UNIVERSO TÉLMICO. 63

26-03-2019 12:02

Gilberto Pinhal e o milagre de Alalaia

Pedro Martins

 

Que a arte é longa e a vida breve, eis uma verdade há muito sabida, que o caso doloroso do sesimbrense Gilberto Pinhal nos vem agora sublinhar. Partiu quando o século ia a meio, com 23 anos, às mãos de uma tísica, essa tesoura das parcas, que, pouco antes, já cortara o fio subtil do confrade Zé Preto. Com eles e com Rafael Monteiro, Manuel José Palmeirim, António Telmo, António Reis Marques e Francisco Reis Marques, teve Sesimbra a sua mais notável geração de homens de letras, da história à poesia, do jornalismo à filosofia.

Pescador e graduado da Mocidade Portuguesa, cujo Centro de Marinharia fora chamado a comandar em Lisboa, Gilberto Cerqueira Pinhal foi sobretudo um «misto de poeta e marinheiro, e por isso alma bem portuguesa», como dele afirma, judicioso, quem o evoca na edição de O Sesimbrense de 12 de Novembro de 1950, seis dias após a sua morte. Não vem assinado, o obituário, mas não custa supor, e será mesmo de admitir, que tenha sido Rafael a escrevê-lo.        

Gilberto Pinhal, que usava assinar com o pseudónimo Palma Gil, deixou-nos alguns poemas, entre eles o extraordinário Alalaia – Poema do Mar, saído a lume em folheto e posto a concurso em Siracusa. É sobre ele que vos irei falar. Bastaria este poema, como realmente bastou, para que nunca devêssemos esquecer quem o compôs.

É Alalaia a versão poética de uma lenda sesimbrense, tal como esta, naqueles anos, lhe terá chegado pela tradição oral. Disso mesmo parece dar conta ao narrar que «o velho pescador desfia ao neto / o rosário já de seu avô».

Lenda vem de legenda, palavra que significa o que deve ser lido.

Que deve, pois, ser lido em Alalaia? Isto é: como deve ser lido? 

A primeira pregunta a fazer é esta: o que é a Alalaia? 

Pode dizer-se que é uma ilha.

Pelo menos, a isso nos autoriza o Professor João Chagas, no artigo que em 1999 publicou no Jornal de Sesimbra e que em 2005, enquanto editor da Sesimbra Eventos, tive a honra de republicar no derradeiro número desta agenda cultural, que foi também o último de um díptico dedicado aos mitos e às lendas de Sesimbra. Particularmente lúcida foi a relação que este nosso saudoso Amigo nele então sugeriu entre a Ilha do Amor de Camões e a Alalaia. Como se vai perceber.

Onde fica essa ilha, a Alalaia? Os mareantes que a procuram, esclarece Palma Gil, vogam «através dos espaços, sem rumo, sem norte, sem fim», buscam «essa terra que para lá do Sol fica». Esta é uma coordenada repetida, várias vezes, ao longo do poema. Mas o poeta também nos diz que «Alalaia jaz / no seio do mar, / Envolta em mistério oculto, / negada aos olhos do Mundo».

Parece haver aqui uma contradição. Mas não passa de mera aparência, se ali tomarmos o Sol e o mar como símbolos. O símbolo, ensina Álvaro Ribeiro, é a metade sensível de uma realidade insensível, isto é, de uma realidade que não pode ser alcançada pelos sentidos. Temos assim duas imagens que nos remetem para uma realidade de outra ordem.

A verdade é que Alalaia não fica neste nosso mundo. Está situada num outro mundo, do qual poderemos até, talvez, dizer que é o outro mundo.

E a este respeito será muito importante observar que a visão da Alalaia é não raro precedida de uma atitude religiosa. Isso mesmo se verifica logo nos quatro primeiros versos do poema: «Correu no céu o sinal / em abrir luminoso do horizonte / ao dobrar dos joelhos / dos homens quedados em oração».

Gilberto Pinhal persiste nesta ideia com uma outra imagem: «Alalaia, morreste / e existes no sonho das gentes, / para lá da bruma intransponível, / que o homem quer desvendar. / Alalaia existe, / no arrebol do Sol nascente, / quando, ao largar da rede, / ao “lavacão”, / os barretes mostram cabelos, / e os lábios deixam sair uma oração».

Surge aqui um dado novo, que se vai revelar do maior significado: a visão da Alalaia dá-se de manhã.

Não creio que essa circunstância seja um acaso, pois o nosso poeta parece frisá-la pela insistência: «Envolta em nuvens de alvo linho, / quando a lua, amortalhada, agonizou, / a terra floriu / no calor da divindade, / no nascer dos raios fecundantes / do Sol abrasador». No verso imediatamente seguinte, revela Gilberto: «Era nascida Alalaia».  E, poucas estrofes adiante, irá escrever: «… e a manhã rompia /em pinceladas de rosada aurora! / É dia, vai recomeçar Alalaia! / … e o dia vinha, / e a noite vinha, / e o Sol passava, / e a lua banhava beijos e abraços, / e a terra era céu / de beleza, de clareza, / no mistério eterno do dia nascente»

Palma Gil afirma agora, referindo-se à Alalaia, cuja visão surge sempre ao raiar da aurora, que a terra era céu de beleza, de clareza. Não será, por isso, errado ver na Alalaia uma terra celeste, o que aliás é coerente com a minha afirmação de que ela é já um outro mundo. Quero com isto dizer que a Alalaia não é o mundo físico ou natural, em que estamos e que se oferece às nossas percepções sensoriais, mas um mundo situado já fora do espaço e do tempo. Assim, a Alalaia, tal como o poeta a vai descrevendo, é «a terra bela, / de mar tranquilo, de homens puros / de vida eterna»; é também a terra «do sol eterno»; e é ainda «o sonho eterno que os barcos correm, / de mar em mar, / em busca do ignoto».

O sol eterno a que Gilberto se refere é, pois, o sol da Alalaia, isto é, será já o sol daquela terra que fica para lá do sol desta terra, que é ainda o nosso mundo. Antes de tentar conferir a todos estes dados uma unidade de sentido, irei, uma vez mais, procurar explorar aquela dualidade no poema de Gilberto Pinhal.

Da Alalaia diz-nos ele, por exemplo, o seguinte: «Foi ali / que as florestas deram faunos; / bergantins de magia pisaram lagos prateados / de homens de arcaboiços bronzeados / em halos de esplendor infindo, / sobre as areias morenas aurifulgindo, / filhos de fadas, / que as vagas taparam / no rebentar do infernal marulho.»  Mais à frente, revela: «Era nascida a Alalaia, / a terra bela, / de mar tranquilo, de homens puros / de vida eterna, no cantar dolente das Nereidas – voz de Neptuno, / que Anfitrite espalhava / pelas dunas sossegadas; sono embalador de felicidade, / que Diana deixou no seu dócil passo, / em busca de Febo, / em procura de maior claridade… / e a luz irradiava, / do altar à vela, que rasgava céus, / do mar ao moinho, que cortava ventos. / A terra colorida / era o princípio de Júpiter, / o cantar da alvorada da eterna vida.»

Estas duas passagens suscitam três observações.

A primeira diz respeito à nota de tranquilidade, quando não de quietude, que nos é sugerida por alguns versos do segundo excerto, em que, como acabámos de ver, se fala de: mar tranquilo; cantar dolente; dunas sossegadas; sono embalador; dócil passo. A própria noção de eternidade, pressuposta neste excerto, remete-nos para um tempo imóvel, em que tudo é simultâneo, em que nada obedece já à lei da sucessão.

Outra nota da maior importância, e aliás decisiva, é o facto de os seres e as coisas parecerem difundir uma luz que lhes não é exterior, que lhes não vem de fora, mas que tem neles próprios a sua origem: os homens aparecem-nos envoltos em halos de esplendor infindo; e as areias, apesar de morenas, refulgem em dourado. Dir-se-ia, pois, que comungam dessa luz que, nas palavras do poeta, irradia do altar à vela e do mar ao moinho.

Por último, deve notar-se que Palma Gil chama à Alalaia terra colorida. E era dessa terra, conta-nos ele, depois, no poema, «que a gaivota, núncia marinha, / trazia notícia estranha, / às areias tórridas, / da terra sem cor e sem fé / das gentes exaustas, / dos campos incolores, /  do mar tenebroso, / dos penedos agrestes, das flores bravias; / Sol sem calor, / de luz mortiça; / vida sem brilho, no aço nu / da lança maldita, / que a Cruz não esqueceu…»

O contraste entre os dois mundos não poderia ser mais evidente: na cor, na luz e no calor. E também na fé, ou na falta dela. Já vimos que a visão da Alalaia depende da adopção prévia de uma atitude religiosa. Assim, não será de estranhar que a ausência de uma tal atitude, por falta de fé, impeça essa visão.

Uma terceira passagem do poema, que corresponde a toda uma estrofe, permite condensar em síntese o que as duas anteriores mostravam: «ALALAIA!, ALALAIA! / de bosques ridentes / de “ziziphus marinhos, / de esmeraldas irisadas, / de Lotos divinos, / que teus filhos ofertaram, / deixando p’ra trás do rumo, / o esquecimento da vida terrena… / luz branca a pairar / nos lagos serenos da tua paz; / tanger bronzeado / do sino a repicar, / em melodiosa  ode de recolhimento, / a clamar, da tua gente, / uma prece infinda…»

Eis, pois, de novo, a paz e a luz, e a prece que a elas conduz. Que pensar de tudo isto?

A chave que nos abre as portas de Alalaia, iremos encontrá-la em António Telmo e na leitura hermenêutica que nos propõe de Os Lusíadas, no seu Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões.

Vou assim socorrer-me deste seu livro, nascido de uma descoberta espantosa: as inúmeras coincidências, que o filósofo verificou existirem, entre a descrição da Ilha do Amor que aparece no célebre Canto Nono da epopeia e uma pintura pertencente a um manuscrito tardio (do fim do século XIV) do sul da Pérsia, que encontrou reproduzida no livro Sufi de Laleh Baktiar. Esclareça-se, desde já, que a palavra sufi designa, na tradição muçulmana, o iniciado. O sufismo é o esoterismo islâmico, do mesmo modo que a Kabbalah é o esoterismo judaico.

A Ilha de Camões a que Telmo alude no título do seu livro é, pois, a Ilha do Amor e tem, desde logo, em comum com a Alalaia o ser uma ilha. Mas as coincidências não ficam por aqui. Tal como no poema de Gilberto Pinhal, são marinheiros ou mareantes aqueles que a avistam e alcançam. E, tal como no poema sesimbrense, há a sublinhar o facto, que António Telmo acentua, de «a Ilha surgir aos olhos dos navegadores quando a Aurora se levanta. Os versos são estes:

 

Houveram vista da Ilha namorada

Rompendo pelo céu a mãe formosa

De Memnónio, suave e deleitosa.

                                   (Canto IX, 51)».

 

À terra colorida de Alalaia parece poder corresponder a «Ilha angélica pintada» de Camões. Escreve António Telmo:

 

«Esta expressão, na estrofe 89 do Canto IX, envia-nos para outras expressões, convergentes, de que salientamos estas duas: «ínsula divina ornada de esmaltado e verde arreio» (estrofe 21), «formosos outeiros… que do gramíneo esmalte se adornavam» (estrofe 54). O brilho próprio da pintura persa é o da ilha pintada e esmaltada: «as coisas segregam luz.» «Pintada» não significa ali «descrita». Significa que a ilha é uma pintura.»    

 

Na Ilha do Amor, como António Telmo realça, a luz que ilumina as coisas «não vem do exterior, de um foco luminoso – sol, lua ou lâmpada –, foco exterior ao objecto iluminado. Vem do objecto que é iluminado. Também este ensinamento se encontra no Canto IX:

 

Para julgar, difícil cousa fora,

No céu vendo e na terra as mesmas cores,

Se dava às flores cor a bela Aurora,

Ou se lha dão a ela as belas flores.

                                               (Canto IX, 61)»

 

Como é evidente, não poderei aqui reproduzir pari passu toda a demonstração de António Telmo, o modo como, ponto por ponto, compara a Ilha do Amor do Canto Nono de Os Lusíadas com a pintura persa, estabelecendo sucessivas correspondências entre as duas obras, ou como, a partir de um documento do esoterismo islâmico de raiz iraniana, chega ao zoroastrismo, essa tradição matricial da Pérsia que tanto influenciou os três monoteísmos abraâmicos: judaísmo, cristianismo  e Islão.

O que me importou foi assinalar os pontos de convergência – e não são poucos – entre Camões, tal como Telmo o leu, e o nosso Palma Gil. Por essa via nos fomos já aproximando do sentido mais elevado do poema Alalaia, de forma a mostrar que a sua mensagem tem um sentido iniciático e que, por conseguinte, estaremos diante de uma autêntica obra de arte, não apenas pela beleza estilística dos seus versos, que todos, nesta sala, saberão decerto reconhecer e admirar, mas também por dar expressão a um pensamento ancestral e fecundo que responde aos anseios de uma humanidade decaída e em busca da redenção.

Entre esses pontos de convergência, retomo agora o da visão auroral da Ilha, que no nosso caso toma o nome de Alalaia. «Este tipo de conhecimento», ensina António Telmo, «recebeu no hermetismo da Renascença o nome de cognitio matutina, por oposição à cognitio vespertina, o conhecimento do homem exterior e da exterioridade das coisas. O conhecimento matutino, oriental («Portugueses somos do Ocidente / Vimos buscando as terras do Oriente ou as terras da Aurora») é o homem de luz, ao aceder «à morada que segrega a sua própria luz».

A cognitio matutina será então o conhecimento do homem interior e da interioridade das coisas. É, pois, uma gnose e uma autognose, o conhecimento do que em nós e no mundo é interior, oculto, secreto; e pressupõe uma iniciação. Não é um conhecimento pelo corpo e pelos seus sentidos, porque estes só nos permitem conhecer o mundo exterior; é um conhecimento pela alma ou, mais precisamente, por aquela sua faculdade, aquele seu órgão subtil de percepção, adormecido na maioria dos homens, a que se dá o nome de imaginação, acrescentando-se-lhe o epíteto de criadora para que se não confunda com a fantasia. É que, ao contrário do que sucede com esta última, como ensina António Telmo, que tenho vindo a seguir, «a realidade que por ela é percebida é objectiva, no sentido de que se a alguém se revela, outro nas mesmas condições verá o mesmo. A única diferença para com o mundo sensível, com o que aí é visto e logo contado por distintos observadores, consiste em que, além, a visão fixa um universo movente. A ilha de Vénus movia-se pelas águas, docemente empurrada pelo poder da Deusa, «como o vento leva branca vela» mas, logo que os nautas a viram e se lhe dirigem, torna-se firme e imóvel».

Diante desta longa citação, começo pelo seu final, para relembrar algo que já assinalei: também a visão da Alalaia nos é dada, pelo menos tendencialmente, em termos de imobilidade. Na transposição para a linguagem iniciática e esotérica de Henry Corbin, adoptada por António Telmo, essa visão é a do mundus imaginalis, um mundo que «não é fantasia ou mentira nascida na mente, mas um mundo tão real como o sensível, intermediário dele para com o mundo inteligível».

Numa primeira fase, a que os antigos gregos chamavam os pequenos mistérios, todo o trabalho iniciático aspira à reintegração do homem decaído neste mundo intermediário ou subtil. Fala-se, então, a este propósito, na restauração do estado primordial ou na restituição a Adão, símbolo da humanidade decaída após a expulsão do paraíso terrestre, do seu glorioso corpo de luz. Se for possível demonstrar que Gilberto Pinhal concebeu a Alalaia como esse paraíso, terei praticamente concluída a demonstração da tese subjacente à minha leitura.

Peço, por isso, a vossa atenção para uma estrofe do poema onde se reencontram alguns versos já nossos conhecidos: «Verga-te, ó tempo! / que o mistério vai passar, / levando na crista da onda / o Eden dos homens, através dos espaços, sem rumo, / sem norte, sem fim. / O Eden que os homens hão-de procurar / e que jamais encontrarão».

Creio que a demonstração ficou feita. Estamos já num plano superior ao do tempo e do espaço: é o Eden, o Paraíso. Será possível alcançá-lo? E como?

Muito importante é a afirmação de que o mistério, ao passar, leva na crista da onda o Eden dos homens. O emprego do termo mistério denota o rigor da propriedade expressiva: refere a iniciação. E a alusiva identificação desse mistério com a viagem de navegação revela que esta, no seu sentido mais alto, cifra simbolicamente a demanda dessa iniciação. Tal foi aliás a significação superior que António Telmo assinalou n’Os Lusíadas.

Alguns outros versos de Gilberto sugerem que o paraíso foi outrora perdido: «ALALAIA! ALALAIA! / dos ventos do mar, / do belo e puro que o homem quis / e que Deus vedou ao homem; / és o sonho que refulge, / que o mundo ambiciona, / que o homem sente e não vê.»

Insisto: será possível alcançá-lo, a esse paraíso? Estes versos de Palma Gil, no seu aparente pessimismo, parecem responder negativamente.  Os que se lhes seguem, e que são aliás os derradeiros do poema, não consentem maior esperança: «ALALAIA!, / és o mundo belo e puro, / terra de sonho e magia / para lá do Sol, / a viver em cada coração. / ALALAIA, / vê-se… e não existe! / ALALAIA, / existe… / …e não se vê.»

Ficamos desconcertados perante uma realidade que ora nos foge ora nos ilude. Mas a ilusão é só nossa. E somos nós quem falta à chamada, que é afinal a do moço chamador, se à imortal balada de Zé Preto, já aqui evocado pela voz soberana de Mestre António Reis Marques, símbolo vivo da geração que hoje celebramos, se à imortal balada, dizia eu, restituirmos a sua altíssima significação primacial. É que essa chamada é para o mar e é para a morte. O mar como via ou caminho da iniciação, a morte como símbolo da mudança de estado que conduz a um segundo nascimento. «O chamamento essencial», na interpretação de António Telmo, num inédito que O Sesimbrense publicou em Julho passado. E por isso «o moço conhece, / da noite, os segredos. / Não teme fantasmas / E fala com os medos». O moço é um ocultista improvável, saído das páginas de As Sombras de Pascoaes, esse sublime mago do Marão em cuja leitura Telmo, vindo da Arruda, terra das bruxas, e entrado na roda de que se tornou o eixo, como belamente escreveu Rafael, iniciou os seus conviventes.   

Alalaia vê-se, e não existe, porque a sua visão é já a de um mundo cuja existência se situa num plano que os nossos sentidos não alcançam. E por isso ela existe, e não se vê. Pascoal Martins, um grande iniciado do século XVIII, judeu, cabalista e maçon de provável origem portuguesa, chamava misteriosamente ao paraíso terrestre a terra erguida acima de todos os sentidos.

Tem razão Palma Gil no seu pessimismo, que não chega a ser definitivo. Diz tudo quando escreve estes versos: «O ouro cegou olhos, / arrasou barcos, destruiu homens; / o ouro brilhou no Mundo! / De vante à ré, / nas fustas e caravelas, / soou a harpa do Demo, / que Cileneu tangia; / de mar a mar, / de cabo a cabo, / em vozear de trovão, / reboou o som maldito, / por entre o estertor das bombardas, / de amura a amura, / às camarinhas… / O ouro brilhou! / e as terras caíam, rendidas, / às velas dominadoras; / mas Alalaia, / o sonho, / continuou… / …para lá do mar impenetrável, / té que o alvor foi mais brilhante! /As naus tocaram praias de Alalaia! /As naus cobriram mares de Alalaia! / E Alalaia ficou… / na frente das proas / …nos olhos dos mareantes, /saudosos e estranhos / Alalaia à vista!, / no grito absorto / do gageiro descrente / …os barcos rodaram, / em bordo de bolina… / e, no pôr do Sol, / a terra afundou-se / aos homens de ambição».

No pôr do Sol, a terra afundou-se aos homens de ambição. Já sabemos o que entender pelo pôr do sol. É a cognitio vespertina, o conhecimento ocidental do homem e do mundo na sua exterioridade, levado ao extremo pela ambição material que cega. Alalaia existe e não se vê. Por isso o poeta, uma vez mais, nos dará notícia, do cesto da gávea, «do sol eterno, / da vida pura / do paraíso, fugido às mãos da ambição».

Resta-nos esperar por um milagre? Só ele nos levará à Alalaia?

Milagre é propriamente este poema, surgido em circunstâncias sociais, económicas e culturais que, à partida, o tornariam improvável, ou mesmo impossível. Tributário da influência de Rafael e sem paralelo na produção do seu autor, somente a Balada do Moço Chamador de Zé Preto, e alguns poemas sesimbrenses de Telmo com ele poderão enfileirar, pela sabedoria, pela beleza e pela força, no pódio do Parnaso exíguo da Piscosa. Que se saiba não foi Gilberto Pinhal um iniciado, e por isso Alalaia parece vir dar alguma razão a René Guénon quando explica a presença, no folclore, de aspectos da tradição esotérica pela necessidade que os iniciados, perante circunstâncias adversas, sentiam de a perpetuar nas criações populares, assim tornadas suas depositárias inconscientes. A esta luz, que me parece poder sustentar uma hipótese razoável, o que de mais espantoso se verifica na lenda da Alalaia, tal como Gilberto Pinhal a fixou no seu poema, são a extensão e a profundidade com que o ensinamento tradicional que ele revela pôde chegar até ao poeta e, por ele, até nós. Não são ruínas, muito menos destroços. Quase se diria uma casa pronta a habitar. E a este propósito conviria começar por verificar, dadas as ressonâncias fonéticas, que relação poderá existir entre a expressão árabe Laa ilaha ill-Allah (não há deus senão Alá), testemunho de fé do monoteísmo islâmico, fórmula empegada no chamamento à oração e no início das orações, e a nossa Alalaia. Se àquela a expurgarmos das asperezas da sua pronúncia original, teremos la-i-la-i-la-la. Talvez então Alalaia exista e se deixe ver.