VOZ PASSIVA. 55

30-06-2015 10:42

Risoleta Pinto Pedro apresentou, no passado sábado, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, durante a quarta Tarde Télmica, as Páginas Autobiográficas, um dos livros agora reunidos no III Volume das Obras Completas de António Telmo. Numa viagem palavra a palavra, página a página, escrito a escrito, de que agora nos oferece o registo cartográfico. 

Sobre Páginas Autobiográficas de António Telmo

O Galo e a Rosa

Risoleta C. Pinto Pedro 

 

O pensador que da sua própria sombra extrai luz e assim nos ilumina.

Para mim, um convite para ler ou escrever sobre António Telmo não precisa de ser feito duas vezes. Antes da formulação já eu estou frente às páginas. Porque me é música para a alma, rebuçado para a mente, recreio para a criança.

Confidenciava no outro dia a um muito querido amigo que sempre pensei especialmente nos livros de António Telmo, de que destaco particularmente a Gramática Secreta, como uma reserva de luz solar na minha vida. Se tudo falhasse, havia essa luz.

Era algo assim o que eu dizia:

“António Telmo é uma espécie de semente de felicidade, algo que germina e germinará, pelo conhecimento, pela ética, pelo arrojo, pelo testemunho, pela Presença, pelo brilho elevado até na sombra. Se tentar descrever o que sinto desde sempre quando penso nos livros dele, é muito parecido com o sentimento que em criança (e recordo-me muito bem) dedicava aos brinquedos mais sonhados, mais desejados, como objectos mágicos. Algo assim: se tudo falhar existem estes livros, existe este pensamento. “

 

Agora já não tenho um pensamento catastrofista, mas as palavras pensamento de Telmo permanecem sóis. Daí o meu sentimento de felicidade por estar aqui nesta celebração convosco.

Mas não sei se António Telmo, que eu não duvido que esteja connosco, vai achar muita graça a esta minha apresentação, por, pelo menos, uma razão.

E vou já “despachar” este assunto, antes que perca a coragem.

Assim entro nas Páginas Autobiográficas:

Ao contrário de António Telmo, que com muita graça fala disso num destes textos, a propósito de umas conferências em Sesimbra, eu lerei os meus papéis:

“Ora era regra por mim estabelecida, a fim de evitar o aborrecimento dos ouvintes, que os oradores não podiam ler discurso escrito, mas deviam sim falar livremente de improviso. Para tanto é necessário coragem, inteligência, imaginação e entrega a Deus. “

O que significa que, lendo, estou aqui a fazer um “streaptease” onde me dispo de coragem, inteligência, imaginação e entrega a Deus. Ainda por cima dou-lhe razão, por isso espero que não se vão embora, quanto mais não seja pelos meus pares nesta mesa… E retomo António Telmo, a propósito de uns acidentes de percurso nas tais conferências:

“Aquele que nos foi imposto leu seus papéis e lá fomos aguentando que passasse infindavelmente as folhas até respirarmos de alívio. Este mau hábito de ler quando se fala para o público foi banido do Brasil, onde me aconteceu ver esvaziar-se uma sala cheia de ouvintes logo que o orador pegou nos papéis. O que aconteceu em Sesimbra foi bem mais interessante.

Terminada a leitura, seguiu-se o colóquio com perguntas e respostas. Um pescador ergueu o braço pedindo a palavra:

Diga-me lá! Foi o senhor que escreveu isso?

Respondeu o conferencista: - Então quem havia de ser?

E o inteligente homem do mar: Eu é que sei?! Pode muito bem ter sido outra pessoa. Como podemos ter a certeza que foi v. que escreveu isso? “
A minha sorte é que não haja aqui nenhum pescador e que se houver seja caridoso comigo.

Assim, peço-vos que não se vão embora antes de me darem uma oportunidade, e confesso já que não fui eu que escrevi tudo: a parte melhor do que vos vou dizer é obra de Telmo e o resto é meu, embora não possa apresentar nenhuma prova para além da minha palavra. Eu própria não tenho a certeza do que estou quase a jurar.

Comecemos então pelo início. Não do livro, mas de tudo:

O galo eleva-se dentro de si mesmo para soltar as cinco notas anunciadoras do Sol.

Telmo não poderia deixar de trazer o galo da infância, esse animal iniciático, o que acorda das trevas, aquele que faz essa paradoxalmente difícil passagem da escuridão para a luz.

Para matar saudades e confirmar as cinco notas, que eu sou como S. Tomé, andei a ouvir galos na internet porque já desapareceram dos quintais da minha infância e os dos telemóveis não os acho fiáveis.

Seja como for, o importante aqui é trazer perante vós, através deste iniciador que é o galo, esse outro iniciador que foi e é António Telmo, um galo na terra a recriar o céu terreno.

Mesmo os iniciadores tiveram uma infância, e sobretudo eles viveram-na intensamente, como uma dura iniciação.

Essa infância por onde constantemente viajei no início deste livro.

O silêncio do campo fazia-me pânico. Ainda não tinha lido os filósofos alemães e não podia saber que era a minha própria presença que me apavorava.

Que criança não conhece isso? É como se ele falasse por mim, por nós, por todas as crianças. Não era este tipo de conhecimento que deveríamos aprender na escola? Os filósofos deveriam manter um constante diálogo com as crianças a tranquilizá-las sobre o silêncio e outros lugares assustadores. Como faz Telmo, com coragem e bondade.

Ele teve, como eu, como todas as crianças com sorte, alguém que lhe contava histórias de terror. É melhor ouvi-las do que vivê-las.

Mas mesmo assim, assistimos aqui ao desmoronar dos mitos sobre a infância: nem Paraíso, nem inocência, nem segurança.

“A ideia que se faz da infância como de um paraíso na vida não é tão certa quanto rezam os livros, pelo menos se a minha pode servir de exemplo. Vivia num mundo hostil, povoado de medos.”

A mim, fez-me sentir muito acompanhada, este relato, a essa menina que ainda está lá atrás numa total solidão debaixo dos cobertores nocturnos a tremer com o som do vento. Também ali para os lados de Arruda.

No meio dos relatos das dores da infância a alegria da poesia:

“O meu coração maravilhado fez-se pequenino como uma espiga.”

 Telmo, meu mestre e irmão, como me ensinas sobre mim. Recito-te:

“vim a atribuir esta obsessiva sensação de instabilidade interior, que nunca mais me deixou pela vida adiante, não à minha infância”,

 mas àquilo que ele designa como “atavismo judaico”

Viveu então num perigoso Paraíso feito de árvores, rios e habitado por um lobisomem e uma bruxa. Nada lhe faltou.

Nem um padre que o absolveu para sempre, um padre que, sem o saber, estava banhado pela aura do V Império, ao dizer-lhe aquando da confissão da 1ª comunhão. “_ Vai-te! Tu não tens pecados.”

Um padre libertador, denunciador da moral hipócrita com que os adultos afligem as crianças, como ele refere mais adiante:

“moral que nos era impingida e que todas as crianças odeiam, porque estão antes do pecado original.”

Traz-nos, da infância, memórias do silêncio da igreja como se houvesse ali alguém doente, e é assim mesmo que as crianças lêem aquele inexplicável silêncio, o ar austero dos santos. O mundo dos adultos pelo olhar de um Telmo menino que nunca se esqueceu de o ter sido.

Para além das questões existenciais, estamos perante um precioso documento histórico-etnográfico, como o registo do nome que se dava aos gelados: “esquimós”

“Homens sem alma” mostra-nos cadáveres trazidos da memória da infância da Arruda, na casa mortuária, o espectáculo de “horror cadavérico”.

No início da vida, o convívio com a morte. Sem rede. A criança que Telmo foi, viveu estas experiências no horror da solidão interior, mesmo quando em grupo.

 

Mas as associações secretas já lá estavam, a vida deste homem é um continuum, não encontro hiatos, como se em cada fase da vida se cumprisse o desígnio da encarnação: leitura simbólica do mistério tão velado quanto para ele revelado no banal quotidiano. Assim, caçar pássaros, colher espargos, procurar o trevo de 4 folhas, encontrar ninhos, são associações naturais, as suas proto sociedades secretas, com seus códigos, seus segredos: os que espreitavam os cadáveres, os que lançavam fisgas ao sino da igreja, cada grupo destes actuava sob a lei do silêncio.

Mais tarde, já em Sesimbra, para onde foi viver aos 16 anos, os seus amigos eram jovens afectados pela tuberculose, cujo convívio ele não evitou. Mas há uma curiosa passagem em que conta como uma voz nocturna o avisou de que, afinal, o perigo vinha de dentro:

«“Não estejas melancólico, senão entuberculizas.”

E acrescenta, este homem que não se conformava com a aparência das coisas:

“O perigo vinha afinal, não do meu convívio com tuberculosos, mas de um estado doentio da alma: a tristeza.”

“A tristeza, descobri eu então como hoje creio, é a expressão de falta de confiança na bondade de Deus.»

Igualmente belíssima passagem poética, a página “Brisa da Terra”, que devolve ao ribeiro que corria em Sesimbra por onde existe hoje estrada, o ânimo, a respiração da água transformada em ar.

Perante estas palavras apetece repassar por todos os lugares por onde ele passou. E deixou seu carimbo, invisível e indelével.

É precioso tudo o que conta, da sua vida, das suas memórias, das suas interpretações, intuições, mas também os testemunhos que nos traz das vidas dos outros, seus companheiros de caminho.

É notável o episódio da atribuição da classificação a um exame de Álvaro Ribeiro feita pelo professor Leonardo Coimbra. Algum professor hoje teria coragem para o fazer? Classificar pelos gestos? Por aquilo que o professor sabe que o aluno sabia, mas não disse? Num tempo como o actual, em que não interessa o que se sabe, mas o que se aparenta saber, em que um exame de Português prévio à entrada na Universidade é preenchido com cruzes, isto é espantoso.  

Também de um viver fraterno e ético dentro das instituições por homens excepcionais, estas páginas são impressionante testemunho.

Mesmo no registo da biografia, do episódio, da curiosidade, Telmo nunca faz registos banais, ainda que parta do banal quotidiano, mas a extraordinária e aguda atenção àquilo que para a maioria das pessoas permanece oculto é das suas características que me encantam.

Vejamos:

“Se soubermos estar atentos, e temos a obrigação de estarmos sempre atentos, verificaremos sem dúvida que o primeiro encontro entre duas pessoas que virá a ser muito importante e até decisivo para ambas, seja um homem e uma mulher que virão a pertencer-se como marido e esposa, sejam dois homens dos quais um deles abrirá ao outro o caminho de união com o conhecimento de Deus são encontros sempre acompanhados de circunstâncias que se podem e devem interpretar como símbolos. Encontrei-me pela primeira vez com o Álvaro Ribeiro no Largo da Anunciada e daí ascendemos até ao Campo dos Mártires da Pátria. Não é difícil ver a significação destas circunstâncias.”

Para ele não era, efectivamente, difícil. Era como respirar.

Assim, tal como o mestre Alvaro Ribeiro que dispensava o acento na esdrúxula para melhor evocar ou deixar brilhar a alvorada, foi seu destino olhar os nomes como coisas vivas, símbolos, memórias da respiração de Deus a vibrar.

É como se ele tivesse um órgão a mais, responsável para olhar para as coisas pelo lado do símbolo, como se isso lhe fosse natural como estar vivo, mesmo quando fala de futebol: talvez aí ainda mais se destaque a sua extraordinária propensão.

Outras vezes, ler estas páginas é como assistir ao Génesis, um início de conto inconcluso é um privilégio de princípio do mundo…

Por muito que o leia, Telmo consegue ainda surpreender-me; encontro nele, num texto do final dos anos 60, o mesmo pensamento revolucionário que encontrei, muito mais recentemente, em Caroline Myss, uma curadora intuitiva:

 “…antes que venha a morte, e com ela o aniquilamento total de alma, corpo e espírito, é preciso fazer qualquer coisa, assim como uma confissão ou uma extrema-unção, que nos permita continuar a viver noutro plano de existência.

         Digo-o sem ironia. Com tanta seriedade como o disse Fernando Pessoa, embora na maneira como o disse arriscando ser mal entendido por críticos e outros poetas:”

Cuidadores ou curadores pelo símbolo, usando e transcendendo, revivificando, isto é, dando vida a uma prática conhecida como cristã, e dando-lhe vida, espalhando esperança de mais vida.

 

[VARIANTE A:] Para os espíritos práticos, não haverá diferença entre extrema-unção e suicídio e o tempo não está para filosofias. A autognose, para eles, de há muito que foi feita e resume-se na frase de Joaquín Costa: é preciso desafricanizar a Espanha. Ser-se europeu, é a chave do problema, expurgando de nós o mouro, o preto, o judeu, ou então transubstanciando tudo isso pela pedra filosofal do espírito ariano. Assim se chegou ao ridículo de pensar que se alterariam os caracteres craneanos dos peninsulares, se os cérebros recebessem a influência em massa duma educação de tipo europeu.

 


O conhecimento do símbolo como remédio para o veneno da vida, já tão novo interiorizado, o mesmo que alguns levam uma vida inteira sem o conseguir fazer.

 

“Encontrei da sua parte [do irmão mais velho], não obstante, uma constante hostilidade dentro do grupo. A minha carreira de escritor tornou-se dificílima. Ele não fazia mais do que obedecer à inexorável lei que opõe o primogénito ao benjamim, àquele que representa na família o princípio da revolta e do renovo. O conhecimento desta lei, pela leitura do Antigo Testamento e dos contos tradicionais, ajudou-me muito a manter uma certa impassibilidade, ao mesmo tempo que me incitava a realizar o meu destino de filósofo.”

 

Opõe ao pensamento (parcelar), o conhecimento (amplo e profundo, composto também do pensamento).

 

O texto “Páscoa no mar” tem um eco de Sermão, e poderia bem ser a introdução de um dos sermões de Vieira. Pela profundidade, pela visão aguda e divina, pela beleza.

 

“Também a alma é escura, inquieta e indefinida. Também neste dia ela revive para a harmonia e para a luz.

É um outro sol que a ilumina, mas é o mesmo.

Também ela tem algas, e tem sal e tem peixes.

E também nela os peixes se doiram e as algas reverdecem.

Olhai o rosto de um pescador; vede quanto abismo interior ele revela; vede agora a criança que ensaia, pescando à beira-mar, com curtas canas, a profissão do pai. E reparai quanta graça o seu rosto reflecte.

Neste dia, o pai é o filho, e o filho é o pai.”

Termina, até, com o que poderíamos chamar um conceito predicável:

“Neste dia, o pai é o filho, e o filho é o pai.”

 

Olha as palavras e vê luz. Acredito que o convívio com Álvaro Ribeiro, as ideias de Sampaio Bruno, a sua metafísica da língua enquanto chave-mestra,  como diz Telmo, mas também Pessoa, que transformou a Pátria em língua, que estes lhe tenham acentuado a convicção, mas já nele o verbo feito luz era candeia a iluminar-lhe o mundo. Os mestres eram aqueles que a sua luz precisava de encontrar para não iluminar sozinha.

O som que se constitui como letra é uma modalidade da luz.

E é aqui que é completamente único. No estudo e demonstração do som enquanto criação, iluminação e sustentação do mundo e, na ausência de conhecimento, também de destruição.

Tem um olhar que não se detém no que os olhos vêem, mas que constantemente eleva o que está em baixo junto do que está em cima para que adquira vida, sentido e eternidade. Uma forma de salvar o mundo da forma assim o sustentando na mesma forma sobre colunas de luz atenta.

E tanto o faz com os movimentos dos portugueses pelo mundo, como com a narrativa de Camões sobre isso mesmo, como com esse olhar de Pessoa ele próprio já transfigurador, como com os mais banais acontecimentos de cada dia. 

Porque tudo contribui para a alquimia do olhar.

Mas é um olhar que não se limita a iluminar a palavra e com a palavra, ele vê símbolo e geometria na deslocação dos povos, nas emoções dos povos, nas crenças dos povos (v. “Cabral e o novo Oriente”), como se possuísse (e não possuirá?, repito) um órgão a mais que lhe permite ver facilmente como num raio x ou numa ecografia, e aplicável a tudo.

 

A propósito de um dos textos incluídos neste volume que se destinaria a um livro, declara que esse não é um livro de viagens mas “é um livro da viagem. É um conjunto de reflexões a partir da experiência mais funda e séria do homem.”. Esta afirmação acaba por se aplicar a este outro livro que ele não conheceu, porque entretanto ele próprio viaja, e podemos aqui desenhar uma geografia da escrita e do escrito, isto é, do berço onde nasceram as escritas e ou dos locais a que aludem os escritos. São eles Almeida, Angola, Arruda, Sesimbra, Brasília,  Granada, Redondo,  e ainda Évora, Beja Porto,  Lisboa, Tomar …

Contudo a esta seriedade por si aludida mais acima, a “experiência mais funda e séria do homem.”. a ela  não é alheio o subtil sorriso:

“Mas se eu escrevo, por exemplo, “uma mesa é uma mesa” pode ser que se ponham a pensar que nisto há um sentido profundo. E é que não há?

Vou ler o Hegel.“

É magnífico o texto sobre as personas: “Três seres distintos em mim”, são muito tocantes as “Páginas Íntimas“, que poderiam ser uma síntese do portal em que se encontra o ser humano após abandonar todas as ilusões: silêncio, solidão, dúvida, nada. Esta é a grande prova da fé, a grande iniciação depois de todas as iniciações. Pungente, honesto e generoso, este grito de Telmo:

“A única esperança é a que uma tábua da nau divina em que me sonhei me possa servir de socorro no mar turvo da minha desolação. Desejei o mais alto. Procurei caminhos para ele. Perdi-me em todos.”

Este ser consegue, conjugando uma imensa simplicidade e humanidade deslizando sobre um olhar que bebe directamente na fonte dos símbolos, criar pensamentos e expressar emoções que seriam o de qualquer um de nós, comum ser. Ele e outros não muitos autores comportam-se como se me tivessem roubado pensamentos secretos, nunca por nunca verbalizados, mas que hoje, no suporte da sua viril coragem e companhia, confesso:

“Em rapaz, eu e outros da minha idade, por muito que o tentássemos, nunca nos foi dado encontrar a excepcional planta. Fi-lo muitas vezes depois. Cheguei a convencer-me que não existia o trevo de quatro folhas e que a tradição popular queria apenas significar com isso que a felicidade é impossível.”

 

Estas páginas mostram a pessoa por detrás do professor, por detrás do escritor, do autor, por detrás do mestre, por detrás do filósofo, o mistério por detrás do mistério. E no entanto como é grande, mesmo quando se mostra na sua pequenez! Ainda maior quando o faz. Só os grandes conseguem olhar-se e ver-se pequenos, aos outros não é suportável, seria equiparável, para eles, a um suicídio, uma diluição, um desaparecimento, um fenecer.

Este velho contemporâneo estoico do século XXI  afirma: De resto, o que me é contrário deixa-me mais ou menos indiferente.”   e lembra-nos o saber antigo, mas engolido, digerido, e devolvido com a chancela do real experimentado por dentro.

As páginas designadas como “Autobiografia e Sobrenatural” estão muito bem neste volume a seguir às Páginas Autobiográficas“, uma vez que umas e outras vêm da mesma fonte e jorram frescas de mistério, isto é, de vida. Alguns dos apontamentos já eram indiciados, introduzidos ou mesmo narrados nas Páginas. Aqui aparecem já não diluídos em biografia, mas concentrados em ominoso.

António Telmo valoriza o milagre, o que para ele é valorizar tudo, desde a semente que se desenvolve em árvore, às águias que se erguem no céu a apontar-lhe caminhos. Não há diferença. Como não existindo sobrenatural. Tudo é natural, mas umas coisas ocultam-se ao olhar despreparado ou não vocacionado. Tudo é uma questão de atenção ou de olhar inocente, digo, espantado. Perante todas as coisas.

Espanto que não é surpresa. Ele surpreende-se quando não vê milagre, mas espanta-se em cada segundo, quando o vê.

Fala ele de algo que muito me interessa enquanto escritora e que já aflorei há pouco: relermos no que escrevemos a antecipação do que não sabíamos que conhecíamos, sendo a metáfora o veículo:

pela metáfora é possível conhecer, embora em modo reflectido, a relação do mundo sensível com o mundo subtil imaginal”

 

Os títulos são, ou retirados das próprias palavras do texto a titular, ou do conteúdo, portanto, com palavras do organizador que no seu entender melhor traduziriam o espírito do que se diz.

Aproveito para destacar a qualidade do trabalho de organização deste livro onde se incluem os títulos e sua atribuição.

O texto síntese que consegui construir quase exclusivamente com os títulos das partes, acrescentando-lhes nada ou muito pouco, mostra, pelo menos, duas coisas:

A justeza dos títulos escolhidos a partir de cada texto e a coerência da sequência criada. Vejam:

Este livro Pórtico oferece-nos as Primeiras Memórias, desde Alter do Chão e o jogo do galo às reflexões tão à António Telmo com o engrandecimento cósmico de enigmas infantis como Quem de vinte cinco tira

Anda por aqui a infância com a sua inalienável Sombra temível do mal, em Arruda, n’O grande adro de Arruda, mas também Acontecimentos extraordinários na Sesimbra de outrora, como um vento memória de um rio a que chamou A brisa da terra

Na Escola Nacional de Lisboa é-nos apresentado um delicioso Telmo das diabruras infantis, mas não é ele apenas que é apresentado neste livro, aqui também é feita a Apresentação de Álvaro Ribeiro aos sesimbrenses e Teixeira de Pascoaes a todos nós.

Na casa de meu Pai, éramos três irmãos cruzam-se várias histórias: familiares, sentimentais e filosóficas. N’A Alocução do Sr. Aspirante Vitorino encontramos um jovem patriota procurando incentivar os seus pares, pelo discurso e recorrendo já à história. Marés faz-nos dar um salto de gigante para Sesimbra, mas é do eterno mistério do mar que se trata e poderíamos estar em qualquer praia de pescadores desde o início da humanidade. Ressalta o arquétipo. O mesmo acontece em Páscoa no mar e A caça à baleia.

António Cagica Rapaz revela, em torno dos bilhares, o amor admiração por alguém que partiu, assim como Os guizos são veículo para reflexão sobre o mundo subtil, tal como é subtil a rasteira que nos faz em Uma caçada às perdizes, que nos conduz a um inesperado caminho entre a sedução e a profunda dor existencial do acto que não se quis. É como uma mais do que sincera Entrevista a António Telmo em Sesimbra, varanda para o mundo passado e futuro, de onde se observa Cabral e o novo Oriente, mas também Brasília e Granada, a Pérsia à porta, onde foi embaixador oculto de Agostinho no Brasil e de Portugal no Mundo.

As Páginas Ibero-Americanas são séria e complexa reflexão sobre os nossos destino e identidade na Península, na Europa, na América, no mundo, e afinal no navegar no colo de Deus ou aportar ao seu porto.

A Apresentação é uma espécie de antecâmara à conferência Para a História da Cultura em Sesimbra e de Sesimbra.

A maior parte destes textos vieram De um caderno de apontamentos: como o excerto de um diálogo entre Rafael Monteiro e Agostinho da Silva.

Redondo é um comovente testemunho de um adulto que, em contexto escolar, não se esqueceu de salvaguardar o que existe de verdadeiro nas crianças e Três seres distintos em mim uma espécie de autopsicografia de fundo terminando com um enigmático “G”.

Só Deus escreve sobre Deus é um título que eu gostaria que fosse meu e Dois escritos íntimos  uma tocante e sincera confissão de “desolação”.

Dies Lunae, o discorrer do fluxo de pensamentos no café, com ciganos, mulheres, horóscopos e livros.

O número 13: página de autobiografia espiritual uma deliciosa reflexão sobre o mistério e o contágio dos números na realidade ou o contrário.

Os Sonhos de Telmo possuem uma carga adicional de mistério que imprimem um especial significado à expressão Sonho mágico que nele assume uma particular potência. É neste ambiente velado que se insere a Carta a um mestre maçon sobre o mundo subtil concluindo esta importante etapa da viagem enfrentando a sombra a que chama O quarto inimigo do guerreiro, assim fechando com dolorosa clave de lua esta comovente Autobiografia e sobrenatural.

CONCLUSÃO

Ler este livro é como conversar com um amigo que me conhece muito bem, o que não é verdade, pelo menos no mundo lógico, porque nos conhecemos de encontros raros, com muita gente à volta e sem oportunidade de pelo menos visíveis trocas profundas, embora tenha apresentado (sorte a minha!) um livro meu, na Serra d’Ossa, e tenhamos trocado uns livros e dedicatórias. Mas o meu diálogo com ele foi sempre uma conversa silenciosa em que ele, ou melhor, os seus  livros, falavam e eu escutava. Assim continua a ser. São inesgotáveis, as conversas dos livros de António Telmo. Essa uma das razões porque sinto que não partiu.

São livros em permanente e exponencial criação, ainda que depois de criados, tal como o Universo. Cada vez que abro um deles, mas em particular a Gramática Secreta, é como se nunca o tivesse lido antes. Isso voltou a acontecer-me com este livro, com estas Páginas Autobiográficas. O que é curioso é que isso não se passa apenas comigo, sua leitora, mas também com ele:

“Sempre que leio textos meus antigos, esquecidos entre os meus papéis, mais se me torna evidente que foram elaborados por uma espécie de magia. Sinto-os, pois os esqueci, como alheios. Todavia, encantam-me e seduzem-me como se ouvisse a minha alma falando-me das bandas onde sopra o Espírito.”

Ele escreve sobre a sua escrita e, para mim, sobre a minha, que assim a sinto e também sobre isto tenho escrito. Mas não só eu. Ele escreve sobre os criadores que tão bem conhece de dentro de si. Um jovem amigo, meu ex-aluno, fotógrafo, poeta e pintor talentoso, um dia, e conto isto num dos meus livros, visitando uma amiga, pára deleitado perante um quadro que fora… ele a pintar. Sem se recordar de si como o autor.

 

Este livro formado de projectos, começos, pinceladas, palavras que prometem e sugerem conclusão que nem sempre têm, pela sua natureza, porque reúne fragmentos, acaba por ter uma unidade, coerência e sentido que só o mistério explica.

Como se as palavras utilizadas tivessem uma extensão oculta que não apreendemos diretamente pelo intelecto, mas que criam um indivíduo, alma ou entidade oracular.

Um dos episódios relatados consiste na narração de um sonho de António Telmo com Álvaro Ribeiro cujo conteúdo apontava para a falsidade da morte do filósofo, logo, que todos os que acreditavam na sua morte teriam sido enganados, sendo que este mesmo sonho fora sonhado simultaneamente por uma outra pessoa. Tenho a convicção, e não brinco, que António Telmo deixou este texto registado como indício para nós, para que, cépticos de sonhos ou de percepções, saibamos que tal como o seu mestre, ele não morreu. Porque não há morte.

Estas páginas autobiográficas, se partem, como já referi, de episódios do quotidiano, biografam acima de tudo a alma, são uma biografia do mistério.

Um misterioso episódio de um encontro com um ser ominoso por altura da sua elevação ao 3º Grau num grupo de iniciados, como ele os nomeia, em que no café, um ser vindo do mundo e começando por receber relutantemente uma moeda por ele dada, como mendigo, tem algum paralelo com o vagabundo do bordão, qual vara mágica que nunca largava, que na infância visitava o pai de Telmo ou recebia a sua hospitalidade vivida em longas e mutuamente apreciadas conversas, assim o iniciando com as notícias do mundo visitado. O bordão deste misterioso visitante é um maço de cigarros da mesma marca de Telmo e acaba por o iniciar com dois beijos rituais com que antecipou o ritual. Tal como nos Contos a caneta de Pessoa é a vara mágica da figura do mago.

Vale a pena ler, em paralelo, estes dois episódios.

De salientar, com muitas estrelas, os comentários finais na Marginália, de Eduardo Aroso, Pedro Martins, Miguel Real, João Ferreira e Agostinho da Silva.

 

O estilo é, como já escrevi num outro texto, de uma terna beleza, e exemplifico:

“O mar como um seio de Deus”;

“os portugueses, como outrora os judeus, andam à procura da sua terra, que não concebem sólida e firme, imaginando-a flutuante como uma ilha e imponderável como uma metáfora.”;

“O mar, inquieto como a vida, rodeava a barca.”;

“a viagem do sol pelo sul”;

“serem os livros papéis estendidos no espaço”;

“Do Porto Culto para o Porto Oculto medeia um invisível oceano, imenso, subtil e misterioso e a barca do espírito é a metáfora, a palavra divina”;

A metáfora como um barco do espírito ou um “alucinogénio interno”. Mas barco que também é “porto”;

“Um sangue intransformável em leite. Química que transparece no viço.”

Isto é de uma extrema qualidade. E beleza. Se me permitem, concluo citando-me a partir de um outro texto que escrevi recentemente:

“António Telmo tem o talento de se inspirar na biografia transfigurando-a pela alquimia do símbolo e aprofundando-a esteticamente pela metáfora.

É curiosíssimo encontrar pelo meio da sua escrita pinceladas de biografia nas cores básicas ou em tons pastel. O efeito acaba por ser o mesmo. Quer uns quer outros sofrem um fenómeno perante os nossos olhos nunca habituados: a transfiguração, a alquimia. O processo simbólico de Telmo dilui-se na ficção, a ficção tem a originalidade do símbolo, ambas se transformam pela metáfora.”

Do galo à rosa …  jogo de mestre

Falta então a rosa anunciada pelo galo:

António Telmo, o filósofo que extrai sol da sua própria sombra, aqui relata que “Foi num adro, o da igreja de Arruda dos Vinhos, que se decidiu (no sentido da cápsula que se abre para libertar as sementes) o que vim a ser depois em participação no espírito ao longo da minha vida.”

É efectivamente no Adro de Arruda dos Vinhos que já se encontrava o chão de xadrez maçónico, era no adro que desembocava o tão marrano “Beco da Amargura”, era na sua pedra de calçada que já se desenhava a dupla cruz, rosa dos ventos anunciadora de futuro.

Mas também, ao lado da farmácia, a Travessa do Conhecimento por onde António Telmo de certeza passou, onde brincou, de onde semeou futuro numa infância já inquieta, já, sem o saber, marrana. É deste lugar de inquietação que vem o conhecimento. Por caminhos tão travessos, Senhor!

São as chispas de luz que desde menino faz saltar da escura amargura da alma, que continuam a iluminar os seus livros, a multiplicar o seu pensamento, a recriar em cada um de nós, seus leitores, a Travessa do Conhecimento.

Encontrei nestas páginas: autobiografia, oculto, filosofia, história, gramática, geometria, guematria, simbologia e tudo o que da sua obra se conhece. Sem deixar de ser Autobiografia. Isto acontece em cada texto e no todo, à imagem dos fractais em que o todo está presente nas partes. É um mistério. E é real. Arte verdadeiramente Real.

 

Sesimbra, 27 de Junho de 2015