VOZ PASSIVA. 91

04-07-2020 13:11

De uma carta de António Telmo sobre a Rainha Santa Isabel

Eduardo Aroso

Mestre desconhecido, Rainha Santa Isabel

Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra

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Neste ano de dois mil e vinte, uma imprevista pandemia veio impedir a evocação da Rainha Santa que, no dia mais solene, congrega milhares de devotos ou simples admiradores da padroeira de Coimbra. Leva-me assim este hiato a reler uma vez mais a carta (*) que António Telmo me endereçou, pouco tempo depois de eu ter conhecido o filósofo em Alenquer. Nessa missiva tem lugar de destaque o tema do Espírito Santo e o de Isabel de Aragão. Como se pode imaginar e depreender do que António Telmo escreveu, a relação da Rainha Santa com o Espírito Santo (apesar do impulso que Isabel imprime e da oficialização do culto em Portugal) parece ser outra que não apenas a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, no sentido teológico clássico. Mas também não parece ser apenas o culto dessa energia vital e animista, difundido em todo o país, que já constituía prática, e que Moisés Espírito Santo menciona com pormenor na obra «Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa (Assírio & Alvim, 1988).

 

Na tentativa de nos acercarmos melhor desse vulto singular que não se deixou conhecer completamente (a quem se tem chamado desde cátara, herética, cabalista, franciscana até à santa oficial do calendário romano), vamos pois considerar situações distintas que podem andar sob o mesmo nome de Espírito Santo, todavia vivências em contextos diferentes, ainda que as Três Pessoas, em última instância, só possam ser Manifestações do Único. Serve assim este intróito para quiçá melhor se entender o que Telmo diz na sua carta, a este propósito.

Pelo facto do culto do Divino andar associado desde tempos antigos, na sua expressão popular de Folia, à festa judaica do Pentecostes e ao marranismo, o sociólogo do sagrado, Moisés Espírito Santo, diz que esta festa do Divino nas suas manifestações de Folia e Bodo nada tem que ver com a Terceira Pessoa da Trindade, ao jeito trinitário e teológico católico. Esse conceito antigo de folia «coincide com a mais antiga tradição semita. As significações das múltiplas referências que faz o Antigo Testamento ao Espírito Santo coincidem todas com o conceito popular português e com as razões do seu culto nas Beiras».

Na Trindade, a questão do feminino sempre levantou dúvidas, pois tanto o Pai como o Filho estão associados à ideia do princípio masculino, pelo que o aspecto feminino forçosamente teria que caber no Espírito Santo. E assim se compreende que Shekinah, a Presença sobre a Arca da Aliança, tenha sido interpretada, desde tempos antigos, como emanação feminina da divindade. E por que não andrógina, já que a plenitude deste Sopro significa plenitude e redenção do Homem? M.E.S. insiste na transposição da figura bíblica de Ester para a Rainha Santa, dizendo que esta é «a nova Ester de Portugal». «É objecto do melhor sucedido, e mais arreigado, culto marrano ou cripto-judaico. Cultua-se exclusivamente  na igreja de Santa Clara em Coimbra». Prossegue, dizendo  que se dermos crédito aos cronistas da época não se compreenderia como tinha tempo para fundar tantas vilas, misericórdias, actos de assistência social e serviços devocionais. «De facto tudo quanto escreveram os cronistas sobre os méritos cristãos de Isabel de Aragão é um imbróglio mitológico tecido na Renascença, criado pelo núcleo dos Judeos-secretos de Coimbra com o fim de prestar culto à Santa Rainha Ester. Na época da sua canonização a Inquisição abateu sobre os cristãos-novos promotores do processo». Também já Sampaio Bruno dissera que os autos-de-fé não paravam, tendo acontecido um no próprio dia da notícia da canonização quando se queimaram freiras e outras pessoas. M.E.S. parece simplificar a figura da Rainha Santa, como veremos mais adiante.

Se, como disse Aristóteles, a poesia é superior à história, vê-se claramente que num poema hebraico do século XVI (extraído do Arquivo Coimbrão, em O Despertar, jornal de Coimbra, de 29/6/1990), na verdade, comparando as duas figuras femininas, em nada o autor minimiza a princesa de Aragão, mais tarde rainha, que entraria no nosso país pelas portas de Trancoso, terra do sapateiro Bandarra, que ali viria a nascer. Eis parte do poema. «És superior em glória às santas/(…) Grande a formosura de Ester, excelsa a elegância,/ Notável o ornamento  de Ester, tanto que, de preferência a todas/ As mulheres formosas, de preferência  a todas as donzelas,/ Recebeu-a como esposa o poderoso Rei da Síria./ E tu, Rainha, como a luz do Meio-Dia,/ Como as estrelas refulgentes no céu,/ Como o sol durante o dia e como a luz durante a noite,/ E como o lírio no jardim,/ És incomparavelmente formosa entre as Rainhas».

 

Nem estritamente do lado católico romano parece estar a posição de alguém que nascera na corte de Aragão (diz Sampaio Bruno que Pedro II rei de Aragão, denominado O Grande, foi o primeiro rei de Espanha «que ousou lutar com o papado»), próxima também de Raimundo Lulo e de Arnaldo de Villanova, nem do lado do cripto-judaísmo, fosse em Coimbra ou no interior das Beiras. Assim, não é difícil ver que o impulso dado por Isabel ao culto (uma espécie de oficialização), possa significar também o reconhecimento do reino ao que já estaria arreigado no povo, quiçá chegado que era o momento para uma ampla consciência nacional neste assunto. Preparava-se, com D. Dinis, mais ou menos  subterraneamente, a gesta marítima.

Natália Correia (Conferência de Santa Isabel, em «A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa» Roma Editora, 2005) levanta uma questão deveras interessante: «Uma significação mais profunda e de cariz místico-pentecostal se insere no ritual fundado pela rainha D. Isabel em Portugal. E é a esta luz que nos surge a figura mítica do Preste João que, descontadas todas as interpretações místicas que o envolvem em maravilhas, ora na Ásia Central, ora na Mongólia, ora na Índia, ora na Etiópia, é essencialmente um título que designa não um indivíduo, mas uma autoridade espiritual ligada ao poder real, simbolicamente senhor de um reino que representa o centro supremo. O Preste João é, por conseguinte, o senhor universal que na Terceira Idade da doutrina joaquimita consubstancia a fraternidade planetária exposta no Evangelho Eterno anunciado por S. João no Apocalipse». Assim, na «autoridade espiritual ligada ao poder real», não é difícil perceber que tocamos no mistério de Melquisedec onde se realizará a utopia do poder espiritual-temporal. E não cabe aqui também a libertária afirmação de Pessoa «o nosso destino é sermos tudo»?

M.E.S., focando outro aspecto, diz: «Isabel de Aragão encontra-se confundida, antes de mais, com a sua tia, Santa Isabel da Hungria» pelo que os cronistas mais não fizeram do que diz a Lenda Dourada sobre a rainha húngara», acrescentando M.E.S. que «o milagre das rosas é de origem húngara». Continua com uma procissão de semelhanças e confusões, dizendo que Isabel «se confunde com a mãe de São João Baptista e esposa do sumo sacerdote Zacarias. Hoje apenas nos apercebemos, num ou outro ponto, que o culto coimbrão de santa Isabel é pouco “católico”».

 

Na verdade, na actualidade, e desde há muito, o culto tornou-se bastante católico, o que se vê pela enorme procissão de milhares de pessoas, muito embora possam existir, menos visíveis, outras formas de devoção mais heterodoxas. A Igreja romana não tinha, com toda a vantagem, outro modo de agir, senão chamar a si essa devoção isabelina, como noutras circunstâncias históricas. Tal é o caso de Lourdes ou Fátima (cujas manifestações, neste caso, são anteriores  ao início do séc. XX), assunto que foge ao escopo  do presente texto. Perante tanta transposição, M.E.S. parece esvaziar a múltipla e complexa personalidade da Rainha Santa, pouco falando e nada enfatizando, por exemplo, a sua causa franciscana (mal vista pelo papado), esse braço da Igreja de Cristo tão próximo do povo e que havia de seguir nas naus, como bem no-lo disse Jaime Cortesão. Se atendermos ao seu berço e à sua educação (à parte a sua posterior condição régia) dizermos que Isabel é uma santa popular, podemos estar a dizer santa popularucha. Ou seria também diminuí-la vermos apenas a esposa real e medieval que, sem margem de iniciativa, apenas acompanha o rei quando necessário. Diz-nos Sampaio Bruno que «Desde os tempos em que «a casa de Aragão, para Roma, achava-se, justificadamente, mui longe de estar em cheiro de santidade. Bastaria considerar o Pedro, anterior no nome, ao pai da Rainha Santa, esse Pedro II que, contra a cruzada católica pelejou ao lado dos heréticos albigenses e sucumbiu no lance de deixar o sítio de Muret».

Voltemos a M.E.S. «No judaísmo popular também há uma questão de segredos. (…) A certo momento das cerimónias um responsável ordenava: “vamos à tradição meus senhores!”(…) 0 segredo é de cariz iniciático. Era nesse dia que os Essénios admitiam os novos membros para serem iniciados». Se a ideia de uma certa iniciação fica clara na Festa mais antiga do Divino, por que não admiti-la no milagre das Rosas em Coimbra, descartado por muitos estudiosos que insistem na rainha húngara como a vera personagem desse e de outros milagres?

António de Vasconcelos (1860-1941) um incansável investigador de arquivos antigos, na sua insígne obra «Rainha Santa Isabel», não obstante descrever as obras e actos caridosos da rainha, não diz uma única palavra sobre o «milagre das rosas», nem Sebastião Antunes Rodrigues em «História Popular da Rainha Santa Isabel». Reinhold Schneider (Baden-Baden, 1903 – Freiburg, 1958), que conheceu Portugal, tendo escrito sobre Camões e Nuno Álvares Pereira, na sua obra «Santa Isabel da Hungria (Santa Isabel da Turíngia)», ed. evoramons, 2005, apenas na pág. 23 escreve, entre descrição fora do assunto de taumaturgia: «a narração do milagre das rosas, que inicialmente dizia respeito à infância de Santa Isabel, transpôs a miséria e misericórdia originárias desta missão para o casamento». Uma abordagem assim, sem mais nada, parece sumida ao pé das Rosas de Isabel, rainha de Portugal. Muito embora existam crónicas do milagre moedas em rosas (Coimbra) e rosas em moedas (Alenquer), estando este último bem patente num baixo-relevo logo defronte da entrada principal da Igreja de Santa Clara-a-Nova, não se vislumbra contudo em registos antigos a cena do pão para os pobres, escondido no avental, transformando-se depois em rosas. O que leva a pensar que a tradição popular colocou pão no lugar de moedas, talvez porque pão – ao invés de moedas, que nos lembra tesouraria – tem um sentido maternal de quem alimenta a pobreza. Todavia, não altera o que se segue sobre o sentido profundo dos dois milagres complementares citados.

 

 

Chegámos ao ponto essencial para melhor entender a carta de António Telmo. Se a tradição e o segredo se coloca – segundo M.E.S. e outros – no judaísmo popular, porque não considerá-lo também em gnoses como a Alquimia ou outra escola esotérica que venha desde os tempos egípcios e gregos? Desde a primeira educação na corte de Aragão, à absorção de uma cultura que ia da Botânica à Música e à Medicina, as personagens notáveis que conheceu, aos desígnios de ser esposa de D. Dinis, a chamada «operação inversa» (conhecida dos verdadeiros esoteristas), está bem patente nas citadas cenas de transformação (transmutação) das moedas em rosas (Coimbra) e das rosas em moedas (Alenquer). Quando não se entende isto, fica incompleto o conhecimento daquela “anónima” que tendo pronto o hospital-hospício pouco tempo antes de falecer, pediu que a sua inauguração fosse apenas logo depois da sua passagem ao outro mundo. Insistimos na «operação inversa». Assim, António Telmo, sibilinamente, chama ao assunto a leitura de «O Burro de Oiro» de Apuleio. Na verdade, tudo indica que «comer rosas» esteja no mesmo meandro de transformar pão em rosas, ou rosas em moedas. Telmo vai mais longe: «A relação da Rainha é com obreiros e não com pobrezinhos, com seis membros da Maçonaria operativa. Ela, tal como Santa Maria, só pode significar, pelo milagre, a mediação de Shekina ou do Espírito Santo, esplendorosamente expressa no símbolo da rosa pelo qual Lúcio regressou ao estado original».

 

Max Heindel em «Os Mistérios das Grandes Óperas» (edições Alfaómega, Lisboa 1979), sobre o mito de Fausto, de Goethe, chama a atenção para a mesma questão: «Quando da primeira aparição de Mefistófeles, no Fausto, Goethe ensina-nos a verdade esotérica que consiste em saber que um Espírito, quando entra por uma porta terá de tomar o mesmo caminho de regresso. Fausto não trilha o caminho regular da iniciação, não obteve nem a admissão nem a ajuda dos Irmãos mais Velhos; a sua impaciência faz com que escolha a porta errada». Fausto desespera e não fosse o cântico celestial de domingo de Páscoa, teria tomado a ampola de veneno. «Está condenado ao desapontamento por contar, essencialmente, com os outros». Mas Fausto não desiste e pede a Lúcifer que o ajude. «Este não teve dificuldade em penetrar no escritório de Fausto; porém, quando intenta voltar a sair, verifica que uma das pontas [do pentagrama] lhe barra a passagem. Pede, então, a Fausto para deslocar o signo, ao que este responde: - o pentagrama causa-te problemas? Hi! Diz-me lá, filho do Inferno, se o signo te esconjura, como é que conseguiste entrar aqui? Como é que um espírito como o teu cai em semelhantes armadilhas? Por que não sais tu pela janela?» É claro que esta cena mostra também a diferença das duas magias que o ser humano pode praticar, mas o que importa realçar é que só um profundo conhecimento (que pode ser iniciação) confere o sentido inteiro da polaridade e da ordem. Depreende-se que um dos milagres da Rainha Santa não poderia existir sem o outro. Neste caso, a porta é a mesma, ou seja, a porta representa um verdadeiro saber específico (iniciação) que é a senha, e que, hoje, no mundo temporal, mas nos antípodas do espiritual, se conhece pela prosaica expressão “pass-word” na mais corriqueira tarefa.  

 

 O que a Rainha Santa operou em toda a sua vida não foi uma vivência palaciana, ao jeito de tantas outras que a história regista, e muito menos um saber de enciclopédia. O povo diz que «El-rei D. Dinis fez tudo quanto quis», mas não menos verdade foi que Isabel, vistas bem as coisas, para além das naturais limitações físicas, terá feito tudo quanto quis!

 

(*) Publicada em A AVENTURA MAÇÓNICA – Viagens à Volta de um Tapete (2011, Zéfiro)

 

Coimbra, Solstício de Junho, 2020