INÉDITOS. 71

20-08-2017 23:33

 

História Oculta de Portugal (excerto)

Todos os povos têm uma história oculta? Este livro responde que sim e pretende revelar a do nosso povo, apoiando-se muito menos em factos, que, sendo contingentes, dizem só o que o historiador quer que digam, do que em cifras significativas e necessárias que sempre dizem a mesma coisa a quem as interrogar. Uma história oculta pressupõe, pelo menos, três planos: o do espírito que esta por detrás de tudo, imóvel e recolhido em si; o do desejo que move o povo, conforme as enteléquias e arquétipos em que se manifesta aquele espírito; o da acção, que é o campo residual em que vão caindo, como cadáveres, as formas periféricas e perecíveis em que se realiza o desejo. Se assim é, a revelação de uma história oculta só pode dar-se interrogando as formas em que o desejo do povo movendo a inteligência cifrou o conhecimento de si próprio pela sua visão singular do espírito. Então, algo de radicalmente diferente do que nos contam os historiadores aparece no horizonte da investigação.

A história oculta do nosso povo já foi várias vezes revelada, mas na forma de cifras. Quando é que isso aconteceu? Nos momentos de uma grande crise que abala os fundamentos da Pátria. Os Lusíadas, as profecias de Bandarra, os comentários às profecias de Bandarra por D. João de Castro, a História do Futuro de António Vieira se são, por um lado tentativas, de religar a Pátria aos princípios que, por esquecidos, estão na origem da crise, mostram, por outro lado, o reino oculto desses princípios, mas voltam a ocultar nas formas da poesia ou da profecia o verdadeiro sentido da história dos portugueses.

Em dois momentos cruciais desta história aparecem os profetas. O primeiro coincide em seu começo com o fim do ciclo heróico do reinado de D. Manuel para D. João III. Já referimos Camões, Bandarra, D. João de Castro, António Vieira. O segundo dá-se quando os sinais são claros de que Portugal chegou à última fase da sua história. Coincide com a implantação da República e é espantoso que os nossos poetas mais lúcidos, pressentindo esse fim, se multipliquem como profetas, anunciando ou um regresso a uma idade de oiro ou a eclosão de uma nova idade. Junqueiro com a Pátria e o Finis Patriae, Pascoaes com o Maránus e o Regresso ao Paraíso, Pessoa com a Mensagem, Sampaio Bruno com o Encoberto e a Ideia de Deus, Agostinho da Silva em escritos vários, José Régio em vários poemas e em El-Rei D. Sebastião, portanto, o que de superior e sério tivemos em poesia e em filosofia foi uma voz única dizendo o que poderíamos designar pelo Novo Testamento da Pátria, se os Lusíadas, como alguém disse, foi o seu Velho Testamento.

Todavia, o termo, cada vez mais próximo, da vida do nosso povo, ainda não tinha chegado. Fernando Pessoa, no Horóscopo de Portugal, deixara uma data enigmática: 1978. Precisamente 400 anos depois do encobrimento de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir. A previsão profética do verso “Cumpriu-se o mar e o Império se desfez” escrito quando ainda tínhamos Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé, Timor e Goa espanta hoje, num tempo em que já ninguém crê ou espera, os próprios adversários do poeta, que o citam e o aplicam às suas medíocres ideologias. A Mensagem é um poema cifrado sobre dados exactos de rigorosa interpretação histórica. Mas é ainda uma cifra.

Chegou agora o momento, se este livro que escrevemos não é miragem, de apresentar decifrada a história oculta de Portugal. Enquanto tal, essa história tem necessariamente de resultar da leitura das cifras em que até agora se revelou, isto é, apareceu através dos véus que a cobrem. Dividimo-la em quatro ciclos: o ciclo heróico ou da nobreza até D. Manuel, o ciclo sacerdotal até 1755, o ciclo do povo até à implantação da República e um quarto ciclo em que a nobreza degradada, o clero degradado e o povo degradado alternativamente disputam a supremacia, embora já nenhum fundamento verídico distinga os três estados sociais uns dos outros. As razões da tripartição temporal serão dadas ao longo do livro, mas o leitor poderá desde já referi-las à classificação medieval dos estados sociais.

Porque chegou agora o momento?

A dois anos de 1978 e um ano depois do “desfazer do Império”, assistimos ao regresso progressivo e acelerado do país á sua forma geográfica primitiva. Este regresso, porém, não significa reintegração num estado original; mas a redução e a anquilose dum povo velho que parece ter cumprido o seu destino. A explicação de tudo isto será encontrada pelo leitor à media que for percorrendo estas páginas.

Os sinais do fim do tempo de Portugal são muitos, entre os quais não é o menor a possibilidade de aplicar as profecias de Bandarra ao período que vivemos desde 1910. Damos apenas um exemplo:

 

Quatro são os concorrentes

Quatro são e não mais…

 

E logo a seguir:

 

Cinco letras tem o nome

E duas da mesma casta

Olhe cada um o que gasta

Para não morrer de fome.

 

É evidente que se interpretarmos os quatro concorrentes como os quatro candidatos à Presidência da República e o nome de cinco letras, com duas iguais, como o nome de Eanes, apenas verificamos que as profecias constituem uma chave que, se por caso dá certa a abrir a porta do presente, não quer dizer que no passado, durante as lutas liberais por exemplo, não tenha sido aplicada com análogo êxito. Isto é apenas um sinal, mas mais do que os sinais toda a gente sente que são evidentes muitas razões que indicam que “caminhamos a passos largos para um grande acontecimento que revolucionará o mundo”.

É útil ou inútil escrever este livro? Não sabemos senão que era forçoso escrevê-lo, porque nos foi dado ver o que está perante os olhos de toda a gente, e que só não vê porque as próprias condições do tempo exigem que se distraia do essencial. É este um outro sinal de que o processo de degenerescência espiritual está prestes a concluir-se: a inutilidade deste livro, o nulo interesse que despertará na maioria, o sentimento de desdém que produzirá nos menos elucidados.

A única tentativa que conhecemos de escrever a história oculta de Portugal foi o Encoberto de Sampaio Bruno, aliás prejudicada, como se verá adiante, pela metafísica subjacente, que levou o autor a sobrepor a moral à teologia ou a fazer depender o progresso humano e, além de humano, angélico, de valores morais. Todavia, os grandes períodos que compõem o ciclo de Portugal estão aí determinados de modo análogo ao nosso. O erro está sempre em considerar como superior, isto é, como enteléquia a última fase desse ciclo que, pelo contrário, constitui a noite caliginosa e pertence, empregando uma imagem matemática, à mesma série, de que constitui o último elemento subordinado ainda à lei da série. O regresso ao estado original ou, como impropriamente dizia Bruno, ao homogéneo inicial” só se alcança no limite e pelo aparecimento de uma nova série, cuja lei permanece necessariamente desconhecida. Anuncia-se assim o início de um novo ciclo e, como se pensa que a manifestação do princípio que preside a cada ciclo histórico é uma “descida” sobre si própria, retoma-se aqui a ideia pascoaleana de um “regresso ao paraíso”, mas reservando e acautelando qualquer prognose relativa à natureza do novo Éden. Até aí a profecia só pode chegar pela imagem.

Eis assim determinado o aspecto positivo deste livro que, ao anunciar a morte da Pátria, traça um sinal de esperança sobre o futuro, confiado o seu autor de que um mundo que tem como Rei o Único Sábio não pode perder-se pela maldade dos homens ou dos anjos. Pode dizer-se que o desenvolvimento de um ciclo é um ganhar-se e um perder-se da essência principial posta em movimento. É o que nos faz entender a imagem do círculo, em que de ponto para ponto da sua circunferência há um movimento de distensão e um movimento de recuperação simultâneos. Como se explica, porém, para cá ou para lá da simbólica do círculo, o movimento progressivo de degenerescência espiritual dum povo, à medida que o tempo se desenvolve e envolve?

No caso português, o factor psicológico da degenerescência pode ser identificado com a inveja. António Vieira considerava a inveja o vício nacional e ele próprio foi uma vítima sua. Consiste a inveja em não querer ver o que é distinto e evidente. A igualdade é o seu objectivo, um objectivo impossível de alcançar, porque se houvesse dois seres iguais seriam o mesmo e o movimento e o tempo não existiriam como existem. Igual a si próprio só Deus. E é na medida em que os seres se distinguem uns dos outros que participam desse igual. A igualdade só existe como participação de todos no igual. Na medida, porém, em que não se distinguem uns dos outros (o que só é possível pensar em abstracção geométrica) cada ser é igual aos outros seres, mas diferente de si próprio, o que equivale á morte. A morte surge quando um ser se torna tão diferente de si próprio que se dá a absoluta cisão.

A igualdade de uns seres com os restantes seres só existe como limite, mas é para esse limite que tende o impulso da inveja, o seu querer, a vontade. Sendo o socialismo a expressão política da inveja, como recentemente afirmou o bispo do Porto, compreende-se que constitua a última fase da história de Portugal. É claro que a ideia de igualdade está impregnada do fascínio moral que toca e arrebata certas almas de aparente “boa vontade”. Parece-lhes que o bem e o justo só se realizam na igualdade e ficam em paz com a má consciência da inveja. Todavia, se não houver um sol e uma estrela que eu olho voltando o meu ser para o alto, perguntamo-nos aonde nos leva esta igualdade, qual a sua razão suficiente. Só Deus é concebível como o ser que em si próprio tem o seu princípio. Mas a igualdade dos seres não tem princípio. Pára o movimento, o tempo, a rotação do espaço. Tudo está morto. A roda deixou de girar. O ciclo fechou-se.

Assim é, assim está para ser.

 

António Telmo