VOZ PASSIVA. 130

23-06-2023 09:57

António Telmo e Tomé Natanael, ou a contemplação de si

Risoleta C. Pinto Pedro

A Literatura Portuguesa está repleta de manifestações em que os poetas revelam a sua divisão interior. Atribui-se este estado de ser à perseguição feita aos judeus na Península, convertidos à força, a partir do século XVI, sacrificados nas prisões e nas fogueiras. Mas talvez tal condição seja prévia a este contexto temporal e já estivesse escrita na história, na epigenética, nas múltiplas perseguições, nas múltiplas conversões. Desde o princípio. Por alguma razão, uma das entrevistas fictícias que António Telmo escreve é à revista Princípio, que pretensamente entrevista Tomé Natanael, anagrama de António Telmo.

Ao longo de toda a linhagem da nossa escrita literária, está patente a bipartição, a cisão do eu, a dilaceração da alma de um povo, a ferida profunda na identidade, a duplicidade, mas não só: o próprio antagonismo interior, a violência da partida, o êxodo e a saudade.

No Renascimento, Bernardim Ribeiro afirma que «Entre mim mesmo e mim não sei que se alevantou que tão meu imigo sou»; ou na novela pastoril Menina e Moça, de 1554, editada em Itália por Abraão Usque, judeu emigrado: “Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe”. Mãe humana, Mãe Pátria.

Sá de Miranda canta: «Comigo me desavim,/ Sou posto em todo perigo; /Não posso viver comigo/ Nem posso fugir de mim./ Com dor da gente fugia,/ Antes que esta assi crecesse:/ Agora já fugiria/ De mim, se de mim pudesse.» Fuga provocada por inimigo externo que se interioriza num palco interno que a literatura revela.  Como se resolve este drama? António Telmo perseguiu esta ideia na sua obra.

O próprio Camões se queixa: «Alma minha gentil que te partiste»; já ali tem tudo, a partida do lugar e a partida do eu.

Bocage, poeta do século XVIII, sintetiza a despersonalização do eu e os problemas de identidade em quatro palavras: «Já Bocage não sou».

Para criar a distância que permita o reconhecimento, os poetas procedem à fase inicial do trabalho alquímico, a fragmentação do todo e a análise das partes para poderem ver a imagem, e com ela a múltipla identidade.

Fernando Pessoa, no século XX, levou a fragmentação a um limite quase inimaginável do fulgor da separação, com os heterónimos em número considerado inédito.

Mário de Sá Carneiro, seu contemporâneo, afirma-o genialmente:

«Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio»

Exemplos que são gota de água num oceano.

A diáspora é transversal aos poetas e forma um único texto em que cada autor representa uma palavra, contribuindo, através desta aparente divisão, para a superior síntese de uma identidade em movimento de espiral.

António Telmo, relativamente a esta linhagem que também é a sua, traz a novidade da proposta de cessação de uma relação agónica no eu, o fim da luta e casamento entre as partes do sentir-se judaico com o sentir-se cristão. A superação da separação sem hostilidade, através do movimento integrador espiralado. A boa vertigem.

No outro lado da Europa latina, na Roménia, pois somos os dois países de línguas latinas dos extremos, a oriente e a ocidente da Europa, Marin Sorescu escreve “Há muito suspeitava de mim mesmo/ e hoje persegui-me durante todo o dia/ a uma distância que evitasse suspeitas”.  O conflito interior no seu apogeu, o perigo interiorizado, e a Roménia como espelho de nós mesmos, a fuga do país. Como nós, a impossível vida sob uma ditadura, neste caso política, no caso dos judeus, também religiosa.

António Telmo provém de ramos familiares contrários, liberalismo e conservadorismo, judaísmo e cristianismo, mas neste pensador, as religiões não se contradizem, levando o Espírito de Síntese à formulação de que um mais um não são dois, mas pela alquimia da iniciação maçónica, o marranismo ascende ao três e a partir daí ao infinito.

De formação literária e académica clássicas, cria uma obra profundamente filosófica, na senda de filósofos da chamada filosofia portuguesa e de poetas com ela empáticos, integrando na sua escrita o ensaio e a ficção: dissertação, reflexão, conto, drama, diálogo e poesia. O ensaio é poético, a ficção é filosófica.

A sua personagem Tomé Natanael é motivo de poema, conto, reflexão, diálogo e entrevista. Criado a partir de anagrama do nome de António Telmo, desdobra-se em Tomé, o cristão, e Nathan, o judeu. Para além de emergirem do self de Telmo, é de recordar que Nathan era profeta de David e Salomão, e Tomé um dos doze apóstolos de Jesus. Para além de formar com Nathan uma polaridade, ele próprio é palco de sentimentos extremos: a dúvida receosa e a determinação amorosa, como um fractal que como parte contém em si o todo, pois ele próprio é judeu e ainda que nutrindo um profundo amor por Jesus, duvida da sua ressurreição. Os extremos criados por Telmo não estão exactamente equilibrados, há um desequilíbrio para o lado judaico, e tal como ele próprio afirma noutro lugar, há que buscar a irregularidade da obra, pois é ela que indicia aquilo que é importante do ponto de vista do conhecimento. Um sinal, um indício, um apontar. E talvez seja este o segredo do marrano: a sua imperfeição. E a sua grande e dilaceradora dor. Aquela que lhe permite manter-se vivo e lúcido. Porque tudo o que pode ser sentido pode ser curado: transcendido e integrado.

Esta personagem Tomé Natanael, o antiquário de Estremoz, ou o seu desdobramento em Tomé e Nathan, espraia-se pela obra do filósofo. Se António Telmo e Tomé Natanael já são duplos um do outro, criador e criatura, por sua vez Tomé Natanael também se reparte no judeu e no cristão, cujos diálogos são, ao contrário do que poderia acontecer, de uma elevação profunda e inspiradora, revelando uma cumplicidade gentil entre Tomé e Nathan. Existe ainda um outro nome anagramático, Nathan de Natanael, que assina as pranchas maçónicas e que parece mais um reflexo em espelho de Tomé Natanael. Ou de António Telmo. São tantos os textos onde estas personagens surgem unidas ou desdobradas, que terei de me ater a um conto e ainda assim não haverá tempo, nesta comunicação, para o aprofundar. Um estudo maior se seguirá e prolongado se prevê que venha a ser.

No conto das polaridades ou em busca da harmonia perdida “No Hades ou o Antiquário de Estremoz”, de alguma forma Platão e Aristóteles representam a unidade criada a partir dos aparentes opostos/polaridades.

Toda a sequência narrativa é exactamente erigida como um rigorosíssimo puzzle cujas peças se mantêm viradas para baixo até que estejamos preparados para as ver.

As personagens principais são o autor, que se assume também como narrador e personagem, e Tomé Natanael, antiquário de Estremoz. O centro de tensão e atenção do conto é uma reprodução do célebre afresco de Rafael, A Escola de Atenas. O lugar, a loja do antiquário que Telmo/personagem vai visitar.

A obra é conhecida. Por entre outros filósofos, destacam-se, ao centro, Platão e Aristóteles, um apontando o céu, outro mostrando os dedos virados para a terra. Afirma André Benzimra, que “o olhar do judaísmo é o culto de Elohim, o Ser criador. Distinto de El Elyon, que «olha» para o alto, em direcção ao Ein-Soph, o olhar de Elohim volta-se para baixo, para o que se afasta do Princípio supremo, para aquilo que vai ser criado”. A atitude judaica. Mas a dupla e oposta orientação tem sido apontada como representando ideias antagónicas. Por uma sequência muito bem encadeada de pares de polaridades, Telmo vai desenvolver uma outra e superior ideia:

«O que ali me aparecia era o símbolo do perfeito entendimento entre os dois filósofos. Eles conduziam e projectavam na nossa direcção a mesma energia urânica […]»

O narrador diz que «não ouvíamos o que diziam» não porque «nada diziam», mas porque «nada diziam que se ouvisse cá em baixo», o que pressupõe que algo diziam que fora do quadro não era possível escutar. É também quando o quadro já não se encontra presente na loja do antiquário, que se revela: «Durante um instante, a Imagem acendeu-se cheia de cor e de luz diante de mim», o que mostra, ou antecipa, o que pretendemos mostrar.

Num outro texto deste autor, intitulado “Platão e Aristóteles ou o Mesmo e o Outro”, Telmo declara que «a oposição que se diz existir expressa nos textos de Aristóteles não é entre os dois filósofos, mas entre platónicos e aristotélicos», os discípulos. Na essência, não há separação: «Ambos dizem o mesmo. Aristóteles tem em vista o homem natural. Platão o homem sobrenatural ou nascido segunda vez». O iniciado. Para Telmo, a chave é a iniciação.

Voltando ao conto objecto do nosso estudo, “No Hades”, Tomé Natanael, personagem do conto, é apresentado como «um dos discípulos actuais de Hermes». Se ele é um discípulo de Hermes, haverá uma loja oculta aos profanos. Oculta, e como tal não referida, mas com um lado visível: a loja “aberta”, como ali se diz. Nomeada e visitada.

Tal como o fresco de Rafael, “A Escola de Atenas”, apenas reflecte o mundo onde pensamos a três dimensões ou assim o percebemos: «A sensação de que têm três dimensões e não duas se deve a estares tu também reflectido nele».

Assim, Platão e Aristóteles da reprodução do fresco de Rafael só aparentemente pertencem a um mundo a duas dimensões, isso decorre de os vermos de fora. Logo, tudo é o mesmo. Ou um. Jogo de luz e sombra, de aparência e realidade.

O diálogo neste conto entre o autor/narrador/Telmo com a “personagem” Tomé Natanael é o diálogo de Tomé Natanael consigo mesmo, isto é: de Telmo com Telmo. O autor/narrador/ escritor/António Telmo (porque todos se confundem), procura Tomé Natanael na sua “loja aberta” encontrando-o a polir uma lente, objecto não casual nem inocente, pois o que se pretende mostrar é que é tudo uma questão de ponto de vista ou de incidência e de refracção da luz.

Tomé Natanael encoraja o visitante a olhar a cena do quadro sem focar. Até ver a realidade como um tapete persa. Ou de Arraiolos. A estrutura profunda.

O conto é um finíssimo, hábil e notável jogo de realidade e sonho, visão e ilusão, mundo a duas e a três dimensões, luz e sombra, visão ao perto e ao longe, presença e ausência, eu e eu/outro… Cruzamento e intersecção de mundos onde é possível «Platão nos entregar o seu Timeu ou Aristóteles as suas Categorias. Estou-me a ver a levá-los para casa, a folheá-los na minha secretária.» Categorias sobre as quais dirá Tomé Natanael, o antiquário:

“Como se trata de um filósofo grego, a ninguém ocorre interpretá-las pela kabbalah que é, como se sabe, a tradição sófica hebraica». No entanto, numa dimensão oculta, essa correspondência é perfeita, como no conto eloquentemente se explica.

As correspondências são praticamente a estrutura deste conto e da sua obra, ponte entre o visível e o invisível. Uma Misteriosofia. Platão representa o compasso ou o céu, Aristóteles o esquadro e a terra. Símbolos iniciáticos. Não se opõem, complementam-se.

Aquilo que pode ser visto como divergência entre as duas religiões, as coisas do céu e as coisas da terra, é, ao invés, “o perfeito entendimento entre os dois filósofos” pelo dedo de Platão que em ponta para cima recebe, e passa o que recebe, à mão com a palma para baixo de Aristóteles, como duas antenas ligadas, aquilo que Telmo refere em vários escritos como a síntese superior das religiões, o que a filosofia portuguesa procura resolver através, também na sua expressão, da razão poética. Na correspondência entre a orientação das duas mãos com «a relação ritual do esquadro e do compasso», temos a superior boda oferecida pela Maçonaria, onde as divergências entre os credos não só se atenuam, mas elevam.

Por isso, quando o narrador afirma que Tomé Natanael tem “loja aberta” não poderemos passar pela expressão sem um especial olhar. Mais tarde, o autor também personagem da diegese, encontrará “a loja fechada”. As lojas simbólicas encerram depois dos trabalhos, à meia-noite como ritualmente é pronunciado, e o trabalho deste aprendiz, pelo menos uma parte dele, que fora a meditação sobre a correspondência entre as Categorias e a árvore da Kabbalah, já estava concluído. 

As correspondências, forma perfeita de velar, revelar e desvelar, de descobrir cobrindo e encobrindo, constituem o mais desenvolvido talento sefardita, o disfarce, que ao mesmo tempo, neste processo de espelho que é a correspondência, melhor se reconhece na profunda essência. É o valioso privilégio que o marrano ou sefardita paga, preço bem caro, pois é na separação dos seus eus que melhor pode vir a conhecê-los e uni-los, na já referida síntese superior.

Talvez por essa razão, António Telmo vá usar, para interrogar Tomé Natanael sobre os dois “filósofos altíssimos” e “a prisão das figuras em que os imaginou Rafael”, o modo dórico. A prisão é a visão antagónica de ambos, o mundo plano. Mas na Grécia Antiga, a doutrina do Ethos (ou afectos) assentava na capacidade dos sons de influenciar e modificar a natureza moral do homem, por uma estreita relação com a alma, e os nomes com as coisas. Ora o modo dórico expressa o espírito intermédio, a circunspecção, o que permite superar a ilusão do antagonismo, e é precisamente nessa linha que a resposta lhe vai ser dada, encorajando-o a subir os quatro degraus que conduzem aos dois filósofos para transcender a ilusão do 2 e do 3 e a fixidez das imagens, e poder aceder à vida, ao movimento, às vozes e aos pensamentos inacessíveis.

O número simbólico da Loja Maçónica no seu primeiro grau é o três, que ele é encorajado a transcender subindo os quatro degraus para aceder à quinta dimensão, ou para entrar num mundo paralelo que é aquele em que se encontram as figuras de Rafael, sendo que é o cinco o número do 2º Grau ou do Companheiro, aquele que viaja. Trata-se do grau em que se encontra Tomé Natanael, pois numa próxima visita, o aprendiz encontra a loja fechada por o antiquário ter ido viajar por cinco dias, o número do grau do Companheiro. É após esta viagem do antiquário, o seu outro eu, que Telmo alcança entrar no mundo pintado por Rafael e, depois de subir os degraus, penetra num mundo anteriormente impossível até de almejar. 

Na linha do disfarce marrano (a designação mais comum para o sefardita ibérico), onde também se encaixa o nome simbólico dos iniciados, é dito de Tomé Natanael, o antiquário, que “ali em Estremoz é conhecido” por esse nome. Interrogamo-nos acerca do seu nome verdadeiro. Ou o verdadeiro é o simbólico? É o tema central, o poder e o valor da palavra, tão caro ao Cabalista. É quando, pela primeira vez que é confrontado com o nome de António Telmo, através de um cheque que este lhe passa por uma compra de dois candelabros, esses judaicos transmissores de luz, aqueles sobre os quais repousa o Espírito de Deus, que Tomé Natanael se apercebe que os nomes são anagrama um do outro, em espelho.

A escrita de António Telmo é da natureza das obras a que pertence o afresco de Rafael. Olhamo-la dezenas de vezes sem nos apercebermos até que ponto está viva e fala. A três e a cinco dimensões. Um dia, depois de muita contemplação, entra-se nela e percebe-se, é o caso deste conto, como palpita grávido de uma história que já descortinávamos, mas que resplandece apenas quando nela, finalmente, entramos. É aí que podemos travar conhecimento com Tomé Natanael e reencontrar António Telmo. Como este desvenda no conto seguinte, “A Minha História”, ficamos a saber que a partir de um encontro com alguém real, o pintor Délio Vargas, este o informara, para sua estupefacção, pois o antiquário nascera da sua imaginação, que o conhecia, e trocara com ele longas cartas em que o antiquário dissertava sobre Cabala. Era também casado com uma professora chamada Antónia, como a esposa de Telmo.

Tudo isto poderia ter ficado no limbo do género ambíguo que em Telmo flutua entre a ficção poética, a biografia e o ensaio, se eu própria não tivesse vindo a conhecer o pintor Délio e ouvido da sua boca o testemunho sobre a existência do antiquário de Estremoz estudioso da Cabala e companheiro de entrada em mundos. Seu nome: Rafael! O meu cérebro racional calcula que Tomé Natanael e António Telmo não sejam os únicos a conseguir entrar em outras dimensões. Também Délio Vargas, o talentoso artista, o consegue. Em vós, caros companheiros deste momento, sei que ficará uma dúvida: se não serei eu própria cúmplice desta trama misteriosa, inventando a existência do pintor. Acontece que tenho ao meu lado quem tenha assistido e ouvido o testemunho. Para além disso, poderão em qualquer altura dirigir-se a Lisboa e provocar um encontro com o pintor Délio e quem sabe?, cá organizar um congresso? Em Estremoz debalde procurarão pelo antiquário, a não ser que tenham mais sorte do que eu. Talvez pelo processo de Telmo e Tomé Natanael, eventualmente também do próprio Délio, possam encontrar a Loja. Até lá poderão ir treinando o método ensinado a Telmo pelo antiquário. Olhar através do dedo indicador apontando o céu como o de Platão, não focando o dedo, mas para longe até verem a imagem em duplicado e olhando pelo intervalo. Ou “qualquer coisa de intermédio”, como escreve Mário de Sá Carneiro na passagem do poema que li ao início. Tal como o modo de interrogação dórico, espírito intermédio. Foi assim que Telmo finalmente entrou no cenário da Escola de Atenas num dia em que a reprodução já tinha sido retirada, e apesar de tudo ali não só a viu, como nela entrou. Recomendo, a quem não conheça, a leitura destes Contos Secretos, parte da Obra Completa do filósofo, felizmente editada. Uma deslumbrante forma de entrar no pensamento marrano de um escritor e pensador superior.

 

Maio de 2023