«OS MEUS PREFÁCIOS». 10

22-03-2015 12:06

A compilação dos dispersos de António Telmo a que o nosso projecto vem procedendo tem sobretudo obedecido a dois vectores principais: a recuperação dos artigos de imprensa do seu período formativo, que vêm sendo republicados na rubrica "Verdes Anos", e a redescoberta dos seus escritos de natureza prefacial ou posfacial, que o filósofo, no final da vida, idealizou recolher num volume intitulado Os meus prefácios. De um lado temos, pois, mais do que já o discípulo, sobretudo o ainda aprendiz de filosofia, de outro o mestre em diálogo com mestres, condiscípulos ou discípulos. A um grande Amigo e Mestre se refere José Manuel Anes quando fala de António Telmo na Introdução às suas Re-criações Herméticas II, por este último prefaciadas. Dignificante prova de humildade de um Grão-Mestre da Grande Loja Legal de Portugal. É porventura neste contexto que melhor compreendemos a afirmação de Miguel Real, quando considera Telmo o grande pensador da segunda metade do século XX, na esteira de Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, a teorizar o esoterismo.

PREFÁCIO A RE-CRIAÇÕES HERMÉTICAS II, DE JOSÉ MANUEL ANES[1]

 

Temos, pois, diante de nós ou à nossa frente, o 2.º volume de Recreações Herméticas.

Logo o título, com o hífen, Recreações Herméticas, dá que pensar, na sua aparente displicência como quem, no intervalo de sérios estudos e de profundas meditações, viesse para o recreio conversar com o leitor sobre e aquilo à volta de Hermes e dos seus segredos. O recreio é o lugar e o tempo onde as crianças crescem, onde aprendem com as outras crianças a conhecer o mundo que a família lhes escondia, a fazerem-se rapazes e raparigas, homens e mulheres, abrindo-se para o amor que é o verdadeiro caminho do conhecimento.

José Manuel Anes aparece, neste livro, mais como o companheiro do que como o mestre que verdadeiramente é. E assim, conversando connosco nos intervalos do tempo, isto é, quando nos esquecemos de que ele existe, nos vai ensinando, como quem não quer, sobre “o que mais importa”. Sofrer uma aula, com a sensação de um tempo que nunca mais passa, é angustiante.

Senhor de uma vasta erudição, no autor deste magnífico livro não se cumpre o preceito de Plotino, como não se cumpre em Pinharanda Gomes e em Joaquim Domingues, segundo o qual as pessoas inteligentes não dispõem de uma boa memória. E isto porque entre a memória dos factos e a inteligência das ideias não se interpõe uma imaginação opaca, mas aquela imaginação de que nos fala Henry Corbin, que Anes tão bem conhece, essa senhora das relações subtis entre uma e outra. E é esse o campo magnético para onde nos chama e atrai e onde banha tudo de quanto trata.

José Manuel Anes é um homem experimentado, que percorreu um longo e demorado caminho, como pode ver-se pela breve biografia que acompanha o livro. O que é para ponderar, sendo como é significativo, está no que parece acaso de ter começado pela cosmologia, com o estudo das ciências físicas e químicas e matemáticas, passar depois pela antropologia (criminologia, sociologia, etc.) e de culminar na teologia, se por teologia entendermos aquela forma de imaginação que nos liga a Deus.

Cosmologia, antropologia, teologia. Como quem ascende por uma escada. Sem, no entanto, que se esqueça o seguinte. Quando se sobe uma escada, atingido o alto degrau, todos os que foram deixados para trás continuam necessários para que a ascensão não seja derrocada. Ascensão ou ascese, pois, como já fiz ver, a teologia pensada, vivida e ensinada por José Manuel Anes é a do logos principal do Evangelho de S. João, do logos que é luz e é vida, luz e vida que tanto nos vêm de Cristo como de Hermes ou, sobretudo, segundo o autor, do encontro de ambos.

A principal recreação de Anes é a Regaleira, a Quinta da Regaleira, que vê como a conjunção de um Templo e de um Jardim Iniciático. Tem apostado boa parte das suas convicções a mostrar que, no Palácio da Regaleira, estamos perante um Templo Maçónico-templário e alquímico, de excepcional importância na espiritualidade de uma parte da Maçonaria portuguesa e, principalmente, por quanto nos diz do mistério oculto do ser. Pena é que, olhando do mesmo ponto de vista o jardim que o cerca, não se tenha lembrado de desenvolver a analogia com a Ilha do Amor imaginada por Luís de Camões. Mas fá-lo com outros jardins e é este um dos aspectos mais cativantes do livro por vermos que num autor português a natureza tinha de aparecer como um dos caminhos metafísicos do homem, se sobrenaturalizada pela arte.

Não vou, neste breve prefácio, nem isso seria possível, passar o livro folha a folha com a necessária demora que se usa quando de um prefácio não se trata. Direi, no entanto, que todos os aspectos nele focados são de um interesse excepcional, isto é, de um interesse para espíritos de excepção que sejam capazes de seguir José Manuel Anes quando nos conduz do exoterismo para o esoterismo: reflexão de alguns enigmas históricos como o dos Templários e sua relação com o presente pela Maçonaria actual, sobretudo pelo Regime Escocês Rectificado com os seus graduais ritos de cosmologia para a teologia pela antropologia, renovando e tornando activo o que parecia ter sido destruído por Filipe o Belo e Clemente Quinto.

Eis, pois, neste livro, a erudição que não está ao serviço da erudição, como habitualmente acontece entre os universitários menos livres. E, coisa curiosa: o autor que também é universitário, não se esquece do tempo que passou pela Polícia Judiciária, onde pôs na luta contra o crime todo o seu vasto saber de químico experimentado e licenciado, isto é, com licença para exercer. É esse um capítulo do livro difícil pela especificidade do assunto, pelo rigor seco da sua cientificidade. Alude a uma fase da evolução psíquica do autor. Porque, da química, em dado momento, surge a alquimia. A química transcendentalizou-se.

Somos chegados à época, anunciada nos livros antigos, em que todo o esotérico se divulgou pelo mundo profano. Dir-se-á que, hoje, tudo está ao alcance do homem. O que parece um bem é causa de muitos enganos. Cruzam-se as correntes, envolvem-se umas nas outras, confunde-se o que é luminoso com o que é tenebroso. Neste caos, são poucos os que conservam a necessária lucidez. Aquilo que havia antes dele era, como todos sabemos, medíocre, superficial, ordeiro. A propagação do esoterismo e de tudo que lhe anda ligado veio causar a dissolução de um mundo que só aparentemente era sólido. Mas para o caos que daí resultou invoca-se um novo fiat. Recreação não é tão só recreio. É também e sobretudo uma nova creação. Confiada a Hermes, pedida a Hermes por José Manuel Anes. Que bem haja!

 

António Telmo  



[1] José Manuel Anes, Re-Criações Herméticas, Lisboa, Hugin, 2004, pp. 7 a 9.