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VOZ PASSIVA. 138

06-11-2023 16:51

Guerra Junqueiro na visão de Pinharanda Gomes, José Marinho e António Telmo

Eduardo Aroso

 

Tua carne de fluidos e metais

É a carne-embrião do mundo todo,

Das águas e das rochas e do lodo,

Que foram nossas mães e nossos pais!

Por isso lanças para nós teu grito,

Por isso voam para nós teus ais!

 

Oração à Luz

 

No ano em que se comemora o centenário de Guerra Junqueiro (1850-1923) e o mainstream nacional pouco ou nada se importa com isso, só um punhado de portugueses ainda o sente como um (a par de Pascoaes), dos últimos poetas da natureza, se apenas nos quisermos situar neste seu timbre. Das suas facetas pouco conhecidas, do que hoje se chama científico, mesmo de insólito e de outro género, deixo para aqueles que bem se adentram nesses campos, tal é o caso do Prof. Joaquim Fernandes. Por isso louvemos, na admiração ao poeta, também os que se esforçam por recordar aquele que, de Freixo de Espada à Cinta, tinha sempre a sua pena em riste quando exprimia o seu republicanismo de veia portuguesa, ou a pena como puro arado, ou círio ardente, quando escrevia, por exemplo, Oração ao Pão e Oração à Luz. Odes onde a narrativa nunca deixa cair ou esmorecer a exaltação da poesia, versos em que as forças naturais parecem conjugar-se para que o poeta as desoculte e as cante. Junqueiro assim no-las mostra, em carne viva, na dureza da rocha que é sentida como anjo que um dia há-de ser, mas ainda petrificado, ou na seiva de uma planta que não é tão distante do sangue da águia que cruza os céus. O poema só não é pagão no melhor sentido do termo (dir-se-ia aquele incarnado por Pessoa), porque é repassado da nossa tradição hebraico-cristã. Poema onde qualquer inerte ou não inerte pode ser altar, na aparente rudeza do chão e o gorjeio de uma ave lançada como hossana, tudo repassado cosmologicamente pela mão do Criador.   

Quando se diz de Junqueiro, a par de Pascoaes, ser dos últimos poetas da natureza, trata-se da natureza que é invocada e responde, ao invés dos poetas que, muito embora o sejam de boa estirpe, a evocam ou simplesmente a fotografam, num acto compulsivo característico de uma época de turistas sempre de máquina na mão, pelo que, nessa ânsia, não se demoram o tempo mínimo para sequer nela se concentrarem e senti-la.

No texto introdutório de Oração ao Pão, Oração à Luz (magnífica edição gráfica da Lello Editores, 1997), Pinharanda Gomes (1939-2019), numa apreciação global do poeta, fala-nos do seu proverbial anticlericalismo (ou talvez não) perante «intelectuais católicos que se limitaram a assumir o pré-conceito face a Junqueiro e se lhe encomiam a obra poética, lhe limitaram o mérito por causa das arremetidas do seu espiritualismo combativo». Considerando a sociedade daquele tempo, parece ter sido necessário tanta arremetida, pois acrescenta ainda Pinharanda: «Viveram-se dias difíceis, em que os cristãos, e de modo especial o clero, se orientaram não tanto para os desafios sacrificiais da Escritura, mas para as promessas e estratégias do Ministério do Reino e do Ministério da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos». Na verdade, o gume que há na pena junqueirina é tão-só o ímpeto «para acordar a santidade adormecida dos crentes e dos seus pastores». No que diz respeito sobretudo em Oração ao Pão, Oração à Luz, «Junqueiro é um criador de oração e, diremos, um promotor da poesia para a oração, para uma poesia assumida de modo querigmático e de alcance soteriológico». E se mais nos adiantássemos logo veríamos que, por exemplo, em Os Simples, para além da moldura rústica que os preenche, repassa-os dir-se-ia um cristianismo franciscano, de vidas singelas, naquele jeito comovedor com que Eça de Queiroz finaliza o seu genial conto O Suave Milagre, quando a criança inocente, doente, «erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam e embrulhada em negros trapos» pede à mãe, desgrenhada, para ver Jesus e este, «abrindo devagar a porta e sorrindo» diz: «aqui estou».

José Marinho (1904-1975) também não ficou indiferente a Junqueiro. Num dos seus escritos sobre o poeta, diz-nos que: «o íntimo pensamento de Junqueiro exprime-se num contraste que, de diversos modos, caracteriza outros homens representativos do seu, do nosso e de outro tempo». Esta simples afirmação faz-nos ver de imediato o contraste que há, por exemplo, em A Velhice do Padre Eterno e Oração ao Pão, Oração à Luz. Para Marinho, na compreensão dos poemas de Junqueiro há que atentar «onde existe a presença intencional do poeta e naqueles onde essa presença intencional não existe». Desocultando a sua poesia, continua: «é muito difícil escrever hoje sobre Guerra Junqueiro como sobre os homens verdadeiramente grandes do nosso país. O grande torna-se pequeno na falsa perspectiva do juízo dos medíocres. E onde a mediocridade se faz juízo e crítica não há perdão para a grandeza. Tem esta de ser medida por baixo estalão. (…) Nós devemos agradecer a Junqueiro ter levado ao limite a sátira contra o catolicismo e contra as formas degradadas da vida religiosa» e até como ele «desmentiu os seus veementes sarcasmos da juventude. Devemos agradecer-lho porque os livros sagrados frisam bastante explicitamente a necessidade de o catolicismo entrar de vez em quando em purgação. (…) Sem dúvida, a mais profunda tradição de Junqueiro vai passar para Teixeira de Pascoaes». José Marinho lançou esta sentença de vera tradição, a que corre nas veias da filosofia portuguesa, neste caso tradição poética. Afirmação de tal ordem certeira que figuras destacadas do pensamento português da segunda metade do século XX se ocuparam profundamente da linha poética aurífera do poeta do Marão.

 António Telmo (1927-2010), voltou mais a sua atenção para Régio, Pascoaes e Pessoa, não esquecendo um Eugénio de Castro ou até um Carlos Queirós. Mesmo assim, na obra Viagem a Granada, o filósofo de Razão Poética como que irmana Sampaio Bruno e Junqueiro como pedras-angulares do século XX. Ouçamo-lo: «Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro representam, de facto, o binómio que, por irradiação, virá formar, no século XX, o hexagrama central do pensamento português, no diálogo sucessivamente renovado com a poesia. Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, José Marinho e Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e José Régio não teriam podido ser o que foram sem o fulgor nascido do encontro daqueles dois». Acrescenta que neles (em Bruno e Junqueiro), «está a força propulsora, pela fascinação da Ideia, do criacionismo, do saudosismo e do futurismo que marcaram a doutrinação dos que se lhe seguiram, por vários modos trazendo ao domínio do pensamento a religião da Pátria».

Em História Secreta de Portugal (a ler e reler), capítulo VIII, António Telmo, tratando da ocultação da natureza como «um dos fenómenos mais significativos do fim de um ciclo» fala-nos do moderno «sentimento fotográfico da paisagem» incarnado por Alberto Caeiro que «parece ter pretendido, entre outras coisas, resgatar a natureza de um romantismo que a personifica e macula de alma e sentimento». Diz Telmo que em Caeiro «a revelação é imediata sem passagem pelo negativo».  E adverte para «o fascínio da imagem que imobiliza o espírito». A invocação da natureza, com todos os medos e outros obstáculos em Pascoaes «chama e atrai a coisa invocada, mas ao mesmo tempo põe um certo espaço entre ela e quem a invoca, como se as próprias palavras invocatórias, projectando-se, criassem também o lugar da aparição. O poeta está dentro do círculo». (…) Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se. (…) Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela».  

Se Telmo se debruçou essencialmente na obra de Pascoaes, no legado de Junqueiro apontado por Marinho, o filósofo de Estremoz parece ter lançado luz sobre dois poetas da natureza de linhas diferentes, Pascoaes e Caeiro, ao mesmo tempo que nos mostra por uma subtil hermenêutica que a tradição que Pascoaes ainda incarna, parece ter ficado em suspenso. Suspensão, intervalo ou interregno como o Portugal por cumprir? Poderíamos apontar outros dois ou três grandes poetas do século XX, próximos também da natureza, que a entrelaçaram e exorbitaram, com imagens de elevada poesia e ritmos pessoais, mas sem aquela ventura e força de alma ungida por um fatum escatológico, que tomam conta do poeta para o que mais importa do transcendente.

 

Outubro de 2023

CORRESPONDÊNCIA. 65

14-10-2023 18:17

Carta de Max Hölzer para António Telmo de 7 de Setembro de 1977 

 

Mon cher António Telmo − [i]

 

Ce temps, après mon retour, a continué d’être identique à tous ces processus dans lesquels vous m’avez bien trouvé engagé – mais ça ne va pas, visiblement, sans certaines difficultés qui consistent, entre autres plus grâves, aussi en « rechutes » de la santé – ainsi que votre lettre m’est parvenue à un moment où je ne pouvais pas vous répondre immédiatement. Je vous en remercie de tout cœur. Et pourquoi ne pas avouer qu’elle était – plutôt est une joie pour moi (et en ce moment, même une certaine  « consolation » éssayait de se répandre en moi…), et surtout que cette compréhension vient de vous. Pardonnez-moi, donc, que je ne vous réponds qu’aujourd’hui, et que ces lignes ne vous joignent qu’après votre retour à Borba. Je dois tracer une ligne nette, moi, entre l’enseignement que je veux transmettre, et un tel « écrit », même « articulé en onze points » : là où nous sommes en générale dans notre travail, tout mélange avec les expressions d’autres courants devait être évité, parce que la connection [sic} ne peut se faire authentiquement à partir de la « source » commune, c’est-à-dire, à partir d’une certaine «réalisation » − qui voit par expérience le sens du courant transmis par G. Si vous trouvez une certaine connexion, si vous, comme vous me dites, avez pu en profiter, j’en suis très content, et tout-à-fait d’accord, mais je ne peux pas attendre le même des autres. Moi, j’en pense, pour moi, comme vous. (Bien entendu, il y a des points dans cet « écrit » qui reflètent très superficiellement et sommairement l’enseignement, qui donnent des « mots » et des concepts seulement, et dans un raccourci indéfensable… : mais c’est un texte « mélangé », pour des lecteurs « mélangés » aussi. Reste un malaise )

Je suis sûr que vous me comprendrez, et je ne veux pas ternir votre « joie » qui se doit à tout ce merveilleux que j’ai cité, que j’essayais d’évoquer – et qui est destiné à vous.

7.9.77



[i] A data vem no final da carta.

 

DOCUMENTA. 10

14-10-2023 17:11

A 21 de Março de 2009 era lançado, com a chancela da editora Serra d´Ossa, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, Universalidades, o primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, revista de que António Telmo foi mentor e da qual viriam ainda a sair mais cinco números, dois dos quais com a chancela da editora Zéfiro.

Graças a João Augusto Aldeia, membro do nosso Projecto, é hoje possível publicar, da sua autoria, algumas fotos, que cremos estarem inéditas, desse lançamento e dos momentos que o antecederam.

Paulo Santos, Pedro Martins e António Telmo na Rua Jorge Nunes, em Sesimbra 

António Telmo e António Reis Marques junto à entrada da Biblioteca Municipal de Sesimbra

António Telmo, António Reis Marques e Maria José Albuquerque junto à entrada da Biblioteca Municipal de Sesimbra

António Telmo, Anahi Braia Vitorino e Maria do Resgate Almadanim na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra 

 

VOZ PASSIVA. 137

11-10-2023 10:25

Aproximações ao pensamento poético de António Telmo - notas iniciáticas

Francisco Soares

 

 

 

‘‘language was not a

mere string of words. It had a suggestive power well beyond the immediate

and lexical meaning. Our appreciation of the suggestive magical power of

language was reinforced by the games we played with words through riddles,

proverbs, transpositions of syllables, or through nonsensical but musically arranged words...”

(Ngugi wa Thiong’o, Decolonizing the mind, 1986)

 

 

 

Nota pessoal

António Telmo viveu em Moçâmedes (Namibe), cerca de cinco anos, na primeira infância. Nesses casos é comum que o sol do deserto sul africano fique para sempre dentro da cabeça das crianças. 

Conheci-o pessoalmente em Portugal e nunca falámos disso. O que na sua obra me interessa é a definição de pensamento poético e a consequente Arte Poética - mítica, heterodoxa, cabalística e intimista (numa aceção muito particular). Andando com ela, experimento um caminho diferente do que os meus leitores habitualmente percorrem nestes ensaios. 

Não me interessei nunca por filósofos e poetas que não conheceram nem experimentaram a vida, a surpresa, o desafio de peito aberto ao perigo. Acho que falsificam a vida, logo a verdade. São filósofos de chinelas e poetas de pantufas. Não querem sentir a temperatura sequer. Mas agora me despeço do sátiro. Usarei palavras sérias.

 

Começo pelo jogador, pelo caçador, pela experiência do perigo e do faro. Refiro-me a que António Telmo era jogador exímio (de cartas, snooker e bilhar), a par de caçador intuitivo e doutrinado. Por isso vou seguir atrás dele, eu, minha pessoa, ao mesmo tempo cão e macaco. Porque era António Telmo um notável contista? O que vou ler-vos procura uma resposta. 


Abro parêntesis para uma nota confessional. Entre os pensadores mais elevados do movimento da Filosofia Portuguesa, identifico-me bastante mais com José Marinho, procuro seguir “a via iniciática de olhos bem abertos”. Está na base do anarquismo místico e da monarquia poliglótica esta postura. São duas emanações de que o nosso evocado e invocado me parecia dar nota subtil: anarquismo místico e monarquia poliglótica. Torno minhas as palavras do arqueólogo Manuel Calado: “se tivesse de definir as posições políticas do António Telmo, eu diria que ele foi, sem o assumir, um libertário”. Percebo, talvez mal, que Telmo nunca tenha explicitado isso: era demasiado restritivo para um verdadeiro libertário do pensamento. 

Fecho parêntesis para uma última nota: o texto a seguir é uma continuidade do que fui lendo. Uma prossecução criativa, por um processo de que também falamos adiante. 

 

Arte poética

Também na caça e nas cartas houve silêncios, intuições e mestres (irmãos mais antigos). Aos pés do Mestre as duas colunas do Trono, sendo Leonardo o Trono, Marinho e Álvaro as colunas (porque um se nomeia pelo apelido e outro pelo nome próprio? Não consigo intuir). Álvaro Ribeiro, o aristotélico, e José Marinho, o neoplatónico. 

“Os dois defendiam, porém, o valor da imaginação e da intuição, e ensinavam que o princípio da filosofia é a ideia de Deus.” Experimentada? “A ideia é vivência da qual nenhuma imagem pode ser a alegoria” – diz Telmo que segundo Leonardo Coimbra.

 

A teoria poética (de criação, pensamento e leitura) de António Telmo vai, portanto, alicerçar-se na imaginação e na intuição, tendo sempre como sombra tutelar e alimento “a ideia de Deus”, ou seja, “o princípio”, a cabeça, a Arka. E trazendo-nos sempre o marulhar obscuro e estruturante dos ritmos, das vibrações sonoras, marimbas e flautas.

Sendo a sua uma poética libertária do conhecimento e o conhecimento sendo poético, pelo peso de ouro que liberta as visões e os escravos, “a analogia é o método ocultista de conhecimento, ao pretender pensar o invisível pelo visível, encontrar a espécie e o género”. É o que faz a arte poética através da palavra.

 

O que é a palavra? Palavra como captação, palavra enquanto energia e trânsito.

Cito o nosso recordado e relembrado António Telmo: “as palavras, como forças de incorporação e de subtilização, atuam no plano mental, substantivando e verbalizando as energias.”

 

Como lavrar a palavra?

Essas palavras poéticas existem por ritmos, como tudo na vida, desde o imensurável ínfimo à relação inédita com o superior imensurável que é a transcendência. Por esse “tudo na vida”, ritmado, a poesia serve a recordação, a lembrança, a saudade. Do mais ínfimo acidente ou pormenor, elas nos levam para algo extraordinário: a presentificação.

 

O uso doutrinado dos ritmos ativa as imagens do pensamento e do movimento, organizadas por uma gestalt holística. “Dupla é, pois, a função do ritmo: – de invocação e de sugestão” (Arte poética, p. 40). As oscilações rítmicas articulam a poesia, a palavra-verbo, com as energias subtis e fundamentais cujas variações, mínimas, estruturam a vida no universo-multiverso e, portanto, no nosso corpo-memória, que é a sinédoque do mundo animado.

Essa articulação é uma concordância dinâmica, simultânea à nobreza da perceção da música dos mundos. A simpatia de que fala Telmo, penso que se sustenta no acordo rítmico, na oscilante e contínua vibração que perpassa por nós todos, aqui, por exemplo.

 

Há que pensar ainda o ritmo sonoro, das alternâncias entre sons e pausas, e o da luz, ou das alternâncias, aparentemente contrastivas, do luminoso e do obscuro. Ou seja, levar em conta o ritmo das imagens a par e de cordo com o dos sons, ambos articulados pela verbalização, no alentado sentido ‘télmico’ da palavra. A verbalização, simultaneamente, apaixona e ativa.

 

Matéria e memória, a poesia deriva “daquela preexistência visionária” que é a verdadeira origem da única Poesia. “A oposição adâmica de um nome a um ser torna-o exterior a nós, mas designá-lo pelo verbo equivale a captar por dentro a energia interior que nele se manifesta, a vê-lo interiormente, como se fosse uma emanação do nosso próprio ser.” (Arte poética, p. 35) Neste apurado sentido ascético e sensível, o poeta é um possesso e um visionário, inspirado e fantasmático, ativando potências e potenciando o que parecia acidental por reconhecimento, ou nobreza na via da máscara, da pessoa. O nobre poeta, o único poeta verdadeiro, aquele que não é de papel, conhece, por relação, o que se esconde e o que se mostra, seu ouvido interno captando o marulhar das águas primordiais ao mesmo tempo em que alumbra.

 

A palavra-verbo incorpora, por tanto, a imagem. A imagem pode ser a pedra filosofal: o poeta lhe dará música. “As imagens são dispositivos de captação de energias subtis”. (Arte poética, p. 44) Alquímicas palavras.

A analogia é também um complexo de imagens, ou, se preferirmos, uma imagem composta e complexa. Importa, portanto, considerar, a relação entre a palavra-verbo e a imagem – na esteira do que ele próprio fez ao longo da vida.

 

Entretanto, “superior à analogia é, para Bergson, a visão direta, ou a consciência direta”.

O que pode ser a consciência direta? A morte viva. A morte vivida em nós ao mesmo tempo que a vida.

“Não significa isso que queiramos propor uma poesia filosófica, mas temos de dizer uma filosofia poética.” – ou seja: ativa e meditativa, secreta e patente no mesmo passo. Criatividade inesperada, atenção dinâmica. Ir por aí. Verso, inverso e converso.

        

“Todas as manhãs” acordava antes de nascer o sol, procurava um lugar isolado para meditar: “harmonizar a luz refletida do sol com a minha essência.” Repito uma pergunta antiga: o que fazer?

A negação do mundo intermediário, da sua realidade, existência e objetividade, pela sua conexão com a fantasia, a mística, a intuição e o irracional, teria como consequência, a tornar-se completamente vitoriosa, a ruína da poesia e da filosofia e a suspensão do movimento essencial da alma que aspira à verdade. Esqueçamo-la, como quem vê uma figura envolta em mantos a sumir-se na poeira do caminho longe. Esqueça esse homem. Mate-o. Harmonize a luz refletida do sol e a sua essência caminhando.

 

A leitura

Ler é colhêr, com acento circumFlexo. O ato criativo é, simultaneamente, emergência e imersão, movimento que supera a nítida perceção do mesmo e do outro, como se a própria vida compusesse um oxímoro. Suportamos, carreamos, levamos, transportamos, neste mundo vivo, por intuição e perceção, o outro mundo, que está aqui, no meio de nós, connosco, reunidos em seu Nome, o que não conseguimos dizer nunca.

“Há uma constante nas sete bizarras interpretações, o serem todas de desvendamento do que está à vista e que por estar à vista ninguém vê.” Portanto ninguém nomeia (O livro das minhas invenções).

 

Como ler? – ao “realizar em nós um estado de vivência interna da natureza”, a Obra presente, a partir da qual sentimos a natureza como o «Todo Um»”, o “Caos-Mundo”, o único multiverso. A leitura anuncia, denuncia e constitui aquela 

 

 

Mágica serpente que infinitamente se devora a si própria (Arte poética, p. 70).

 

 

A experiência da serpente é também a experiência da colheita, a leituria. A compreensão da Obra enquanto manifestação e transmutação da Alma ou pela Alma, sob o sopro do Espírito, de que só nos apercebemos errante, fugidio, depois de ele passar, quando as folhas tremem ou vibram e nem sabemos bem porquê, sopro subtil que já se não vê, mas opera.

 

Perguntam-me os fantasmas que há em mim: então mas o ritmo, as imagens? Acho que nos falam da fixação e do movimento, poesia-relação que, animada, aviva “o sistema ósseo, o sistema nervoso e o sistema sanguíneo sempre postos em correspondência com determinadas formas do mundo subtil e psíquico.” (Arte poética, p. 71).

 

Em Antero de Quental, a imagem não é vivência ou símbolo, mas alegoria. O exemplo mais alto de filosofia poética é o de Leonardo Coimbra, aliás o pensador mais odiado por Sérgio e por Salazar. Nele, a ideia é a flor enorme que abre na floresta esplendorosa da imaginação; a ideia é vivência da qual nenhuma imagem pode ser a alegoria. E o ritmo estrutura a prosa por uma prosódia que propaga, aconchega e toca, obscura, por em, comunicante.

 

Nessa poética, e gnose, da leitura, a interpretação nunca perde o sentido do nome e do verbo, da etimologia e da filologia.

 

Por exemplo a sua recomposição do episódio do Adamastor a partir da bizarra etimologia do nome do Titan: Adão Astral. Intertextualiz0:

As três estrofes finais do Canto IV de Os Lusíadas, por essas e por outras, contendo as últimas imprecações do Velho do Restelo, que são a outra face da moeda em que está o Adamastor. Faz-nos pensar, esta leitura.

 

O Velho (Ancião?) invoca a sua Lei, a Lei justa, para condenar o Titanismo, dando como exemplo negativo o de Prometeu, roubando o fogo do céu para o meter no coração do homem. Fogo de altos desejos que move o coração onde arde. Faéton, que roubou o carro alto do pai (Apolo, o Sol) e Ícaro procurando atingir o Céu voando para fora do labirinto da vida, são segundo e terceiro exemplo do que não se deve fazer, cometimentos que vêm na esteira do pecado original de Adão, seduzido por Eva, seduzida pela serpente, a colher o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

Altos e nefandos são, segundo o Velho, tais cometimentos. Paradoxalmente, altos e nefandos.

 

Todavia, a Nova Lei que veio ou virá substituir a Velha Lei, é a da Graça e traz em si o movimento para o Amor. As imprecações do Adamastor coincidem com as do Velho. O Amor é sempre adolescente.

O Velho do Restelo como o Velho Testamento, em contraposição com os desvendadores do futuro. Uma sabedoria respeitável e ressequida contraposta à aventura do perigo e da experiência.

O Amor é a invenção por analogias e osmoses, avivando em nós a vocação de religar, unir, reunir, apaixonarmo-nos.

Aqui se manifesta o que vinha oculto no meu texto: o Amor, o que religa. Nessa exata medida, pitagórico e religioso.

Outros dois exemplos ainda para a ativação da teoria da leitura de António Telmo. O superior: O Bateleur. Não nos assustemos: o inferior (o que vem de baixo para cima): a interpretação da fotografia, depois da última lição de Leonardo Coimbra, na introdução inédita à Filosofia e Cabala. Por arrastamento, no mesmo texto, a interpretação do fresco de Rafael: A Escola de Atenas.

  

Fui

Falei do que me interessa. O caminho que percorri, lacunar e voluntário ao mesmo tempo que inesperado, acaba aqui, dando sinal de “onde o infinito se recolhe em si”. 

 

 

(o sítio Voz passiva: António Telmo Vida e Obra foi muito consultado para compor este texto. Além dele, dois livros do autor foram várias vezes lidos: Arte poética e Le Bateleur. Outros também, mas menos vezes - com particular intensidade, entretanto, Filosofia e Kabbalah Seguida de "Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica" e Outros Estudos)

 

DOCUMENTA. 09

04-10-2023 10:07

João Augusto Aldeia, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra e investigador de História local, descobriu recentemente, num arquivo de gravações de som de trabalhos que realizou para o jornal O Sesimbrense, de que durante vários anos, e até há bem pouco, foi Director, um ficheiro áudio com a gravação da intervenção de António Telmo durante a sessão de lançamento da edição da Zéfiro de Congeminações de um Neopitagórico, que se realizou na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 9 de Maio de 2009.

A notícia então publicada por João Augusto Aldeia na edição de Maio de 2009 de O Sesimbrense oferece-nos um excelente retrato da sessão:

Apresentamos agora aos nossos leitores a transcrição integral da intervenção de António Telmo, na qual se optou por se manter, tanto quanto possível, as marcas da oralidade. Trata-se de um documento relevante para o conhecimento da vida e da obra do filósofo. A João Augusto Aldeia, a nossa gratidão pela cedência desta gravação.

   

Da esquerda para a direita: António Telmo, Maria José Albuquerque (Directora da Bblioteca Municipal de Sesimbra), Pedro Sinde e Alexandre Gabriel

 

Bem, como é da praxe, eu começo por agradecer os sucessivos elogios que foram feitos à minha pobre pessoa, talvez com uma reflexão, uma reflexão breve que faça com que esses elogios não me façam mal.

Eu, realmente, sou uma pessoa afortunada. Sou uma pessoa afortunada. Cheio de êxitos. Os meus livros são lidos. Há pessoas que escrevem nos blogues saudações ao António Telmo. Já tive várias homenagens. Não chego aos calcanhares do Saramago, mas enfim… [risos] É entre os pequenos… é entre os pequenos que sou notado. Mas isso deve-se, isso deve-se a que eu tenho no meu horóscopo, na casa décima, planetas que dão necessidade de aventura às pessoas. Eu, por exemplo, tenho a Lua no alto do Céu. Isso deu-me uma pontaria excepcional na fisga, por exemplo. [risos] Não é meu mérito. Aqui em Sesimbra sabem isso, não é? Os mais velhos… Não é meu mérito… É porque a Lua, que é a deusa Diana, a deusa caçadora, se encontra no alto do Céu, não é? Por conseguinte, se há por aí alguém invejoso, não tenha inveja de mim, ahn?, porque tudo isso é determinado pelos nossos… pelas nossas cartas do Céu.

Agora, quanto ao meu livro, e como que em ressonância com o que o meu grande amigo Pedro Sinde disse sobre o livro, eu gostaria de saber onde está a Paula, onde está aqui a Paula… [Alexandre Gabriel: – a Sofia…] Ahn? A Sofia, pois… Não está? A Paula… Está a Paula… Bom, mas está cá… [Alexandre Gabriel: – eu transmito…] está cá o… Esta capa, esta capa  foi feita pela Sofia, que é a companheira do Gabriel, Alexandre Gabriel, e há aqui uma coincidência muito… que eu achei muito interessante, que é: Congeminações de um Neopitagórico, conforme observou a minha amantíssima esposa que está ali sentada, tem 13 – em Congeminações – letras. Em Neopitagórico – outras 13. Em de um 4. 13 e 13: 26; e 4: 30. O que é interessante é que aqui depois neste triângulo que está com os raios, contando os raios, tem também 30 raios, 30 raios… Isto é uma janela, mas só se pode entrar por esta janela, nesta casa, depois de ter lido o livro todo, ahn? Quem não ler o livro… Quem entra por esta janela…

Bem, agora, uma coisa autobiográfica. Eu fiquei impressionado com este olho que vem no triângulo, porque não só é muito parecido com o meu olho esquerdo, como também me aparece de noite naquela… naquele período em que estamos para adormecer, chamado… chamado período pré-hipnótico, em que a certas pessoas, e eu sou uma delas, vão surgindo imagens, imagens antes de adormecer, e a mim aparecem-me frequentemente muitos olhos, muitos rostos… e um dos olhos que me aparece frequentemente é este… é este que a Sofia pôs aqui, ahn? é este… Mais: tenho um medo dele tremendo! [risos, palavras imperceptíveis]

Ora, diz o Carlos Castaneda, que foi referido há bocado pelo Pedro Sinde, quando o Castaneda, que é discípulo do índio, diz ao índio que lhe aparecem olhos antes de adormecer, o Don Juan, o índio, diz-lhe: – É por esses olhos que tu podes entrar para o mundo do desconhecido, para o mundo [palavras imperceptíveis].

Ora é por isso que o olho que eu vejo de noite, faz medo, porque por trás dele estará o verdadeiro mundo, e o verdadeiro mundo não é para brincadeiras. Já este não é para brincadeiras… [risos]

Quanto ao ver as evidências, eu termino com uma coisa humorística, uma coisa humorística… que é o poder das evidências, que a gente nunca vê… Por exemplo, quando olhamos para um rosto, nunca reparamos nas orelhas [risos]. Reparem bem… Reparem bem nisso! Os olhos da pessoa, não é, os olhos das pessoas como que cativam a nossa atenção, a nossa atenção, e não reparamos que têm todas orelhas, olhem para mim, não é? Quando se olha e vê-se as orelhas, começa-se a pensar se o Darwin não terá razão… [risos] não terá razão… Eu não acredito que a gente tenha nascido… tenhamos sido macacos [palavra imperceptível]… Se algum de vocês aceita esta doutrina, então muitos parabéns, ficam muito bem servidos! [gargalhadas, aplausos]

 

VOZ PASSIVA. 136

04-10-2023 09:53

A anteceder a sessão “António Telmo em Évora”, que se realiza no próximo sábado, dia 7, a partir das 15:30, no Auditório do Convento dos Remédios, em Évora, publicamos hoje o testemunho que, sob a forma de uma carta ao filósofo da razão poética, Armando Carmelo nos deixou de António Telmo.

Telmo e Carmelo conheceram-se em 1965, em Estremoz, numa tertúlia sediada no célebre Café Águias d’Ouro; mas foi no Redondo, a partir de 1971, que ambos estreitaram decisivamente os laços da sua amizade, empreendendo a criação da Escola Preparatória do Redondo, “a primeira escola democrática de Portugal, antes do 25 de abril”, no dizer de Telmo, que foi o seu primeiro director.

O texto, inédito, que hoje se publica foi lido pelo seu autor em 15 de Novembro de 2014, durante a sessão de apresentação de Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo na Biblioteca Municipal de Redondo, sediada no belo edifício da primeva Escola Preparatória desta vila alentejana. Agradecemos a Elísio Gala, membro do nosso Projecto, a obtenção, junto da família de Armando Carmelo, do respectivo manuscrito e da autorização para a sua publicação e o auxílio que nos prestou na fixação do texto.

Armando Carmelo, sentado, durante a apresentação de Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo, em 15 de Novembro de 2014, na Biblioteca Muncipal do Redondo

 

 

Carta para António Telmo

Armando Carmelo

 

Meu caro António Telmo

 

Imagina lá para o que hoje me havia de dar… Escrever-te uma carta como sempre desejei fazer a dar-te conta dos meus pensamentos e a lembrar-te da nossa aventura conjunta de fazer uma escola na Vila de Redondo.

Conhecemo-nos nos inícios dos anos 60 do século passado. Sítio? Uma mesa no Café Águias de Ouro sede de uma alegre tertúlia que se dedicava à leitura, à conversa, à troca de ideias e a estranhas incursões no campo das artes divinatórias.

Do grupo, faziam parte, além de nós dois o Malaquias Pimenta, ao sábado, quando se deslocava a Estremoz para dar consultas de odontologia, o escultor Rocha Correia que te acompanhava nas tuas aventuras cinegéticas, o advogado Rodrigues Pereira, especialista em grafologia e em hipnotismo (tinha mesmo um hipnotizado de serviço que nas horas vagas se entretinha a arranjar aparelhos de rádio), o Rui Pacheco que nos intervalos da venda de carros se dedicava à fotografia, o Aníbal Alves meu especial companheiro e amigo, homem de sete ofícios e livreiro encartado.

Tu dedicavas-te mais ao domínio das palavras, escrevias livros de leitura atraente e encantatória. E pensavas em silêncio. Por vezes com tanta intensidade que não precisavas de falar para dares a conhecer os teus pensamentos.

Por essa altura, a actividade do meu grupo restrito de amigos dedicava-se de corpo e alma ao estudo e divulgação da nossa actividade cineclubista. O grande impulsionador dessa actividade frenética fora o Tiago Janeiro Acabado, professor da Escola Secundária que nos tinha levado à criação do Cineclube de Estremoz que não limitava a sua actividade a meras sessões de cinema para sócios mas antes a alargava a exposições, conferências, encontros, edição de escritos e participação activa na imprensa local – Brados do Alentejo, Jornal de Estremoz e Eco de Estremoz.

Não me lembro de ter encontrado em ti grande entusiasmo pela arte cinematográfica e poucas vezes incluí o meu entusiasmo pelo cinema nas nossas conversas.

Falámos, isso sim, muitas vezes e com muito interesse teu no estudo da ASTROLOGIA.  

Chegaste mesmo a fazer-me a minha carta do Céu com base na qual o José Luís Conceição Silva, grande entendido em astrologia e a meu pedido, me predisse que eu faria muitas pequenas viagens e nenhuma viagem de vulto. E como sabes assim aconteceu, pois passei trinta anos da minha vida a trabalhar numa biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian e todos os dias eu fazia uma pequeníssima viagem.

Um dia, em 1966 partiste rumo a Brasília. Por convite de Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva foste passar cerca de três anos como docente do Centro de Estudos Portugueses da Universidade de Brasília, donde regressaste em 1969.

No dia 28 de Fevereiro desse mesmo ano houve um sismo intenso que nos encheu de pavor, a mim em Estremoz onde continuei a viver e a ti em Lisboa para onde já tinha regressado.

Voltaste a Estremoz e procuraste encontrar-me para me falar desse susto que também a mim me tinha perturbado. Fomos a Cáceres em passeio. Eu, o Aníbal e tu.

Conversámos sobre a vida e sobre o muito que se passara durante esse interregno e recordo-me de te ter falado do cansaço que me avassalava numa actividade que embora com um importante papel no panorama cultural do País se ia tornando pouco a pouco demasiado cinzenta.

E foi então que, como por artes mágicas, me propuseste colaborar contigo nessa empresa aliciante de fundar uma nova escola na Vila de Redondo.

Com que alegria eu aceitei o convite!

A empresa envolvia alguns riscos. Mas amparámo-nos mutuamente na sua resolução.

Os poderes instituídos locais torciam-nos o nariz. Dois desconhecidos “barbudos” encarregados de abrir uma escola oficial? Que estranhas modernices iriam implantar e que velhos interesses não iriam confrontar?  

A escolha do edifício obrigou-nos a vários passos e muitas preocupações.

Com algumas ajudas já nos veio parar às mãos este velho palacete pombalino situado na antiga Rua de Évora com traça do arquitecto-brigadeiro Manuel da Maia, engenheiro do Reino em 1754 e co-autor de entre outras grandes obras – as do Aqueduto das Águas Livres e as da cidade de Lisboa destruída pelo terramoto de 1755. Casa senhorial que ultimamente servira de habitação ao antigo Director da Torre do Tombo, o redondense Dr. João Martins da Silva Marques.

Nada mau. Porem, como transformar tulhas para armazenamento de cereais e adegas térreas carregadas de antigas talhas para armazenamento de vinho em salas de aula?

As obras que logo começaram e se prolongaram pelo largo período estival proporcionaram soluções de consenso entre as várias partes – tu como futuro director da Escola, os mestres de obras e os elementos da comissão de pais de alunos que entretanto tinha sido criada. Uma azáfama de todo o tamanho.

Pouco a pouco tinha sido formado o quadro do pessoal docente da futura escola. Recordo os seus nomes: D. Maria Ângela Quintas, Maria Angélica Palmeiro, D. Maria dos Anjos, D. Maria Emília Caeiro, Padre Póvoa (ou o petranca[1]) Padre João de Deus, D. Maria Luísa Silva, D. Celeste Marouvas, D. Ana Barradas, D. Preciosa, D. Olga e Maria José Cardoso e como professor de História o Dr. Teófilo Costa, o prof. Fonseca e o prof. Soares.

E já agora para que fique exarado em carta e não em acta o pessoal da Secretaria – Maria Antónia Figueira e Adelina, as cozinheiras D. Ana Rosa e a Leocádia e as ajudantes de outros serviços: a Balbina, a Manuela e a Mariana Rita.

E os nossos alunos de que quero lembrar alguns nomes: - O Marovas, o Chico dos Foros, o Dominique, o Domingos Sarnadinha, a Joana Mataloto, a Maria do Céu Gamé, a Júlia Basílio, a Zeza Portel e tantos outros de que não me é possível lembrar os nomes.

 Lembras-te dos trabalhos em que nos vimos metidos a comprar o fogão industrial para a cozinha da cantina, os partos e os talheres. E dos trabalhos em que nos vimos metidos quando fizemos sentar na mesma sala para refeições conjuntas alunos e professores?

E as marcas secretas de que só nós sabíamos o significado e a existência. A estrela de David inscrita no chão do piso térreo e a árvore sefirótica com a indicação das várias disciplinas e a grande roda de carro de parelha suspensa da parede da escada de acesso à área nobre do edifício qual carta do céu gigantesca que marcava os destinos da Escola.

 

O REDONDO É UMA RODA

A ESCOLA UM MOVIMENTO

 

A nossa escola, a escola do Redondo foi um mundo renovado que conseguimos abrir no seio de uma sociedade medieval de senhores e servos onde ainda imperava o castigo corporal como método de repressão às liberdades.

De vez em quando Sesimbra chamava por ti. E o apelo era quase sempre irresistível. E lá íamos. De uma vez levaste-me ao Castelo. Aí me deste a conhecer um dos teus grandes amigos – o castelão Rafael Monteiro.

Na volta e depois de refastelados com um belo bife de espadarte (no restaurante de um amigo que, de quando em vez, aparecia no Redondo onde vinha comprar vinho que consumia no seu estabelecimento), na volta, dizia, passávamos grande parte do caminho a cantar as velhas modas que ambos conhecíamos.

Quero ainda recordar-te dos passeios que dávamos aos domingos na Serra d’Ossa onde íamos de quando em vez dar liberdade aos teus cães de caça e apanhar espargos que depois cozinhávamos com ovos na cantina da escola.

Hoje, 15 de Novembro de 2014, estou no velho edifício da escola que ajudámos a pôr de pé, agora transformada em Biblioteca Municipal, a evocar a nossa amizade numa sessão dedicada ao estudo das cartas que Agostinho da Silva te enviou.

Ele também visitou a nossa escola. E soube por ti que também ele elogiou o trabalho que aqui desenvolveste.

Tenho saudades do nosso velho convívio e do tempo que aqui passámos juntos.

Ao longo dos anos muitos dos nossos antigos alunos me têm falado da escola que frequentaram e do respeito e amizade que nutrem por ti. Julgo que te vai saber bem, leres isto.

Teu velho amigo de sempre

 

Armando Carmelo

 

 



[1] Nota do Editor - Palavra de difícil compreensão no manuscrito.

 

CORRESPONDÊNCIA. 64

30-09-2023 13:09

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 5 de Agosto de 1977

 

5-8-77

 

Mon cher Ami,

 

Votre lettre était – est un beau témoignage – et aussi de vous-même. Elle provoquait[i] en moi tout un faisceau de sentiments. Ma joie n’est pas seulement « personelle », si je puis dire.

Je pense que vous avez reçu, entretemps, la lettre que j’envoyais[ii]à Borba.

Vous verrez de plus en plus que les «distances» entre ce qu’on croit saisir et la compréhension « vécue » sont beaucoup plus grandes (est[sic] c’est peu dire) que tout écrit « ésotérique », ou symbolique nous suggère. La plupart perdraient toute raison d’être écrits si on pouvait ou voudrait voir cette incompatibilité. – Un livre comme celui de G.[iii] est tout[sic] autre chose. La « troisième lecture » nous accompagnera jusqu’à la fin, nous aidera toujours avec sa haute « force » dans les multiples stades – « difficiles » parfois jusqu’à la tentation de l’abandon – qui nous attendent…

Croyez-moi, cher António Telmo, que j’ai (et j’avais toujours) grande confiance en vous – tout en savant, en voyant les quasi – impossibilités que vous rencontrez à votre « manière », comme nous tous à la nôtre. Mais vous avez des « fortes possibilités » et tout ce qu’elles comportent pour vous, qui joueront, pouvions dire, un jour tout autrement…

J’écris un peu entre deux endroits, extérieurement, parce que je déménage le 9 (en bas une nouvelle adresse).

Aussitôt que je peux me le procurer, j’enverrai le vivre (qui a l’apparence de simples récits).

Ne voulez pas aller trop vite – faites des pauses suffisantes entre les lectures. Réservez-vous des moments calmes et éveillés, sans vouloir rien. Mais vous connaissez ces conseils de l’Alchimie.

Je vous embrasse. Mes pensées vous accompagnent. –

4, rue Vigée–Lebrun, F75015 Paris[iv]

Max



[i] Uso do pretérito imperfeito em vez do perfeito ou do passado simples; ex: «elle provoquait en moi»  carta de 5-8-77, 3ª linha

[ii] O mesmo caso do uso do imperfeito

[iii] Muito provavelmente Gurdjieff, que constitui, com Ouspensky, referência importante no domínio do conhecimento espiritual.

[iv] Escrito na margem perpendicular esquerda da página.

 

VOZ PASSIVA. 135

30-09-2023 12:09

António Telmo, memórias do tempo da Revolução

Manuel Calado

 

Tive a sorte de conhecer o António Telmo, nos finais de 1973, no Redondo, quando já se sentiam os ventos da mudança que, como uma bênção, aos meus olhos juvenis, chegaria, meses depois. No Redondo, onde ambos fomos parar, inaugurando a Escola Pública, na vila, na onda da reforma Veiga Simão. Ele, como director da Escola Preparatória, eu, como professor na Secundária, que tinha como Director outro personagem notável, o Manuel Patrício. Eu, ainda quase imberbe, saído pouco tempo antes das fraldas da serra d'Ossa; o Patrício, vindo do Liceu de Évora, onde tinha ganho notável estatura como professor de Filosofia. O Telmo, vindo uns anos antes, de Brasília, onde foi assistente de Agostinho da Silva. Nos três anos em que fui professor no Redondo, onde criei, aliás, raízes fundas, aprendi muito com vários outros personagens interessantes: lembro, sobretudo o Armando Carmelo e o Vicente Roma, ambos colegas na Secundária. Fora da escola, o clã Salomé Vieira estava, nessa época, muito ativo, no Redondo. O Vitorino, já artista bem conhecido, ia e vinha, mas todos os outros ainda por lá andavam. Desse caldo, me alimentei com gosto e proveito, mas o prato forte foi, sem dúvida, o António Telmo.

Antes do 25 de Abril, retenho dois episódios, algo humorísticos, de que o António Telmo foi protagonista e que me deixaram muito impressionado. Era habitual, nesse tempo, os professores almoçarem nas cantinas, no mesmo espaço que os alunos. O vinho à refeição não era permitido. O António Telmo, como diretor da Escola Preparatória, decidiu substituir os jarros e os copos da cantina, que eram de vidro, por outros, de loiça do Redondo. O objetivo oculto, obviamente, era os professores poderem beber vinho, sem os alunos se aperceberem. Escusado será dizer que eu passei a almoçar na Escola Preparatória, apesar de dar aulas na Secundária.

O outro episódio que me marcou e que, aliás, impressionou profundamente a vila do Redondo, foi protagonizado por um transeunte que teve o azar de ir a passar na rua, quando um miúdo, por brincadeira, cuspiu de uma janela de sacada do primeiro andar e lhe acertou em cheio. O bom do homem foi imediatamente queixar-se ao Senhor Director que, contra todas as expectativas, lhe deu um raspanete, perguntando-lhe se nunca tinha sido criança...

Quando veio Abril e o golpe dos militares, lembro-me da alegria genuína que o António Telmo manifestou, em sintonia com a maioria do pessoal. Criámos, logo a seguir, um grupo de “intervenção cultural” que fez várias tournées na região. Juntávamos música popular (com o Vitorino e o Janita à cabeça), artes plásticas (eu convidei o António Couvinha e o António Cabeça), com alguma intervenção política revolucionária (a Luar estava, nessa época, bem implantada no Redondo). Um desses espectáculos foi organizado pelo António Telmo, em Sesimbra, numa Sociedade Recreativa local. Nessa noite, o Cante alentejano ressoou pelas ruas da vila. Apesar do entusiasmo inicial, o António Telmo rapidamente se desinteressou da política em curso...

Agradeço-lhe ter recebido dele o primeiro aviso contra o arrebanhamento em que, de formas muitas vezes primárias, as forças políticas estavam empenhadas. Manifs e slogans deixaram de fazer parte da minha postura. De resto, se tivesse de definir as posições políticas do António Telmo, eu diria que ele foi, sem o assumir, um libertário.

Mais tarde, já em Estremoz, o Mestre frequentava os dois cafés principais da cidade, nesse tempo: o Águias de Ouro e o Alentejano, cujos clientes se arrumavam, quase sem excepções, à direita, no caso do primeiro, e à esquerda, no segundo. O Telmo frequentava os dois e gostava de armar em comunista, nas conversas com os fascistas e vice-versa. Para o António Telmo, a meu ver, a política era um parente pobre da metafísica. Mais do que intervir no mundo, ele queria pensá-lo e, talvez, entendê-lo. Durante cerca de uma dúzia de anos, frequentei, intermitentemente, as tertúlias que ele promovia, no Alentejo, em Sesimbra ou em Lisboa. Nelas e nas conversas de café, aprendi muito do que gosto de pensar que sei. Sobre isso, que foi o mais importante, tentarei escrever ainda um testemunho.

CORRESPONDÊNCIA. 63

10-09-2023 10:55

Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 27 de Julho de 1977

 

 27 juillet 77

 

Mon cher Ami –

plongé dans « toutes sortes » de travaux après mon retour, vous l’imaginez, j’essayais en regardant le « dépôt » qu’ont accumulé en moi les perceptions plus ou moins conscientes pendant mon séjour chez vous, de sentir comment, et avec quoi, continuer. Vous savez que notre moi est – pourrait – être de nature à avoir des conséquences vraiment fructueuses pour ceux qui trouvent en soi les raisons suffisantes –pour continuer – ce qui ne devient pas (avec le temps) plus facil [sic] mais plus difficil [sic], plus exigeant – tout en ouvrant des perspectives sous des domaines autres et, cela ou être reconnu petit à petit dans quelle mesure, jamais touchés par les travaux, occupations, expériences antérieurs, parce qu’on les faisait d’une autre manière. Aussi petit à petit, d’abord, et puis peut-être par des éclairs le montrant plus nettement, un changement dans l’appréciation des choses, de leur importance et signification, va s’opérer – un changement contre lequel, tout, « naturellement », notre  « moi » (mais pas tout le passé) se défend obstinément…

Cette lutte serait sans espoir, s’il n’y avait pas d’autre chose en nous qui peut s’éveiller et qui nous procure un goût beaucoup plus intense et complexe, d’exister et d’être. Cette première ligne de travail, ce tout petit commencement nous lie déjà à on nous met en contact sans nous pouvons le connaître [sic][i], avec un monde de consciences « cachées ». Vous le savez. D’autre part, il ne peut pas s’agir d’un effort de se faire connaître par ce monde caché «  – tout dépend de notre ? « attraction » intérieure (en nous) par le « divin » pour le « divin ». Il en résulte qu’il n’y a pas de compétition – tout s’ordonne par cette « réalisation » intérieure. Et les différences créent les conditions favorables , parce que difficiles à réconcilier ; surtout aussi par ceux qui nous sont proches d’une manière ou d’autre et qui ne suivent pas le même chemin, qui ne pensent en[ii] rien comprendre ce que nous cherchons.

Trouvez un jour la possibilité de parler bref et clair et plus « principiel » et de répondre aux questions des autres en leur donnant, ouvrant autres questions qui, s’ils y réfléchissent les inquiètent, les dévient, sinon les sortissant de leur manière de penser et par cela peuvent éveiller en eux une parcelle vierge.

Nous ne pouvons pas répondre à une création sans cesse nouvelle, vierge à chaque « haleine ». Alors, qu’est-ce que peut signifier « recommencement » de notre part ? Nous sommes des « limaces » … Mais je sens bien que « quelque chose » (pas « nous » peut-être) a changé déjà.

J’ai écrit une lettre ce jour à notre ami Francisco, dont je veux photocopier une partie qui concerne tous les amis. Et je vous prie que vous aussi communiquez la partie qui concerne la réunion prévue pour « tous » les autres qui participeront.

Tous mes vœux. Je vous embrasse –

Max H.



[i] Apesar de dominar com fluência o francês escrito, é visível, aqui ou ali, como é o caso, sobretudo a nível da construção sintáctica e das concordâncias, que se trata de alguém de outra nacionalidade. O que é curioso é que em alguns dos casos poderíamos estar perante erros cometidos por um falante do português, o que não é verdade.

[ii] A expressão aqui usada «ne pensent en» é um exemplo claro do que afirmamos na nota anterior sobre os erros que poderiam ser cometidos por um falante do português, pois o «penser à» é para nós o «pensar em» que encontramos nesta sequência.

 

VOZ PASSIVA. 134

29-08-2023 09:30

António Telmo e a História Secreta do Figurado de Estremoz

Mara Rosa

Imagem: Amor é cego, de Afonso Ginja. Colecção particular. Foto tirada daqui.

Gramática Secreta da Língua Portuguesa foi o primeiro livro de António Telmo de que tive notícia, cujo título bastaria para percebermos, na sua escrita, a qualidade de unir numa simbiose perfeita os predicados Razão e Mistério.

De então para cá, uma década de permeio paulatinamente desvela aos meus olhos um ser raro, dotado de uma prodigiosa arte poética que alia a uma imaginação criativa. A sua narrativa é simultaneamente clara e profunda, transversalmente plural e universal.

Assim como as tradicionais narrativas míticas, os contos de A. Telmo de certa forma reproduzem o nascimento do cosmos, na medida em que transformam “o tempo, o espaço e o mundo”. Ainda a par com o mito, as suas histórias, plenas de signos muitas vezes associados a realidades arquetípicas, têm sempre um fundamento moral, no sentido heterodoxo da palavra, que induz à reflexão.

Por fim, Telmo cristaliza na sua escrita as paisagens afins, físicas e mentais. Penso em Almeida, a fortificada paisagem raiana aberta a planaltos a perder de vista, berço que o recebeu à nascença, ou Sesimbra que lhe semeou na alma o génio de uma filosofia atlântica... Mas penso sobretudo em Estremoz, terra em que o visionário assentou arraiais, terra da Rainha do culto do Espírito Santo, edificada com o gélido mármore arrancado ao solo, terra de pequenas nascentes e de barrocais, cavados à enxada pelas “bonequeiras”, mulheres sem profissão reconhecida que deram à luz os Bonecos de Estremoz.

E aqui me detenho. Não nas figuras religiosas que no séc. XVI, pelas mãos de plebeias mulheres de parcos recursos, inauguraram a condecorada tradição artesanal estremocense.  Detenho-me nas figuras profanas (ou carnavalescas) dos Bonecos de Estremoz, surgidas já no séc. XVIII: O Amor é Cego, o púcaro ornamentado e A Primavera (para a temática do figurado de Estremoz, ver estudos de Azinhal Abelho, Joaquim Vermelho, Hernâni Matos, Hugo Guerreiro). 

Detém-me esta tríade plena de carga simbólica, como me deteve quando, em 2019, folheei o livro História Secreta de Portugal (A. Telmo, ed. Zéfiro, 2013). Neste livro, onde o seu autor alude ao hermetismo simbólico do Mosteiro dos Jerónimos e à sua relação iniciática com a figura de Nicolau Coelho, encontrei múltiplas relações com estas três imagens do figurado português, onde facilmente caberia incluir, num trabalho com outra amplitude que não esta pequena evocação, os elementos simbólicos da figura cerâmica da Rainha Isabel de Aragão.

Nas páginas desta História Secreta de Portugal encontramos os nós manuelinos modelados nas botas de O Amor é Cego, o coração ferido por 3 lanças ( p. 53 do livro) e a cornucópia de flores, ambos os elementos seguros nos braços do Amor, junto ao peito; nas páginas deste livro vislumbramos ainda a mais badalada das figuras da barrística de Estremoz, sempre representada de venda nos olhos, na seguinte passagem: “o busto de um homem, visto de frente, com os olhos atados por fios (...)” (p. 66).

Nesta obra, que tanta informação condensa em escassas páginas, também os escudos dos Jerónimos esculpidos em pedra, contendo as cinco chagas de Cristo (p. 53), remetem ao figurado, nomeadamente à Primavera, com a sua semicircunferência em arame, contendo comumente sete ou nove escudos feitos em barro, embora os mais recentes aparentem representar uma flor, são circulares, e têm 5 pontos no interior que podem ser pétalas ou chagas.

Por fim, no púcaro ornamentado com flores e uma espécie de avental, temos o ônfalo do mundo, referido pelo autor em passagem sobre a iniciação, mas nele também temos, simbolicamente, uma fonte (p. 66).

Fica assim evidente, a partir das pistas já abordadas que António Telmo deixou na sua História Secreta de Portugal, uma forte ligação entre os elementos do figurado de Estremoz acima expostos e os vários estágios da iniciação de um cripto-judeu — apresentados na obra consultada.

 25 de Agosto de 2023

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