VOZ PASSIVA. 66

06-11-2015 00:22

Completam-se nesta data cem anos sobre o dia da partida de José Pereira Sampaio (Bruno), a quem Álvaro Ribeiro considerou como o fundador da Filosofia Portuguesa. Na passada quarta-feira, no Palácio da Independência, em Lisboa, iniciou-se o Congresso "A Obra e o Pensamento de Sampaio Bruno", que por ontem e por hoje se prolonga, desta feita na cidade do Porto, berço do filósofo. "Sampaio Bruno e António Telmo" foi o título da comunicação apresentada ao Congresso por Pedro Martins, no dia da abertura dos trabalhos. Na mesma mesa, um outro membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, Rui Lopo, falou sobre "O Oriente, o Orientalismo e as religiões asiáticas na obra de Sampaio Bruno".

Do primeiro, publicamos agora o texto integral da sua comunicação. 

Sampaio Bruno e António Telmo

Pedro Martins

 

 

Foi-me proposto falar sobre Sampaio Bruno e António Telmo. Sob a aparente dualidade, há, porém, um terceiro termo. Um termo médio, implícito e unitivo. Refiro-me a Álvaro Ribeiro, nome incómodo e frequentemente silenciado, que tinha António Telmo na conta do seu melhor amigo, como numa carta, ainda em vida de José Marinho, nos deixou escrito.

Durante a década do seu período formativo, entre 1952, ano da publicação do primeiro artigo, “Lusismo e obscurantismo dos estudos clássicos”, e 1963, ano da edição do livro de estreia, Arte Poética, Telmo publica vinte e seis dispersos na imprensa periódica, abarcando matérias como a linguística, a filologia e a filosofia. Uma quinta parte é especificamente dedicada a Sampaio Bruno.

São eles:

 

Em 1955: “Problemas do estilo em Sampaio Bruno”, no Diário de Notícias.

 

E em 1957:

- Uma breve nota sobre “O Centenário de Sampaio Bruno”, no 57.

- “No centenário do nascimento de Sampaio Bruno”, no Diário de Notícias.

- “Sampaio Bruno, crítico literário”, no 57.

- “Sampaio Bruno”, no Diário Ilustrado.

 

Encontramos ainda outros escritos cujos títulos nos revelam nomes de autores: recensões no 57 sobre A Razão Animada, de Álvaro Ribeiro, e sobre Estética e Enigmática dos Painéis, de Afonso Botelho, além das “Notas sobre Teixeira Rego” (que, bom será lembrar, é um discípulo de Bruno) e do artigo “Como traduzir Henrique Bergson”, ambos no Diário de Notícias

Perante tal quadro, é inquestionável e significativo o predomínio da atenção prestada a Bruno na formação do pensamento de Telmo. Note-se que não há qualquer artigo especialmente dedicado a Leonardo Coimbra. Apenas algumas referências lhe são feitas nos escritos deste período.

É fora de dúvida a influência de Álvaro Ribeiro. António Telmo esteve sempre mais próximo do autor de Escola Formal do que de José Marinho, no plano da afeição como no do pensamento. Poderia invocar os testemunhos do próprio Telmo, aliás corroborados pela correspondência dirigida ao mestre. Irei, porém, considerar apenas o segundo aspecto, o teorético, para aqui enfatizar o denominador comum que os unia: o judaísmo ou, se se preferir, o cripto-judaísmo. Dizendo isto, estamos já a escrever a palavra kabbalah.

Entre os aspectos relevados nos primeiros escritos bruninos de Telmo conta-se o do estilo. Refutando a pretensa ilegibilidade de Sampaio Bruno, não deixa, todavia, de lhe reconhecer «um obscuro, raro e estranho estilo», aliás, «enigmático», pois que mostre, «na verdade, uma forma de escrever invulgar e singular». Mas nem por isso o considera difícil, «na medida em que se oferece numa linguagem comum, embora clássica». «Dialogado, intimista, erradio e errante», este estilo «conta-nos anedotas; narra, com minúcia, episódios autobiográficos; intercala, na discussão dos temas mais difíceis, expressões vulgares.» Bruno, diz-nos Telmo, «havendo estudado a prosa portuguesa, soube que há um processo português de filosofar, diferente dos processos utilizados por outros povos» e que, acrescentarei eu em síntese, privilegiando o paradigma barroco em detrimento do paradigma clássico segundo a lição de Eugénio d’Ors, se opõe às estruturas lineares e geométricas do racionalismo, helénico ou iluminista.

Se, como Telmo faz notar, já José Marinho, contrapondo o estilo de Leonardo ao de Bruno, a este último o incluíra no «grupo de pensadores que vivem na constante exigência, mais ou menos dolorosa, de expressar uma ideia remota e obscura, sempre fugitiva», Álvaro Ribeiro, citado pelo discípulo, n’A Arte de Filosofar irá, por seu turno, observar:

 

…se para muitos pensadores é certo que na obra escrita não exprimem algo do muito que queriam dizer, para Sampaio Bruno o aparentemente descosido da sua exposição significava, pelo contrário, a perseguição oculta das suas intuições essenciais.

 

 

A metáfora constitui-se então como pedra de toque de um estilo, como o de Bruno, propositalmente obscuro. No mesmo livro, que Telmo volta a citar, escreve ainda Álvaro Ribeiro:

 

A relacionação metafórica de imagens, perfeitamente admissível num pensador que atribuiu à revelação o processo único de aproximação da verdade, mas de difícil seguimento para os pensadores que desejam que o estilo filosófico represente literariamente os processos lógicos da indução e da dedução, igualmente prosaicos, dá causa a que se diga ser a obra de Sampaio Bruno quase completamente ilegível. 

 

Conclui Telmo:

 

Estamos aqui já muito além da opinião geral. Podemos agora atribuir uma significação à obscuridade do estilo de Sampaio Bruno. Muito longe de representar deficiência de expressão, exprime um processo metafórico de transcensão para o ignoto.


Quem quiser encontrar os fundamentos da razão poética de António Telmo, não deve deixar de os procurar aqui, no âmago da razão metafórica de Sampaio Bruno, precursora da razão animada de Álvaro Ribeiro e afinal tão tributária da conversação que o autor de O Encoberto cedo entabulou com Junqueiro, um e outro inscritos no centro do hexagrama segundo o qual, na visão télmica, se define a sizígia da filosofia portuguesa, pelo diálogo incessante da poesia com a filosofia.     

O que acaba de ser dito do estilo brunino coloca-nos o problema da hermenêutica, ali onde nos remete para o plano interior do esoterismo, de cujo estudo na tradição portuguesa Sampaio Bruno se irá aliás ocupar n’Os Cavaleiros do Amor – e aqui, uma vez mais, não será difícil entrever na obra pioneira do portuense o prelúdio da genial desocultação simbólica e filológica depois operada por António Telmo. Como escreve Miguel Real:

 

«Dito de um modo muito claro: o lugar de António Telmo na cultura portuguesa releva-se por ter sido o grande pensador da segunda metade do século XX, na esteira de Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, a teorizar o esoterismo, atribuindo-lhe um estatuto de testemunho e prova tão positivo quanto a prova factual mais concreta, furtando estes estudos à parafernália de seitas e grupúsculos marginais ao saber instituído.»

 

E que a filosofia de Sampaio Bruno se constitua ela própria como a expressão exotérica de um esoterismo, que é o da kabbalah, eis um ponto que, como veremos, o crivo decifrador do autor da História Secreta de Portugal não deixou passar em claro. 

Se, na visão télmica, o estrangeirismo sintáctico e lexical de muitos intelectuais portugueses sugere a suposta ilegibilidade de Bruno, resultante do seu estilo peculiar, idênticos preconceitos regem a dificuldade de pensamento acusada nos seus livros. No entanto, logo em 1957, diz-nos Telmo:

 

Quanto ao pensamento de Sampaio Bruno, a todos é acessível. Julgamos ser lícito utilizar análoga argumentação à de que nos servimos para com o estilo. Emerge esse pensamento das profundidades da sabedoria popular, mas o filósofo vê-se obrigado a fazê-lo defrontar as filosofias estrangeiras que, no seu tempo, se tornaram seguidas entre nós. Se a nossa educação filosófica partisse dum fundamento popular e nacional, com vinte e oito anos qualquer de nós se encontraria apto a compreender o pensamento de Sampaio Bruno em toda a sua profundidade, pois aparecer-nos-ia como um prolongamento natural da nossa mais funda sabedoria. Infelizmente somos educados para reflectir as filosofias estrangeiras e, esquecidos de que a estas é aplicável análoga relação para com as origens, vemo-nos limitados a conhecer apenas o que nelas é susceptível de versão internacionalista. Na verdade, como se torna fácil o aristotelismo, o hegelismo, o bergsonismo, uma vez desligados da essencial relação com as origens, e como é difícil Sampaio Bruno, se o queremos moldar a uma visão internacionalista!       

 

Não esclarece Telmo as profundidades da sabedoria popular e nacional de que emerge o pensamento brunino. Mas é provável que pressuponha a tradição portuguesa tal como, dois anos antes, Álvaro Ribeiro a definira n’A Arte de Filosofar, pela confluência, entre nós, das três tradições abraâmicas, e, ainda aqui, poderíamos nós dizer: pela kabbalah. Uma kabbalah onde a influência islâmica se mostra diminuta. Como em Apologia e Filosofia se afirma:

 

A luta contra o islamismo não representa só um feito da história política: do facto nos cumpre considerar a causa e os efeitos. A repugnância pelo extremo monoteísmo islâmico e pela interpretação árabe do aristotelismo configuram-se nos documentos verídicos do pensamento português. Nem a razão se aliena dos processos gnósicos, sóficos e písticos, nem a fé deixa de persistir na variação dos graus da fenomenologia religiosa.

 

O desapreço em que Bruno tem o credo islâmico afere-se n’A Ideia de Deus: «O espaço que medeia entre o rude fetichismo naturalista do selvagem e o monoteísmo grosseiro dos maometanos resulta, comparado, relativamente pequeno.» 

Que, no Diário Ilustrado, António Telmo se afoite a considerar Bruno um «notável pensador hebraico», explica-se, a meu ver, pelo consciência cúmplice de uma comum filiação, adquirida na leitura meditada do portuense ilustre e mediada pelo ensino acroamático de Álvaro Ribeiro, que em 1969, n’A Literatura de José Régio, enfim assume com razoável clareza o pendor hebraizante do seu pensamento:

 

A nossa tese, recebida da filosofia da história que entre nós foi escrita por Sampaio Bruno, é a de que a principal causa da decadência dos povos peninsulares está maravilhosamente descrita no livro O Encoberto (1904). É portanto uma interpretação religiosa, referida ao primeiro sistema de filosofia da história, seja o providencialismo messiânico da Bíblia. A Península Ibérica decaiu por consequência da expulsão dos Judeus.

A influência cultural deste povo de monoteísmo transcendente, que não reconhece representação nem representante de Deus na Terra, povo de doutores fiéis a uma Doutrina que não impõem por métodos de proselitismo, mas, que defendem pelo sacrifício da própria vida, povo para o qual são pecados mortais só o homicídio, o adultério e a idolatria, povo que considera a aliança como padrão da vida religiosa, que antecede de um ritual belo, sério e santo o próprio acto conjugal, que santifica o sábado como dia de festa da família, que pratica a oração com simplicidade, modéstia e alegria, que espera pela era messiânica de redenção da humanidade, a influência de tal povo, repetimos, ainda não foi assaz reconhecida por etnógrafos e historiadores. Este povo que vive, respeita e pratica um admirável preceito, segundo o qual «o pai que não manda ensinar um ofício ao seu filho faz dele um pedinte ou um ladrão», trabalhando destituído de instituições políticas e fixado na vida civil ou privada, foi o educador filosófico e religioso de outros povos migrantes, exerceu uma influência civilizadora que permaneceu latente e oculta depois de ser expulso da Península Ibérica. Este factor é muito mais importante do que aquele que aparece sublinhado pelo materialismo histórico, ou seja, a falta de tais homens no comércio, na indústria e na agricultura, ocupações que poderiam ser igualmente distribuídas pelas várias camadas da população católica.

 

Dois anos decorridos, em carta para Álvaro Ribeiro, escrita de Sesimbra e datada de 28 de Abril de 1971, revela António Telmo:

 

Meu caro sr. Dr. Álvaro Ribeiro

 

Com o título Sampaio Bruno e a Tradição Hebraica Portuguesa, envio-lhe o que escrevi nestes dias a partir do que por cá tinha. Parece que o escrito tem unidade e configuração para livro. Fiquei com uma cópia. Agradeço que lhe dê o destino combinado. Não referi todas as citações aos livros, porque não disponho de todos estes e porque suponho que se pode fazer em trabalho sobre as provas. Se achar que convém fazê-lo já, agradecia que mo mandasse dizer.

Assino o livro com “António Carvalho”, por razões que o sr. Dr. Álvaro Ribeiro conhece…

(...)

 

Relembro que o destinatário da missiva se chamava Álvaro de Carvalho de Sousa Ribeiro, e por isso me dispenso de aclarar o alcance das palavras do seu remetente, António Telmo Carvalho Vitorino.

Por uma outra carta, de Valle de Figueiredo para António Telmo, de 9 de Junho de 1978, ficamos a saber que Álvaro Ribeiro, significativamente, lhe indicara o nome do discípulo dilecto para a escrita do prefácio à reedição de O Encoberto, de Bruno, que as Edições do Templo tencionavam então concretizar. A reedição gorou-se, mas o prefácio ficou. Veio a lume em 2005.

Este escrito constitui, da parte de Telmo, o primeiro grande tentâmen hermenêutico do pensamento de Bruno, que, segundo o autor de A Aventura Maçónica, no seu livro de 1904

 

(…) parece querer dizer-nos (…) que o movimento sebastianista, organizado em torno das profecias de Gonçalo Eanes Bandarra, foi uma criação judaica, de fundo messiânico, lançada contra a Inquisição. Chega mesmo a sugerir, nas últimas páginas do livro, que as profecias não se refeririam a D. Sebastião, como mais tarde um D. João de Castro e um Padre António Vieira viriam dizer, mas aludiam à acção de David Reubeni, misterioso judeu alemão, que terá estado em Portugal no reinado de D. João III, era protegido pelo papa Clemente VII, dizia-se vindo do Oriente, de onde o enviara o Preste João, e tentara converter ao judaísmo o próprio imperador Carlos V através do seu discípulo Salomão Malcho, o português Diogo Pires.

   

A par daquele que o põe ao serviço da ideia católica de domínio universal, o sebastianismo, na leitura télmica de Bruno, ganha um outro sentido, em que é já a ideia judaica de fraternidade universal que o sustenta. Este segundo sentido, na visão que Telmo projecta sobre O Encoberto,

 

terá sido animado e movimentado por uma organização secreta, depois conhecida cá fora por Maçonaria, tornada activa em Portugal, segundo o mesmo Bruno, no tempo de D. João III, por intervenção do referido David Reubeni, que já ostentava um avental com os sacros símbolos da Ordem.

 

No plano do culto, o propósito de Reubeni, segundo Telmo lê em Bruno, seria o de, pela kabbalah, a Igreja se ligar à Maçonaria. E o socialismo, que O Encoberto patenteia, seria já uma projecção política desta realidade no plano da civilização. Vale a pena citar António Telmo, por mais que as suas palavras contrariem quantos, à esquerda e à direita da cruz, por desencontradas razões, porfiam em assinar à filosofia portuguesa um fundamento reacionário:

 

Podemos discordar de Sampaio Bruno, mostrando como o socialismo constitui uma degenerescência da Maçonaria. Aqueles que, de um ponto de vista esotérico ou simplesmente religioso, formam uma imagem minorativa da Maçonaria porque o socialismo ateu ou igualitário dela derive ou nela se fundamente, deveriam pensar que, também para os católicos, os caminhos sinuosos do clero não alteram a perpétua verdade da Igreja fundada por Pedro. Todavia, Sampaio Bruno vê no socialismo democrático subordinado à ideia suprema de República a aplicação ao progresso da humanidade dos princípios sóficos da Maçonaria. Assim como Leonardo Coimbra dizia ser a “mecânica” o socorro de Deus enviado ao Nada, quererá talvez significar Sampaio Bruno que o socialismo constitui o socorro que o todo homogéneo dos seres integrados envia ao nada dos seres decaídos. O fim da Maçonaria no plano político será assim a participação dos membros dispersos e dilacerados da humanidade numa grande e luminosa unidade interior. Nem um só homem poderá ficar fora do processo universal de realização da Bondade. Todos os homens, pela democracia, serão chamados a cooperar activamente na política, assumindo-se cada um como uma parcela luminosa do universo, pois, enquanto emanação superior, conquanto esquecida de si, possui a potencial dignidade de um “sacerdote-rei” maçon, de um arquitecto. Há então que correr o risco que consiste na subversão dos elementos superiores pelos elementos inferiores. Mais do que o risco, há que viver essa subversão sem a cobardia do egoísmo, a não ser que se aceite a ideia pessimista de que para sempre haverá divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os que podem e os que não podem.



A asserção télmica de que «o socialismo, em baixo, abrangerá tanto camitas como semitas no mesmo movimento de aperfeiçoamento moral», e bem assim a referência ao judeu português Pascoal Martins, por mor da formulação da tríade Liberdade, Igualdade e Fraternidade pelo seu discípulo Saint-Martin, preludiam já, neste escrito de 1978, algumas das coordenadas que, uma década depois, irão nortear o artigo “Sampaio Bruno, «o Encoberto», marco miliário da ideação télmica, aliás contemporâneo da axial Filosofia e Kabbalah.

Dada a ressurgência do ancestral conflito étnico entre camitas e semitas que o pavor inquisitorial revelara a Bruno, António Telmo vê nos conversos um veículo do recalcamento, debatendo em agonia os arquétipos contraditórios do velho e do novo credo, aquele relegado para o subconsciente. Esboçando uma tipologia marrana próxima daquela que já encetara no ensaio sobre “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa”, e que só com o prefácio ao livro de Alexandre Teixeira Mendes sobre Barros Basto, de 2007, se dirá perfeita, Telmo considera várias espécies de cristãos-novos, dos fanáticos que realizam «o mais fundo recalcamento da religião que receberam dos seus pais» aos dissimulados que continuam às ocultas a praticar a religião antiga, sem esquecer «a hipocrisia que leva a uma prática automática, sem crença, dos novos ritos e que degenerou, na sucessão das gerações, em materialismo ateu».

Há ainda uma quarta espécie, aquela a que propriamente responde O Encoberto. A dos marranos que, pela harmonização gnósica dos dois credos, alcançam uma doutrina superior. É nesse veio oculto que deveremos inscrever o cabalista David Reubeni e o seu discípulo português Diogo Pires, e por isso Bruno, nas páginas finais de O Encoberto, se demora a relatar o episódio em que estes

 

tentaram convencer o Papa a abolir a Inquisição e convencê-lo com a ideia de se trabalhar para uma síntese, verdadeiramente católica, das duas religiões. É também nessas páginas que rememora o ensino em França do judeu português Pascoal Martins, que profundamente influenciou o católico ultramontano Joseph de Maistre.

 

Do primeiro lembrará Telmo, no livro cripto-maçónico de 2006, ser sua a intenção de, também pela Cabala, ligar a tradição judaica à tradição cristã. E n’“As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa” anotara já com incisão o surpreendente, por imprevisto, maçonismo do autor dos Serões de São Petersburgo.

Se a compatibilidade da cabala martinista com a filosofia de Bruno, que Telmo tanto frisa, por consabida não carece aqui de desenvolvimentos; e se a leitura d’A Ideia de Deus à luz da kabbalah de Isaac Lúria, já sugerida n’“As Tradições Heterodoxas…”, e plenamente demonstrada no prefácio que o filósofo redige para a reedição, em 1998, d’O Brasil Mental de Bruno, constitui mais uma façanha da sua argúcia sagaz, o que a este propósito importa firmar é o modo como, na visão télmica, a teodiceia e a filosofia da história de Sampaio Bruno oferecem expressão exotérica ao esoterismo da kabbalah.

Em livro inédito sobre a gnose judaica de Álvaro Ribeiro, prestes a sair a lume no IV Volume das suas Obras Completas, António Telmo vê no aristotelismo do mestre a expressão exotérica do esoterismo que a síntese judeo-cristã da kabbalah portuguesa representa. Significativamente, o jovem Telmo, escrevendo em 1957, refere-se por este modo a Sampaio Bruno:

 

(…) criticando o pitagorismo, que parte da noção do nada, subordinando à teologia as outras ciências que, com ela, constituem a filosofia, estruturando a física pelo estudo do movimento a partir da queda, relacionando a forma da natureza com a palavra da alma, concebendo a causa final como primeira das causas, cria uma filosofia caracterizadamente aristotélica. Discute-se muito, em certos meios, as características do nosso pensamento. Quem ler os livros do Estagirita, não só através dos comentários cristãos e islâmicos, mas também hebraicos, logo descobrirá o fio que permite seguir aristotelicamente o pensamento de Bruno, ou seguir bruninamente o pensamento de Aristóteles. Tanto é certo que somos aristotélicos sempre que lemos, traduzimos e interpretamos o notável pensador hebraico pelas verdadeiras categorias da língua portuguesa.

  

Uma última nota sobre “Sampaio Bruno, «o Encoberto» e a leitura que nele se faz d’A Ideia de Deus. O que ali mais importa reter é a caracterização da kabbalah por oposição à gnose, ou ao gnosticismo, considerado este como uma tendência para a desumanização, palavra que deve ser entendida «em relação ao homem e à mulher e ao filho de ambos». Está aqui bem patente, pela recusa do corpo, do sexo, da criação e da vida, a oposição à matriz judaica de santificação do corpo que enforma a kabbalah, entendida esta, na senda de Bruno, pelo prisma da vivificação e do des-envolvimento da matéria que, não sendo eterna, antes nos aparece impregnada, animada e purificada pelas emanações espirituais que, no palco terrenal do mundo e da história, a subtilizam e redimem. Assim se recusa o decisivo predomínio da elevação da alma que, em fuga ao mundo, segundo André Benzimra, caracteriza funcionalmente o cristianismo, e que o radicalismo gnóstico leva às últimas consequências. Daí que o filósofo da razão poética tome partido por Álvaro Ribeiro em detrimento de José Marinho, para valorizar a política como a primeira das ciências, asserção que o autor da Teoria do Ser e da Verdade, caracterizado como um céptico e um místico no juízo alvarino, não estaria em condições de aceitar. A filosofia alvarina define-se, desde o início, como um pensamento que se realiza entre a contemplação e a acção, e não entre a contemplação e o Ser. Outro tanto se poderá dizer de Sampaio Bruno e António Telmo.