VOZ PASSIVA. 44

10-03-2015 17:13

Na edição n.º 458 do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, que saiu no passado mês de Fevereiro, Pedro Martins, na sua habitual coluna, deixa o convite para as Tardes Télmicas 2015...

Convite

Pedro Martins

 

Seríamos meia-dúzia à porta da Biblioteca Municipal de Sesimbra, ao cimo da breve escadaria. Foi no último sábado de Outubro. A Biblioteca tinha acabado de encerrar e nós saíamos de mais uma Tarde Télmica, sessão onde António Telmo, Agostinho da Silva e Rafael Monteiro haviam sido exaltados. Formávamos uma pequena multidão. Pelo menos, deve ter sido assim que para nós olhou a rapariga que, naquele momento, se acercou do grupo. Forasteira, teria cerca de 20 anos e vinha ao fresco, vaporosa, balnear, esperançada na réstia de um Verão a destempo face à iminência da hora em mudança.

Quis saber o que ali se iria passar. Dissemos-lhe que já se tinha passado. Alguém lhe terá então falado da homenagem prestada a Agostinho, do lançamento do livro com as suas cartas para António Telmo. E a palavra filosofia, naturalmente, veio à baila. A jovem não escondeu o seu desapontamento perante o quadro: – Filosofia??!! – quase protestou, envolvendo o desdém da pergunta num esgar de desconsolo. Esperaria talvez poder assistir à projecção de um filme, suplemento prazenteiro à inopinada vilegiatura, e deparara-se afinal com um bando plúmbeo de monos dissecadores de alfarrábios. Em suma: uma seca!

Não obstante, reteve o nome de Agostinho: – Agostinho da Silva? Mas ele ainda é vivo? – indagou. Paciente, proficientemente, esclarecemo-la, explicando-lhe que a apresentação das Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo constituíra, justamente, uma comemoração, entre outras, em que Sesimbra foi aliás pródiga no ano passado, dos vinte anos da sua partida. Para o nosso desespero ser completo, veio ainda uma terceira questão: – E a filosofia dele era estilo quê? Tipo Platão?

Apesar do jeito platónico com que Agostinho sacraliza a criança entrevista no Menino Imperador do culto açoriano do Espírito Santo, não lhe quis dar o prazer de julgar que, por uma vez, tinha posto a cruz certeira nos quadradinhos do teste americano. Até porque o filósofo, verdadeiramente, desejou sempre congraçar Platão e Aristóteles, ou o Céu e a Terra. Disse-lhe apenas que a filosofia de Agostinho era tipo ele mesmo, num homem que tinha criado o seu próprio estilo, decerto por entender que o principal dever de cada um para consigo consiste em se ser aquilo que se é.

Mais disse a suave rapariga outonal ser aluna do IADE, em Lisboa. Muito gostaria de lhe ter feito a pergunta que então me não ocorreu: se acaso sabia quem tinha fundado a escola que frequentava? Imagine o leitor que se trata de um filósofo, para mais um filósofo português, de seu nome António Quadros. Este amigo de António Telmo e Agostinho da Silva, regressado à pátria após uma estada no Brasil, onde fora realizar conferências, foi o núncio do convite que o segundo, com Eudoro de Sousa, dirigira ao primeiro para se lhes juntar, em Brasília, como professor da Universidade onde os dois então pontificavam. Corria pelo meado a década de sessenta. E o resto é sabido. Telmo aceitou o repto e quando, dois anos e meio depois, se assomou entre nós de torna-viagem, não tardou muito que Agostinho o reencontrasse em Sesimbra, vila onde este último, por via de regra, passou a assentar praça sempre que o apelo sortílego de andarilhas peregrinações o não reclamasse à morada principal de Lisboa.

Felizmente, naquele fim de tarde, nenhum de nós participou à graciosa banhista serôdia que Agostinho da Silva, tantas e tantas vezes suspenso da contemplação do mar de Sesimbra na sua varanda de Argéis, preferia contudo o Castelo à praia, como aliás fez saber na conversa com que, no final do Verão de 1993, por obra e graça do destino, viria a consumar, neste mesmo jornal, o histórico rol de entrevistas de imprensa com que deu coerente testemunho do seu ideal de vida conversável. Segundo então afirmou, não gostava muito de praia, pois que esta só servisse para as pessoas irem lá bronzear-se ou nadar. «A vida tem sido muito estragada por gente que nada. E talvez muita gente devesse aprender a flutuar. A deixar que a vida o vá conduzindo a isto ou aquilo…» – acrescentou o filósofo à comitiva do agora quarentão Raio de Luz,… 

Por muito que custe à excelente moça balnear, parece haver sempre uma opção filosófica depositada nos gestos, mesmo os mais pequenos, só na aparência insignificantes, com que urdimos as teias das nossas vidas. Quando Agostinho da Silva virava costas ao mergulho nas ondas do mar a seus pés, e com estes de abalada se afoitava a calcorrear os morros que circundam a cova funda, para visitar o amigo Rafael Monteiro na sua casa castelã, estava por certo a fazer uma escolha, tão escorada no sentimento como no pensamento. E quando António Quadros congeminou o desígnio, entre nós pioneiro, de criar uma escola de arte e decoração que viria a concretizar em 1969, facultando aos estudantes portugueses um curso de Design de Interiores e Equipamento Geral concebido sob padrões internacionais de vanguarda, bem sabia que as imagens não raro decidem das ideias por que guiamos os nossos passos.

É ainda em 1969 que, Verão adentro, Agostinho regressa ao torrão nativo, após o quartel assombroso em que, no Brasil, reinventa Portugal. Cinco lustros de um exílio com pouco de voluntário perante o aguilhão político com que o regime de Salazar o perseguira serão o bastante para atrás de si sulcar um profundo, fecundo rasto de aventura e criação, fundando escolas, fazendo escola, escrevendo livros e artigos onde fulgura um pensamento tanto mais controverso quanto mais original ele se mostra.  

Não tardou muito que, nesse mesmo ano, pela dobra da década, António Telmo, da Piscosa, onde dirigia a novel Biblioteca Municipal, lhe lançasse a escada, impetrando-o a falar, de improviso e sem parança, durante uma hora e meia, na antiga Capela do Espírito Santo. António Quadros viera semanas antes, inaugurando a série de palestras com uma conferência sobre “O Homem Português e o Barroco”. O arrojo foi um sucesso, todas as sessões registando, invariavelmente, uma assistência copiosa e interessada.    

A Biblioteca, entretanto, desceu a calçada, passando à porta juvenil do Rafael; teve casa posta na velha escola do ciclo; e ainda um breve poiso temporário, intercalar, nessa outra, bem mais antiga, devida à bondade do Conde de Ferreira. Hoje, de novo entre escolas, sob a direcção competentíssima da Dr.ª Maria José Albuquerque, abre as suas portas ao público no moderno edifício modelar da Avenida da Liberdade, à ilharga do jardim-de-infância de Santa Joana e da escola básica a que, com vossa licença, continuarei a chamar primária, por primeira.

A meio da década passada, ainda sob a égide de António Telmo, ali celebrámos o centenário de Agostinho da Silva, com um colóquio realizado a 30 de Setembro, no exacto transcurso de treze anos sobre a data em que a derradeira entrevista do autor de Um Fernando Pessoa assinalara as páginas do Raio de Luz. Naqueles que se seguiram, antes e depois da partida de Telmo, a prática manteve-se, quase sem hiatos, a ponto de se tornar um hábito para certos monges devotos da palavra.

Contra a fúria dos ventos, o contínuo costumeiro persiste agora sob a fórmula das Tardes Télmicas, que este ano conhecem segunda edição, parceria confiada e proveitosa do Projecto António Telmo. Vida e Obra com a Câmara Municipal. O começo recai em Maio, mês de Telmo, no dia 9, com a apresentação de O Estranhíssimo Colosso, monumental biografia que António Cândido Franco, numa porfia de décadas de estudo e investigação, dedicou ao insigne sesimbrense por eleição que foi Agostinho da Silva, e onde António Telmo, Rafael Monteiro e António Reis Marques são presenças das mais marcantes. Mas haverá mais, muito mais, neste renovo do encontro: um certo livro sobre António Telmo e dois novos volumes das suas Obras Completas, empresa que o Projecto vem conduzindo com a chancela da editora Zéfiro; o lançamento da reedição dos míticos Noventa e Tal Contos, de António Cagica Rapaz – “Boa noite, ó mestre!” –, livro onde Telmo, com proverbial mestria, joga o bilhar; uma tertúlia e uma exposição sobre Rafael Monteiro; várias conferências ao redor do nosso patrono e do universo infindo em que se inscreve; e, ainda segundo este propósito dialogal, colóquios sobre Sampaio Bruno (nos cem anos da sua morte), Teixeira de Pascoaes (no centenário da Arte de Ser Português) e Fernando Pessoa (na primeira centúria da revista Orpheu). São mais de vinte oradores, vindos de várias partes de Portugal, do Porto ao Alentejo!...

As Tardes Télmicas continuam, sempre aos sábados, porque as primeiras foram um êxito e porque sim. Porque a tradição da herança impõe responsabilidade. E porque a memória é um caso sério, sobretudo quando começa a falhar. São para todos estas Tardes. Até para as suaves raparigas outonais. Sobretudo para estas. Porque a filosofia, longe do enfado com que a querem pintar, por cá é apenas o nome para dizer a nossa história e o exemplo sublime dos maiores, a literatura e a poesia que nela há, o sagrado e a arte que o revela, tudo aquilo que vem no sopro de que se alenta a vida e nenhuma senhora Merkel poderá jamais resgatar.  

Dizem que Sesimbra é peixe e este mês, depois de faltar ao aviso para Janeiro, aqui estou eu, de balde cheio, a vender o meu…