DOS LIVROS. 51

23-10-2016 11:31

Teoria da imaginação em Álvaro Ribeiro

 

Nenhum dos títulos das vinte conferências sobre Álvaro Ribeiro neste congresso apresentadas inclui uma menção ao aristotelismo. Conviria saber em que medida Álvaro Ribeiro foi, de facto, um pensador aristotélico e como o foi, estudo que outros, mais competentes do que eu, não deixarão certamente de fazer no futuro.

Álvaro Ribeiro é o filósofo da mediação. Por este lado não é difícil interpretá-lo como um pensador aristotélico, um pensador que segue Aristóteles, que, na Ética a Nicómaco, caracteriza a virtude ou a força do homem pela mediação e digo força do homem porque a palavra virtude que traduz perfeitamente aretê é, pelo étimo, conotável com varão e virilidade. O silogismo é a mediação entre dois logismos. “Só amo a relação” escreveu Leonardo Coimbra. O aristotelismo de Álvaro Ribeiro já vinha de Leonardo Coimbra, não obstante a reivindicação que este fazia para si do platonismo. Seria interessante verificar como Álvaro Ribeiro pensou o platonismo através de Aristóteles e Leonardo Coimbra pensou o aristotelismo através de Platão.

O que nos importa fixar é a hegemonia da mediação. Todo o valor do pensamento filosófico depende do modo como a concebermos.

Porque digo que Álvaro Ribeiro é o filósofo da mediação? O verbo ser não garante a mediação, e é por isso que, como diz, pretende evitar uma doutrina do ser. Não garante porque exclui dela o movimento, e não há verdadeira mediação sem movimento. Quando dizemos o ser não sabemos se estamos a pensar um substantivo ou um verbo. E, ao funcionar para a formação do juízo como cópula (S é P), fixa o predicado ao sujeito, subsumindo a existência na essência. Os verbos activos, criadores de existências, funcionam como metáforas e devem constituir a base de uma lógica criacionista. A relação S P ou significa uma identidade e nada acrescenta ao conhecimento ou a integração numa espécie, género ou classe que desinvidualiza e despersonaliza a existência.

 

Uma lógica que fosse a repetição da gramática, como erradamente a supõem alguns em Álvaro Ribeiro dizendo que ele não fez mais do que pensar uma filosofia da linguagem, é logo superada pela proposição de que os tropos é que realizam a relação da língua com o pensamento. Assim explica que entre a língua e o pensamento não há uma relação unívoca mas de convergência e de divergência. Esta afirmação implica que há pensamento sem palavras, como se verifica entre os amantes. Também aqui o pensamento aparece como mediação. O amor entre o homem e a mulher não é só o amor entre dois corpos distintos, mas entre duas imaginações que podem atingir o êxtase.

O pensamento é do domínio angélico. O que é próprio do homem é a razão que movimenta as relações de convergência e de divergência com a língua por meio de silogismos em que o termo médio é um tropo. Pelo tropo, sobretudo pela metáfora, a razão compõe-se com a imaginação. A imaginação é, porém do domínio da alma, porquanto é ela que faz a relação da sensação com a razão, que é o espírito do homem. Seria interessante verificar neste momento como, pela actividade da mediação, as tríades se encadeiam umas com as outras em escada, o que poderá fazer-nos julgar que haja em Álvaro Ribeiro uma adesão ao emanatismo, gnóstico ou neoplatónico.

O homem foi criado por Deus, mas a criação não cessou com a queda do homem na história, depois do pecado original. A razão imagina pelo estudo científico do homem actual a antropologia revelada pelo texto sagrado, mas porque seria impiedade alterar uma letra deste texto tem de considerar pseudo-científicas as conclusões do evolucionismo darwinista.

Observando o homem hoje existente, verificamos pela figura que o corpo ostenta – a posição vertical – e pela liberdade de movimentos, harmónicos com a autonomia da cabeça; pelas expressões da sua imaginação significando uma certa iniciativa; pelo dom da palavra e relativo exercício do raciocínio verificamos que ainda conserva os vestígios da primitiva realeza adâmica, hoje perdida. Tudo se passa, porém, como se ele fosse, de facto, um animal inteligente e munido de vontade tão somente. Também os outros animais são munidos de vontade e de inteligência; sempre que querem alimentar-se ou reproduzir-se têm aptidão para relacionar os meios com os fins e é essa aptidão que caracteriza a inteligência. No homem a relação dos meios com os fins é mais complexa, a sua inteligência animal exprime-se superiormente nas várias ciências económicas e financeiras. É este um modo de dizer irónico que Álvaro Ribeiro utiliza para chamar o homem para mais nobres e altos fins, aqueles a que, segundo a sua natureza, há-de aspirar se tomar consciência de que é um artista, isto é, uma pessoa dotada de razão e de imaginação. Como é que é possível que só alguns homens tomem consciência disso? É que, na maioria dos homens, a imaginação, presa à carne que de si criou, arrastou consigo a razão para formas de perversão em que as palavras ou significam sentidos, isto é, as imagens do mundo sensível ou se articulam por abstracções entre a técnica e a metafísica.

O pecado original é um pecado da imaginação ou, se preferirdes por ser mais claro, um pecado de magia. Álvaro Ribeiro insurge-se contra as explicações do pecado original que nele vêem a relação carnal entre o homem e a mulher. Já Adão tinha conhecido Eva quando se deu o pecado de que temos notícia pelo Génesis.

Há uma degeneração na carne que serviu de carro ou de veículo ao amor de Adão por Eva quando ele a conheceu. Os cinco sentidos ou sensos, como prefere dizer Álvaro Ribeiro, puras irradiações do sentido interno, o sensorium communis dos escolásticos, pelo pecado original emergiram na carne e a imaginação passou a confundir-se com a sensação. Com efeito, sem a imaginação não seríamos capazes de reconhecer uma rosa. Sem a imaginação nunca a sensação seria percepção.

Deixemos, porém, este assunto que é o mais difícil e misterioso da obra de Álvaro Ribeiro, mas retenhamos a ideia de que o homem é uma tríade vivente composta de corpo, alma e espírito. A alma é mediadora entre o corpo e o espírito em analogia ou correspondência da imaginação entre a sensação e a razão.

O mundo dado pela sensação é um mundo irreal, um prestígio, como vimos, da imaginação. Álvaro Ribeiro não atribui melhor realidade às sensações por alucinação. «Quando o sentido (o que está sendo sentido), escreve ele, não corresponde a um objecto determinado no espaço – à sua causa externa segundo dizem alguns autores –, diz-se que houve alucinação em vez de sensação. A alucinação é tida por um fenómeno meramente subjectivo, e até de ordem patológica, mas define-se exactamente pelo seu carácter ilusório e pela consequente desilusão.» A imaginação somente é criadora de verdade quando se move pelo “encanto da palavra exterior, ou da palavra interior”. Pela expressão “criadora de verdade” significamos conhecimento.

Como o conhecimento não é, vimos já, a relação de sujeito-predicado e não é também a relação sujeito-objecto da filosofia alemã, a descida da alma à sensação seria irremediável se, através dela, sensação, não fossem possíveis melhores relações. Referimo-nos, evidentemente, ao amor, porque a mulher é que é para o homem o verdadeiro mundo sensível. O conhecimento não é a relação sujeito-objecto mas sim uma relação de espíritos. Desta relação os amantes só tomam conhecimento pela imaginação e pela palavra. Daqui a suprema importância do ensino da arte de imaginar durante a puerícia e adolescência. «O grau espiritual atingido, ou grau de razão», escreve o filósofo que «é apenas o resultado, variável com os temperamentos e os caracteres, do exercício da imaginação.»

Parece-lhe, então, que, entre os géneros literários, o mais apto como exercício para formar a imaginação durante a puerícia será o conto onde a alma poderá assistir deslumbrada aos prodígios e aos milagres dos heróis e dos santos e às misteriosas manifestações dos génios. Dir-se-ia que, dois livros depois, no Liceu Aristotélico, em doutrina confirmada no seu último livro Memórias de um Letrado, dir-se-ia que mudou de opinião quando propõe para aquela idade o ensino da mecânica e da matemática com o argumento de que, dado o rigor e a objectividade destas disciplinas, o rapaz habituar-se-á a mentar sem mentir. Não há contradição. O mundo maravilhoso dos contos e das histórias tradicionais não mente. É a expressão de verdades supra-racionais a que só esse factor divinizante do homem que é a imaginação tem real acesso quando devidamente estimulada pela razão. Aqui convém distinguir a imaginação da fantasia que é um factor meramente subjectivo. Mas, sem dúvida que o rapaz e a rapariga não dispõem ainda das categorias que lhes permitissem relacionar o racional com o supra-racional. Esses relatos imprimem-se-lhe na memória, vão estar presentes no subconsciente do adulto e permitir futuras aberturas, bem reais e conscientes, para o mundo do espírito. As crianças têm disto a presciência, por tal modo que, ao contar-lhes uma história pela segunda ou pela terceira vez, se alterarmos nem que seja um pormenor, logo nos corrigem. Daqui todo o cuidado que há-de haver em não dar a ler aos rapazes e às raparigas histórias escritas por mulheres para as crianças que pretendam substituir os contos tradicionais, mas que são apenas produtos da fantasia. Como Fernando Pessoa ensinou, a propósito do Bartolomeu Marinheiro e Afonso Lopes Vieira, as histórias para crianças não se escrevem para crianças.

Quando nós éramos rapazes, na nossa estimativa, não havia essencial diferença entre um conto tradicional como, por exemplo, o de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa e as histórias narradas no livro da nossa religião. Esses contos e essas histórias mostravam-nos proezas, prodígios e milagres que nos encantavam e deslumbravam indiferentemente. Eram os tapetes voadores e Jesus caminhando sobre as águas, as palavras que faziam surgir um palácio ou as que ressuscitavam Lázaro. Os mais velhos distinguiam entre umas e outras, separando-as como a fantasia da verdade. Nunca os tapetes voaram nem nunca houve criação de palácios pelas palavras, mas Jesus caminhou de facto sobre as águas e ressuscitou Lázaro. Assim nos ensinavam a ter como critério da verdade o facto histórico. O facto era tudo e a poesia, bem ao contrário do que mais tarde viríamos a saber por Aristóteles, era menos verdadeira do que a história, se não era completamente mentirosa.

Se bem observarmos, insinua-se aqui na oposição da história à poesia um equívoco que não nos deixa ver claramente o problema. É o do emprego da palavra história, num duplo sentido, um pelo qual é sinónima de conto, como em contar uma história, e outro pelo qual significa a realidade vivida pelo homem na sua existência terrestre, aquilo que é costume designar por mundo dos factos, considerados em sucessão. Pelo primeiro sentido, a palavra é relativa à poesia e à imaginação, pelo segundo à vida que temos por real no tempo e no espaço físicos.

 

É possível, porém, ver, por exemplo, a história de Portugal, não como uma sucessão de factos brutos, ligados uns com os outros por relações de causa e efeito que são afinal apenas de antecedente e de consequente, mas como uma história significativa na tangência de sobrenatural com o humano, como uma fenomenologia do Encoberto.

O poeta alemão Goethe, reagindo contra Kant, criou um admirável aforismo que é o seguinte: «Os fenómenos são mistérios manifestados.» Tinha em mente, sem dúvida, os fenómenos naturais. É ocasião de dizer aqui com Álvaro Ribeiro que a história de um homem, a de um povo ou a da humanidade devem ser vistas como a manifestação de profundos mistérios. Tal visão da história somente é possível se soubermos realizar o procedimento mental inverso, o de trazermos ao plano da positividade os contos ou as histórias como o de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, ao plano da positividade vivida, por tal modo que tomemos esses relatos absolutamente a sério, naquela atitude de alma que assumiremos certamente se pensarmos que o seu autor anónimo pode muito bem ter sido Deus. Então, nem a poesia será mais verdadeira do que a história nem a história mais verdadeira do que a poesia. Isto teria como consequência roubar a literatura aos literatos e a religião aos religiosos que cindem uma da outra.

Cheguei ao fim do que me propus vir aqui dizer. Não é tudo quanto haveria para discorrer sobre a imaginação no pensamento de Álvaro Ribeiro, mas julgo ter acordado algumas ideias essenciais adormecidas nas letras dos seus livros. Tenho a esperança de ter criado, no espírito daqueles que quiseram seguir-me, alguma inquietação.

Se soubermos estar atentos aos nomes daqueles que Leonardo Coimbra designou como «a monstruosa variedade dos contemplativos» e que nós, ensinando latim, diremos “prodigiosa”, o nome de Álvaro Ribeiro aparecer-nos-á bem significativo. Lançando a filosofia como uma corrente, Álvaro foi, na verdade, o mestre do alvoroço.

 

Texto lido em Colóquio sobre Álvaro Ribeiro realizado no Ateneu Comercial do Porto. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)