Zéfiro, 2012).

O quinto volume, Confluências, que tinha a sua data de lançamento designada para 30 de Novembro de 2013, viu a respectiva pré-maqueta ser entregue, para paginação, ao editor, há quase um ano, em 17 de Outubro. Três dias antes daquela data, a entidade responsável pela edição dos Cadernos anunciava o cancelamento da respectiva sessão, alegando, para o efeito, “atrasos na produção” do volume. O facto mereceu da parte de três membros do Projecto António Telmo. Vida e Obra os esclarecimentos públicos que, em nome da verdade, e perante as evidências, então se impunham, demonstrando estes, nomeadamente, que tais atrasos de modo algum poderiam ser imputados quer ao principal responsável pela coordenação editorial dos Cadernos, quer à editora Zéfiro.  

De lá para cá, quase dez meses volvidos, nada mais foi publicamente anunciado quanto à edição deste quinto volume de uma publicação que se destina a perpetuar a memória de António Telmo e a promover a difusão da Filosofia Portuguesa. O tempo, esse grande mestre, encarregou-se enfim de esclarecer o que, porventura, tivesse ficado ainda pouco claro.

Fiel aos propósitos que o regem, o Projecto António Telmo. Vida e Obra publica hoje um artigo, da autoria de António Carlos Carvalho, sobre Meyrink e o Golem, destinado ao quinto volume dos Cadernos, onde a importância do escritor austríaco na obra e no pensamento de António Telmo é bem visível. Outros escritos sobre António Telmo de membros do nosso projecto se seguirão, sempre na secção VOZ PASSIVA. É o caso de um ensaio de Eduardo Aroso, que aqui será publicado na próxima semana. 

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Meyrink e «O Golem»

António Carlos Carvalho

[Gustav Meyrink]

 

«Prefiro a todos os livros que nos chegam do estrangeiro os de Gustav Meyrink, um romancista quase desconhecido que Jorge Luis Borges traduziu para a Argentina e que constitui a melhor versão actual de H. Corneille-Agrippa, autor de um famoso tratado de filosofia oculta escrito no século XVI» -- excerto de uma entrevista de António Telmo publicada em «Teoremas de Filosofia», nº 3, 2001 e depois reproduzida em «O Mistério de Portugal na História e n’Os Lusíadas».

Quando li esta declaração do nosso Amigo sorri interiormente, num sorriso de cumplicidade. Afinal não era só eu a ter um «fraquinho» por Meyrink e pelos seus estranhos textos. Além de Borges, Telmo confessava assim o seu fascínio por aquele autor. Fascínio, no mínimo, insólito para quase todos, porque poucos conhecem, ainda hoje, Meyrink.

E isso apesar de estarem publicadas por cá estas obras dele: «O Golem» (Vega, 1990?), «A Noite de Walpurgis» (Estampa, 1991), «O Cardeal Napellus» (Presença, 2007) «Babinski: o Salteador de Praga» (Imprensa Canalha, 2007) e também a sua introdução ao «Tratado da Pedra Filosofal», de Tomás de Aquino (Fim de Século, 2000).

Lá fora estão publicadas «Na Fronteira do Além», «História do Alquimista», «O Dominicano Branco», «O Rosto Verde» e «O Anjo à Janela do Ocidente». 

Vejamos então alguns traços biográficos deste autor. Embora seja geralmente considerado um escritor de Praga, a verdade é que nasceu em Viena, em 1868 e veio a morrer em Starnberg, Baviera, em 1932. Era filho ilegítimo de um aristocrata, o barão Karl von Hemmingen, e de uma actriz judia, Maria Meyer (Meyrink é nome literário que adoptou).

Entre 1882 e 1902, foi banqueiro em Praga mas em 1891, na sequência de uma vida dissoluta, sofreu um colapso nervoso e esteve à beira do suicídio -- mais tarde contou que foi salvo por um opúsculo que lhe meteram por baixo da porta e que falava sobre espiritismo, ocultismo, magia. Em vez de se matar, decidiu dedicar-se a estudar esses mundos desconhecidos, com uma imensa ânsia de saber, uma sede insaciável por tudo o que ultrapassava os limites da existência comum.

Estudou também o Yoga e as doutrinas orientais, integrou-se em grupos ocultistas e espíritas, contactou sociedades secretas, praticou a alquimia. Corriam rumores de que dirigia os assuntos do banco de acordo com a orientação de um espírito-guia…

Em 1902 acabou por se retirar do mundo das finanças, dedicando-se em exclusivo às suas pesquisas espirituais e à escrita como ficcionista. A sua obra (cinco romances e quatro colectâneas de contos) será consagrada a revelar alegoricamente, sob a forma da chamada «literatura fantástica», as vias e os meios para se obter um estado superior de consciência. Meyrink acreditava que não somos um eu individual e autónomo mas sim a manifestação de um deus ou demónio, um demiurgo, preexistente e eterno. Dizia ter visões que o levaram a pensar em imagens e não em palavras -- «esse poder da visão foi a própria causa que me fez tornar escritor».

Para ele, a vida normal era sono, só o homem desperto, acordado, graças à ciência esotérica, conseguia romper o jugo da animalidade e fazer ascender a sua consciência aos planos superiores da existência.

Todos esses temas atravessam as suas obras e transformam-nas em universos estranhos, por vezes assustadores -- mas perfeitamente de acordo com a Praga do seu tempo enquanto herdeira de séculos em que gozou da fama de cidade dos alquimistas, dos feiticeiros, dos pesquisadores das ciências ocultas.

No mínimo, Praga era então uma cidade estranha, onde tudo poderia acontecer e onde se respirava uma espécie de antevisão de tempos futuros terríveis. Meyrink e Kafka viveram em Praga na mesma época mas não chegaram a conhecer-se, embora Kafka reconhecesse o talento de Meyrink ao conseguir reproduzir brilhantemente as atmosferas de certas partes da cidade. Em contrapartida, Max Brod, o grande amigo de Kafka, conheceu Meyrink e admirou-o, embora estranhasse o mundo em que ele vivia: tinha como amigos um coleccionador de moscas mortas e um vendedor de livros raros que só os vendia com a aprovação de um corvo cujas asas já tinham muito poucas penas…         

[Gustav Meyrink na juventude]

 

Em 1904, Meyrink regressou a Viena mas por pouco tempo: os seus escritos anti-militaristas obrigaram-no a exilar-se na Suíça em 1905-6 e depois instalou-se na Baviera. Traduziu as obras de Dickens enquanto escrevia «O Golem», o seu primeiro romance, publicado em 1915, que se tornou logo num êxito -- chegou a ser adaptado duas vezes para cinema por Paul Wegener e uma outra por Julien Duvivier.

Meyrink escreveu o que podemos chamar uma recriação muito pessoal da lenda do Golem de Praga -- a qual, aliás, tem diversas versões e recupera lendas muito mais antigas, que nada têm a ver com Praga mas utilizam o tema do Golem.

Sintetizando muito (Moshe Idel escreveu um grosso volume sobre o Golem, que vale a pena ler atentamente), podemos dizer que a lenda do Golem de Praga convoca a figura exemplar e extraordinária do rabi Judah Loew ben Bezalel (o chamado Maharal de Praga), do século XVI, autor de textos fundamentais sobre o pensamento judaico e grande defensor da sua comunidade perante os ataques recorrentes de anti-semitismo que ali ocorriam. Então reza a lenda que, num período de maior risco para a vida da comunidade, o rabi teria recorrido a uma medida extrema: criar um ser gigantesco, dotado de enorme força -- mas incapaz de falar --, feito a partir do barro e animado graças a um antigo ritual kabbalístico e ao poder do Nome de Deus (ou, noutra versão, da palavra «verdade») inscrito na sua testa. O Golem (palavra que só aparece uma vez, no Salmo 139, 16), e que significa «embrião», matéria-prima informe) executa a sua missão, defende os judeus do ghetto de Praga e o rabi transforma-o novamente em barro, apagando as letras do nome. Noutras versões, o Golem deixa de obedecer às ordens do rabi, faz inúmeros desmandos e o rabi é então obrigado a destruí-lo, ficando o seu bairro guardado no sótão da sinagoga Velha-Nova de Praga.

Na recriação de Meyrink, o Golem continua a manifestar-se periodicamente de 33 em 33 anos, num quarto sem portas e os traços do Golem são os do próprio protagonista do romance…

Claro que o Maharal nunca teve nada a ver com esta história mas a lenda associou-o irremediavelmente a esta narrativa duradoura que ultrapassou as fronteiras do ghetto e da própria cidade.

Obviamente, o essencial da lenda -- uma história exemplar com múltiplas leituras possíveis -- tem a ver com a criação que o Homem pode e deve fazer e quais os seus limites. Enquanto co-criadores, somos chamados a colaborar na obra da Criação do Mundo que Deus deixou voluntariamente inacabada para que sejamos nós a assumir essa tarefa. Mas até onde podemos ir? Ou será que tudo nos é permitido?

Sabemos bem das reservas que António Telmo colocava relativamente ao chamado mundo da cibernética e dos computadores. Assim, será interessante saber que Gershom Scholem, um estudioso que Telmo tanto admirava, quando nos anos 60 soube que o Instituto Weizmann de Rehovot tinha criado o primeiro computador de Israel, sugeriu que lhe fosse dado o nome de Golem Alef, isto é, Golem nº 1... Depois, no discurso de inauguração do computador, em 17 de Junho de 1965, Scholem afirmou que o Golem de Rehovot poderia muito ser a réplica do Golem de Praga e que, aliás, «o novo Golem parece ser capaz de aprender e de se aperfeiçoar, o que revela a superioridade dos Kabbalistas modernos.» O discurso do velho sábio estava carregado de ironia e terminava com uma recomendação ao Golem e ao seu criador, a de crescerem em paz e não destruírem o mundo…

Muito mais tarde, em 2000, Charles Mopsik viria a comentar: «O Golem é menos o paradigma da máquina humanizada, da matéria tornada animada e programada, do que o símbolo do desconhecimento do homem acerca das suas próprias intenções e dos seus verdadeiros desejos», «não sabemos o que queremos e é por causa disso que programamos imperfeitamente os Golem que criamos constantemente».

(Nesta altura em que os computadores parecem querer tomar conta de tudo, e em que os laboratórios modernos prosseguem inexoravelmente a tarefa de criar robôs cada vez mais parecidos connosco, talvez seja também conveniente lembrar que a ideia do robô nasceu igualmente em Praga, com o escritor checo Karel Capek e a sua comédia utópica «R.U.R.» em 1920 -- outro contemporâneo de Meyrink e de Kafka, que um dia confessou: «Enquanto escrevia, fui tomado por um medo terrível, queria prevenir contra a produção em massa e de repente a angústia tomou conta de mim e compreendi que isso se arriscava a tornar-se realidade, que o meu aviso não serviria para nada, que tal como eu, enquanto autor, conduzira as forças desses engenhos obtusos aonde queria, alguém um dia poderia erguer esse estúpido homem-massa contra o mundo e contra Deus.») 

Mas voltemos a «O Golem» de Gustav Meyrink, em que a lenda aparece referida em pouco mais de uma dezena de páginas, a par de alusões ao «Zohar», à Kabbalah, ao poder das letras, ao Talmude, ao Messias, ao Tarot e à Luz -- título, aliás, do capítulo 10 do romance.

Jorge Luis Borges contou que os seus estudos de Kabbalah tiveram como ponto de partida a leitura de «O Golem» de Meyrink e uma longa conversa com G. Scholem. Anos depois dedicou-lhe um poema, precisamente intitulado «O Golem».

No caso de António Telmo, é fácil perceber as afinidades que encontrou no universo de Meyrink e, nomeadamente, em «O Golem»: também os seus contos são histórias simbólicas, irónicas, portadoras de mensagens enigmáticas; as visões iluminam-no; as cartas de jogar estão carregadas de significado e o jogo é sempre mais do que um simples jogo; o Tarot é um universo simbólico fundamental para ambos.

E depois, não o esqueçamos, temos as afinidades entre textos de Meyrink e ensinamentos de Álvaro Ribeiro, o mestre de Telmo:

Em «O Golem», cap. 10 «Luz», p. 119, podemos ler:

«-- Já que estamos a falar de cartas, senhor Zwakh, costuma jogar o Tarot?

-- Claro. Desde pequeno…

-- Nesse caso, espanta-me que proteste por causa de um livro que contém toda a  Kabala, quando o teve nas mãos tantas vezes.

-- Eu? Nas mãos? Eu? -- Zwakh agarrou-se à cabeça.

-- Sim, você! Nunca lhe ocorreu que o baralho de Tarot possui 22 arcanos -- tantos como as letras do alfabeto hebraico? (…) Há algo que talvez não saiba: é que palavra Tarot possui o mesmo significado que o hebraico Torá, que quer dizer “a Lei“».

E agora consultemos o vol. III dos «Dispersos e Inéditos» de Álvaro Ribeiro, texto «Kabala», págs. 485 a 492, fragmento de um livro talvez a fazer. Lemos:

«A cabala é a matemática das letras. Sua prática provém da mais alta Antiguidade, pois é inerente à arte da escrita, que a engloba. (…) A operação fundamental da cabala é a permutação das letras na palavra inteira, o anagrama, já que grama significa letra, donde gramática. O processo mais simples é o de inverter a ordem das letras e de ler a palavra em sentido inverso. Simples, sérios e famosos exemplos desta espécie foram as permutações de AVE para EVA, de AMOR para Roma. Na cabala hebraica é também célebre a permutação ROTA -- TORÁ -- TARÓ. (…) A cabala hebraica completa-se com o Taró que, pelo seu carácter de jogo, simboliza o tempo, o movimento e a história. Cada uma das 22 letras do “alfabeto” hebraico é tida por um símbolo, concretizado pelo desenho, que aparece na ordem benéfica ou maléfica dos acontecimentos humanos. É próprio de cada sorte servir de sortilégio, e por isso os jogos podem ser interpretados com função jocosa, profética e divinatória, segundo os costumes dos povos».

Eis o grande jogo das afinidades -- das letras, dos pensamentos, dos homens. Pelo menos, de alguns.

 (Apontamento final: um habitante de Praga que sobreviveu ao genocídio nazi conta que, quando os alemães ocuparam a cidade, decidiram destruir a sinagoga onde supostamente a massa novamente informe do Golem teria sido guardada e que para eles representava a memória de uma «raça» inferior. Estavam prestes a executar essa tarefa quando subitamente, no silêncio da sinagoga, se ouviram os passos de um gigante que caminhava sobre o telhado. Então viram a sombra de uma mão gigantesca que entrava pela janela e se projectava no soalho… Aterrorizados, largaram as ferramentas e fugiram dali em pânico…)