VOZ PASSIVA. 92

26-07-2020 13:00

Damos hoje a conhecer aos leitores uma recensão de Filosofia e Kabbalah até agora omissa na bibliografia passiva de António Telmo. Trata-se de um escrito não assinado, originalmente publicado em A Capital, de 1 de Abril de 1990.  

 

 

Fontes Judaicas - Redescobrir a «Kabbala» pela mão de António Telmo[1]

 

Investigador livre da «kabbalah», assim ortografada por vontade do autor, o escritor e filósofo António Telmo pertence à escola da filosofia portuguesa que se diz, na história das ortodoxias ocidentais, portadora de uma heterodoxia natural. Quer dizer: seria assim como uma coisa de nascença, que ou se tem ou se não tem. E nós, portugueses, temos.

O pensamento de António Telmo não é, portanto, à partida e à letra, acessível ao leigo, suficientemente contaminado pelas ideologias europeias que nos têm invadido através dos séculos dos séculos, ámen. O livre filosofar de António Telmo pressupõe não só uma nomenclatura especial, não encontrável no «marketing» das ideologias que se vendem e fazem vender, mas também um terreno cultural diverso das ideologias dominantes.

Telmo, o filósofo, parece encontrar essa nomenclatura, esse discurso, esse ponto de referência e essa heterodoxia nas fontes judaicas do nosso portuguesismo. No sefardismo «kabbalístico», como dizem as fichas enciclopédicas. E é nesse caudaloso rio do judaísmo ibérico, com sua vertente esotérica sempre latente, que o autor da «Gramática Secreta da Língua Portuguesa» se apoia para a tarefa tremenda e ciclópica que é pensar livremente em Portugal, País de todas as servidões e polícias mentais. Filósofo, para o escritor, é assim apenas o que filosofa, lapalissada que talvez o não seja tanto como parece. É que sendo filósofo «apenas» o que filosofa, isso pressupõe que ele não propõe nem impõe um sistema já arquitectado, o que na prática corresponde à derrocada de todas as escolas, academias, universidades e outros antros do negócio.

 

Nexo estruturante      

Com o livro «Filosofia e Kabbalah» (*), feito de apontamentos aparentemente desconexos, é a linha de liberdade e coerência interior que dá à filosofia de Telmo o seu único nexo estruturante. Não há sistema, há um rio heraclitiano que corre. Em obras anteriores como a «História Secreta de Portugal» e a já citada «Gramática Secreta da Língua Portuguesa», é ainda a vida das palavras e as raízes da língua portuguesa que movem o investigador. Daqui à «Kabbalah» vai um voo de águia.

Assumindo explicitamente a herança do filósofo Álvaro Ribeiro, que considera seu mestre, António Telmo parece adoptar a máxima de José Marinho que orienta hoje outras personalidades da filosofia portuguesa, tanto como o criacionismo de Leonardo Coimbra ou o saudosismo de Pascoaes. «Tudo já foi pensado, agora só precisamos de hermeneutas» teria dito José Marinho. «Mas – replica António Telmo – a hermenêutica é a mediação do visível para o invisível ou, como gostava de exprimir-se o mesmo filósofo, do patente para o oculto.» Daí o seu mergulho nos labirintos cabalísticos, exercício físico que torna esta obra não só salutar e higiénica mas terapêutica no melhor sentido. Só um senão: se o cristianismo era uma doença histórica, a verdade é que o judaísmo, mesmo sefardismo, não ajuda muito à cura. Até pode ser que agrave, como se deve ajuizar pelo capítulo que Telmo dedica, na esteira de Álvaro Ribeiro, à «valorização do sacramento do Matrimónio sobre o sacramento da Ordenação». Livra! Antes o cristianismo devidamente desinfectado, então!

 

Públicas vantagens das secretas cabalas

Publicamente, este pensamento pró-cabalístico tem vantagens higiénicas pelas críticas que faz às teias de aranha das nossas instituições. Ao estudar as «tradições heterodoxas da filosofia portuguesa», por exemplo, o autor da «Filosofia e Kabbalah» tem necessariamente de criticar o «ensino público» e isso faz sempre bem à saúde pública, especialmente mental. «No ensino público onde se dão – segundo o autor – os filósofos atrás uns dos outros, em dois, três meses, esquecendo a profunda, constante, demorada, no entanto instantânea, vivência de toda a vida a pensar, criar e compreender o próprio pensamento. Quem ensina Hegel e o discute, não pode evidentemente confessar aos alunos que o não compreende.» Pois é, António Telmo: há mais quem se queixe do mesmo.

Utópica em vários sentidos, a «démarche» dos filósofos portugueses, entre os quais António Telmo é já figura relevante, defronta-se com uma dificuldade de fundo, entre outras: as influências que nos rodeiam como povo, até ao subconsciente colectivo, não são, infelizmente, Leonardo Coimbra, José Marinho, Bruno, Álvaro Ribeiro, António Quadros, Pascoaes, Agostinho da Silva, Teixeira Rego e muito menos o «Zohar», o livro do esplendor ou a «Poética» de Aristóteles. Somos hoje uns desnacionalizados filhos (às vezes da mãe) de Descartes, Kant, Hegel, Marx, Comte, Freud, Darwin, Pasteur, Pavlov e outras tão grandes aberrações como estas. Afirmar uma «heterodoxia» portuguesa no meio do mercado onde se vendem só estas ideologias, estes ismos, estas ortodoxias que se internacionalizaram, parece tarefa para muitas gerações. Defrontar as «internacionais do Terror» só com o saudosismo de Pascoaes, o criacionismo de Leonardo, o neocabalismo de Telmo, ou até mesmo o neo-hegelianismo de Orlando Vitorino, não será culturalmente suicida?

Os homens da filosofia portuguesa, muito prestáveis no seu conjunto e se lidos com os óculos da complacência, terão no entanto que aguentar, ainda durante muito tempo, a incompreensão e o sorriso irónico da arrogância positivista, vírus muito mais persistente e inoculado na nossa vida mental do que a SIDA.

De anatemizar o positivismo não se esquece António Telmo, ao afirmar: «É uma triste situação a nossa esta de portugueses, de nos vermos obrigados a relegar para a poesia o estudo de tão altos problemas. Ali tudo é admitido, até porque se não toma a sério. Por influência dos positivistas, dando a este termo a máxima extensão, o homem português procede como um ser duplo, cindido entre a “razão” e a “imaginação” e terá de ir buscar à autoridade de uma disciplina estrangeira a convicção de que lhe é permitido meditar em prosa quando verdadeiramente lhe importa. Assim, neste passo, é a Freud que recorremos.» Também aqui, António Telmo, há mais quem se queixe do mesmo.

Digno do melhor pensamento radical-ecologista é o capítulo «Como a perversão na linguagem leva à demência na sociedade», texto extremamente perspicaz deste escritor que, ao publicar «Filosofia e Kabbalah», nos deixa um dos livros mais desafiantes do ensaísmo português nos últimos tempos.

 

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(*) «Filosofia e Kabbalah», de António Telmo, Guimarães Editores, Lisboa, 1989.     

    



[1] Nota do editor – Publicado, não assinado, originalmente em A Capital, de 1 de Abril de 1990.