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21-08-2014 00:10

QUATRO ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

[António Telmo em 1996, durante uma visita ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa]

 

Numa carta para Álvaro Ribeiro, datada de 8 de Dezembro de 1966 – a primeira que escreve ao mestre depois de, em Fevereiro desse ano, haver chegado a Brasília –, António Telmo dá-lhe conta de, «levado na onda» – entenda-se: sob a forte influência pessoana de Agostinho da Silva, que anos antes havia publicado Um Fernando Pessoa e amplamente contribuíra para a divulgação do poeta de Mensagem em terras de Vera Cruz –, haver já redigido um livro sobre Fernando Pessoa, mais lhe afirmando estar a tentar pensar muito diferentemente do que fizera «durante a Arte Poética». Não sabemos que destino terá tido esse livro que Telmo escreveu no Brasil, mas parece realmente ser outro que não aquele que, mais tarde, em escrito ainda inédito, datado de «Belém de Cachoeira, 7. 3. 68», Agostinho da Silva lhe irá prefaciar, escrito esse que este ano sairá a lume no número 73/74 da revista de cultura libertária A IDEIA. Pelo menos, dois livros escritos no Brasil, e que se terão perdido irremediavelmente, ajudam a desfazer a ideia, algo apressada, e hoje em absoluto infundada, de que esses anos na América do Sul se não traduziram em obra. Na verdade, depois de “Arte poética e surrealismo”, artigo recentemente republicado nesta página com comentário de António Cândido Franco, saído a lume no n.º 8/9 (Inverno [Dezembro] 1965) da revista Espiral, dirigida por António Quadros, e até ao seu regresso à Europa, Telmo limita-se a publicar dois artigos na revista Panorama: “Caçando com cão”, que mais tarde incluiria em Filosofia e Kabbalah; e “Cabral e o novo Oriente”, que hoje publicamos, no dia em que se completam quatro anos sobre a sua partida, acompanhado do comentário de Miguel Real. Escreve ainda, em Brasília, "Os heterónimos de Fernando Pessoa", artigo que apenas virá a publicar em Portugal, n'O Sesimbrense, em 1973. Precisamente radicado num Fernando Pessoa que já bem conhecia (e a este ponto de partida não será estranha a influência de Agostinho de Silva, aliás manifesta em grande parte do artigo), e evidenciando a busca de novos caminhos, é possível que este último escrito condense, em súmula, as teses do livro sobre Pessoa, que em Dezembro de 1966 se encontrava já «numa gaveta». Certo será apenas o anúncio de um pensador que procura reinventar-se ao dealbar da sua maturidade, através de um ensaio a que também não faltam preciosas referências autobiográficas, como a do encontro marcante com Ariano Suassuna, vulto maior da cultura brasileira há bem pouco desaparecido...

 

Cabral e o novo Oriente[1]

 

A Europa jaz, posta nos cotovelos.
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado,
O direito é em ângulo disposto;
Aquele diz Itália onde é pousado,
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal
O Ocidente futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

 

Fernando Pessoa  

           

 

O que mais se discute, no círculo dos historiadores, é se foi ou não intencional o descobrimento do Brasil por Pedro Álvares e há da parte de muitos portugueses, de quase todos, e também de muitos brasileiros, a busca de argumentos que para sempre eliminem da rota das caravelas o acaso dos ventos ou das correntes ou da sorte. Bem sabemos que outro será o entendimento das razões e intenções políticas dos descobridores, quer se atribua o achado do Brasil ao acaso, quer se o atribua à ciência. Todavia, se com Fernando Pessoa pensarmos que «Deus era o capitão da frota», nasce-nos a tentação irresistível de identificar as correntes e os ventos do mar com os ventos e as correntes do Alto. O acaso só existe para quem não admite uma outra e diferente sabedoria, sem a qual a nossa, matemática e geométrica, nem sequer existiria e, por isso, talvez fosse preferível estudar em que medida parece não haver vontade quando o espírito que quer actua nas regiões do inconsciente. E então o Brasil seria o nosso filho concebido em mistério divino, enquanto os outros povos do mundo por nós descobertos seriam os nossos filhos humanos.

Ora, como aquilo que pertence ao domínio do inconsciente não pode ser apreendido pelos métodos habituais dos historiadores, seguiremos a linha indicada pelo Poeta, confiantes também nos acasos do pensamento, que é como tem vindo alguma fama e como tem havido algum valor nos escritores que pensam para cá dos Pirenéus e para lá de Descartes. Convida-se, pois, o leitor a ler outra vez o poema que serve de epígrafe a este escrito e a seguir depois comigo – na senda das analogias, dos símbolos, das simetrias, na esperança de haver mais, para além dos limites do nosso espírito.

 

*

 

A Europa é vista como um Jano, de dúplice rosto como convém: a Grécia que assimila, lembrando, a sabedoria do Oriente, e Portugal que fita o Ocidente futuro do passado. E, uma vez que o passado é tudo quanto a Grécia lembra, no lugar do futuro para onde Portugal olha irá nascer um novo Oriente. É um fenómeno que se designa em certas tradições por inversão dos pólos. De facto, o movimento cultural iniciado pela Grécia, ao contacto sobretudo com a Ásia Menor, é de sinal nórdico, com a Inglaterra e a Alemanha, protestantes e puritanas, a ritmarem o passo da civilização europeia, levando a todos os pontos do espaço a técnica, a economia e a moral, e projectando-se ainda pelo lado do Norte no continente americano para construir os Estados Unidos, esse assombro de todos os calvinistas a quem o Cristo-Mamon não assistiu. O que há na lembrança da Grécia, e que a Itália aproveitou para dar ao cristianismo a forma superior da catolicidade, veio encontrar-se na Península Ibérica com visões de fenícios, árabes, celtas, judeus e outros elementos da alquimia étnica, mas essa corrente mediterrânica de sentido atlântico e de substrato africano, não obstante tanto sonho e tanto risco e até tanta manobra política, deixou-se por tal modo correr em leitos ínvios e obscuros que com alguma razão se chegou um dia a dizer que a Espanha e Portugal não eram mais que colónias culturais dos Homens do Norte, título muito significativo dum livro de Ángel Ganivet.

O Brasil, futuro por acaso ou não do passado do Oriente, por índios e bandeirantes confundido com uma grande ilha, a ilha do Paraíso e da Nova Luz, se é verdade a notícia de Jaime Cortesão, está, e aqui é que é surpreendente observar, exactamente em correspondência simétrica no continente americano com Portugal no continente europeu. A América Central representa, com esse misterioso México de toiros e rostos sombrios, o que os Pirenéus são, com bascos e catalães ritmando as marés da invasão europeia; no Norte, como já se disse, estão os Estados Unidos, assombrosa precipitação de tudo quanto forjaram ingleses, alemães e outros puritanos; em baixo, no Sul, está o Brasil, envolvido por povos de língua de língua castelhana, rosto virado para o Atlântico, como quem se volta para fazer o que não foi feito, invertendo o sentido da corrente. Assim, um e outro continente têm dentro de si os elementos dispostos da mesma maneira, o que a mim me parece outra vez o acaso a suscitar novas reflexões.

Estando no fim a civilização europeia, uma vez realizadas todas as possibilidades contidas nos germes do seu ciclo nórdico, e estando no fim como se compreende pela anterior meditação das direcções simbólicas e também observando quanto acontece no mundo, onde já ninguém se entende por falta de uma metafísica ou por excesso de metafísicas que acabam por ser metafísica nenhuma, o Brasil e com ele os povos de língua espanhola que têm estado à espera preparam-se, sem o saberem, para iniciar o novo ciclo, que simbolicamente se pode entender como a viagem do Sol pelo Sul.

Há, no entanto, alguns brasileiros que, protestando embora contra os americanos (curiosamente, americanos são só os do Norte), nada mais desejam no fundo que ter o que aqueles têm – técnica, dinheiro e poder –, e são esses que lamentam ter sido o Brasil colonizado por portugueses e o restante da América do Sul por espanhóis e não por ingleses ou alemães. De facto, existe esse perigo. Existe o perigo de que o Brasil, esquecido das suas raízes mediterrânicas e ibéricas, com medo da fome e da miséria, se deixe absorver, e, sem ter a coragem de pensar uma solução económica própria, vá sendo dominado por quanto lhe está a ser proposto, e um dia poderá vir a ser imposto, pelos «homens do Norte».

A verdade é, porém, que o brasileiro é inadaptável ao tipo de vida americano. A sua filosofia não é, como a alemã, uma filosofia da vontade. Também a nossa não é. Quando um problema nos perturba, não procuramos órgãos exteriores que o resolvam e o «deixa para lá!» é a expressão de uma atitude íntima a que o homem se deve amoldar para que venha o destino, que entre nós não significa nada grego, mas a providência dos anjos, e tudo encaminhe para onde Deus quiser. O brasileiro não diz «não tem importância!» mas «não há problema!» e di-lo sempre a propósito de tudo, como se tivesse definitivamente encontrado a fórmula da verdade e da perfeita comunicação social. Tudo quanto implica uma certa resistência à livre actividade do homem é designado por negócio: a morte, por exemplo, é um grande negócio, que não é mole não, e em que se não deve pensar muito porque há quem por nós tenha a solução.

   

[1968, arredores de Brasília: António Telmo, à direita na fotografia, vestindo uma camisa de xadrez, escuta Agostinho da Silva, que profere uma palestra sobre o Espírito Santo]

 

Pascoais tentou uma filosofia portuguesa à base da saudade. Fez dela o eros cosmogónico, o segredo dos segredos, o arcano e a alma do mundo. Quem quiser pensar uma filosofia brasileira terá também que ter em conta o ócio, que sobretudo na Baía se diz moleza, de modo a ver como inclui um conceito susceptível de ser desenvolvido numa teologia, numa cosmologia, e até, principalmente, numa economia. O ócio é tão produtivo como o trabalho, na medida em que não cria novas estruturas de problemas que suscitam mais trabalho e assim indefinidamente. É qualquer coisa na alma como o judo ou a luta da capoeira no corpo. À dureza do opositor oferece-se a moleza ágil e astuciosa da alma ou do corpo e o outro – natureza, vida ou tempo – acaba por tornar-se dócil ou dúctil nas nossas mãos ou nas nossas ideias. «É preciso dar tempo ao tempo!», dizemos nós, portugueses.

Dever-se-á, todavia, observar que ócio não é o mesmo que preguiça. Corresponde a assumir a actividade do espírito, não como negócio, mas como uma energia livre e ágil, que pode ou não ser acompanhada do movimento do corpo. No português é, em geral, acompanhada do movimento do corpo, mas até para este se inventa um barco que o leve ao acaso dos ventos e das correntes. Estrangeiros criam sistemas filosóficos que são como máquinas, em que a vontade motriz encontra as rodas e as correias e outros intermediários mecânicos pelos quais possa chegar a actuar sobre as várias naturezas. Entre nós as ideias são barcos e a realidade que atravessamos é líquida e não sólida.        

 

*

 

Os portugueses que chegam ao Brasil para lá viver ficam em breve confusos ao verificarem que, não obstante certa simpatia fraternal, recebem também vários sinais de que os brasileiros nada querem ou querem muito pouco da nossa cultura, cujas raízes são também as da deles, e só depois de alguma reflexão vêm a descobrir que esse é um fenómeno próprio dos povos que foram colonizados. Com a independência política, conseguida sempre com o apoio duma terceira potência, vem o desejo de independência cultural e, para isso, vemo-los recorrerem a uma influência estranha, no caso brasileiro a da cultura francesa. E quando Sampaio Bruno diz com alguma ironia que os brasileiros leem os escritores franceses por quererem ir directamente às fontes, sem terem de passar pelo seus intermediários portugueses, não deixa de assinalar o que aqui deixo dito, embora faça recair as culpas de termos visto durante dois séculos o Brasil fugir à nossa influência nos próprios portugueses, incapazes de colonizar pelo espírito porque se tinham reduzido de há muito à miserável condição de colónia cultural francesa. E quando não é francesa, é alemã ou inglesa ou qualquer outra coisa.

Se, em vez de termos divulgado no Brasil escritores como Eça de Queirós e outros que o seguem de perto ou de longe, escritores estrangeiros muito bem traduzidos em língua portuguesa, tivéssemos feito o que está sendo feito com Fernando Pessoa e outros, que não têm equivalente no mundo – um Pascoais, um Domingos Monteiro, um Sampaio Bruno –, e não têm equivalente porque escrevem em língua portuguesa sem pensar previamente noutra língua, ver-se-ia o brasileiro dizer, como eu ouvi dizer a Ariano Suassuna a propósito do autor da Mensagem, que ele era o maior poeta brasileiro de todos os tempos.

No entanto, com esta cisão entre as duas culturas não é só a portuguesa que perde. Perde também a brasileira. Sem Portugal, o Brasil é um povo sem Idade Média, vindo directamente da Idade Primitiva, e os nacionalistas brasileiros, que querem fugir ao perigo dos Estados Unidos, são levados a imitar aquela personagem de um romance de Lima Barreto, o pobre Policarpo Quaresma de triste fim, lutando contra todas as ameaças de domínio estrangeiro em nome da cultura indígena, hoje amargamente encurralada no Parque do Xingu. Se há algo de positivo no idealismo do Quixote criado por Lima Barreto, a verdade é que o Brasil não é só isso, é também Canudos e o seu sebastianismo nascido ao contágio de António Vieira, de Agostinho da Silva, de Ferreira de Castro e de todos os bandeirantes, que se misturaram com esses índios e também com os negros da África, para que o Brasil fosse também Macunaíma.

 

António Telmo

____________

Comentário

Miguel Real       

ANTÓNIO TELMO

1 9 6 8

 

1. O ANÚNCIO

O artigo de António Telmo intitulado “Cabral e o Novo Oriente”, publicado na revista Panorama em Setembro de 1968, ainda que cronologicamente anterior ao grosso da sua obra (recorde-se que Arte Poética foi publicado em 1963, mas a sua restante obra começou a ser publicada a partir de 1977, com a 1ª edição de História Secreta de Portugal), exprime já as ideias-mestras do autor.

Autor de obra tardia (o o autor possui já 50 anos quando publica História Secreta de Portugal), amadurecida pela experiência da passagem de dois anos e meio como professor de Língua e Literatura Latinas e de Literatura Portuguesa na Universidade de Brasília, a convite de Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva, e meio ano em Granada, o artigo acima referido evidencia já a maturidade conceptual de quem possui uma visão própria do mundo (corroborada pela publicação de Arte Poética cinco anos antes), mas ainda não a explicitou pormenorizadamente em obra escrita.

É este o estatuto do artigo da revista Panorama: o anúncio da existência encoberta de um grande pensador a haver, cujas ideias-chave se encontram já firmadas, mas não ainda delineadas em pormenor.

 

2. – IDEIAS-CHAVE CONTIDAS NO ARTIGO

a. – O reconhecimento da influência dominante de Fernando Pessoa através da transcrição do poema da Mensagem, da interpretação deste segundo a proposta providencialista do poeta e da proposta cultural de substituição da leitura pela elite cultural brasileira da obra de Eça de Queirós pela de Fernando Pessoa;

b. – Neste sentido, Pedro Álvares Cabral não teria descoberto o Brasil por acaso, antes guiado pelo “acaso” da mão de Deus. Se as outras terras e os outros povos foram descobertos pela “vontade” dos portugueses, o Brasil e os ameríndios foram-no por via do “querer” “que actua nas regiões do inconsciente. E então o Brasil seria o nosso [de Portugal] filho concebido em mistério divino, enquanto os outros povos do mundo por nós descobertos seriam os nossos filhos humanos”;

c. – Separação, na história do pensamento europeu, entre os pensadores do Norte (França, Inglaterra, Alemanha) e os “pensadores que pensam para cá dos Pirenéus e para lá de Descartes” (o racionalismo cienticista e positivista protestante e puritano) – influência de Agostinho da Silva, que, em Um Fernando Pessoa e Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, publicados uma dezena de anos antes, distinguia claramente o catolicismo medieval, verdadeira filosofia comunitária e emotiva do português, do individualismo e racionalismo frio da dos povos do Norte. O duplo racionalismo platónico e aristotélico continuaria vivo na Europa do Norte, contra o franciscanismo e o espiritualismo do Sul da Europa, tese posteriormente defendida por Eduardo Lourenço em Nós ou a Europa (1984);

d. – No Brasil, cabo da América, terra “simétrica” de Portugal, cabo da Europa, território de fusão de influências ocidentais e orientais, permaneceria o espírito medieval português; o México representaria os nossos Pirenéus e a América do Norte, por antonomásia designada o todo da América, o Norte da Europa;

e. – No Brasil residiria, assim, o futuro de Portugal, que é como quem diz, o futuro da Europa, e, porque a Europa é figurada no poema em análise como “cabeça” do mundo, no Brasil residiria o futuro do Mundo;

f. – Antitético do “negócio”, no Brasil residiria a futura terra do “Ócio”, isto é, a Terra sem Mal dos tupis ou as nossas medievais “Ilhas Afortunadas”. Numa expressão posterior de Telmo, o Quinto Império. A filosofia do Ócio seria, assim, a correspondente brasileira da filosofia da saudade portuguesa de Teixeira de Pascoaes;

g. – Uma elite desenraizada pela atracção da mentalidade americana, que é, como se viu, a mentalidade da Europa do Norte, prossegue a visão do mundo desta região. Leitora de Eça de Queirós, desqualifica as raízes da identidade cultural portuguesa. O Brasil deveria ter substituído a leitura obrigatória de Eça no vestibular pela leitura obrigatória de Fernando Pessoa (“o maior poeta brasileiro de todos os tempos”, segundo Ariano Suassuna), de Pascoaes, de Bruno e de Domingos Monteiro (prosador e poeta transmontano, cuja obra foi muito apreciada entre as décadas de 1940 e 60);

h. – O Brasil encontrar-se-ia dividido, assim, entre a imitação da Europa do Norte, da qual gostaria de ter sido colonizada, hoje prosseguida pela mentalidade técnica, mercantil e individualista da América do Norte, e um nacionalismo excessivo e desorientado, que, desdenhando Portugal, busca raízes na sua origem ameríndia (os tupis e guaranis), do qual Telmo dá como exemplo a personagem Policarpo Quaresma, do romance Triste Fim (1911), de Lima Barreto, que desejava substituir a língua portuguesa pela língua tupi como idioma oficial do Brasil. Porém, esta raiz mais funda do Brasil, a cultura do povo ameríndio, encontra-se hoje totalmente aniquilada, circunscrita a uma espécie de reserva constituída por não mais de 250 000 tupis no Parque do Xingu (reserva de índios na Amazónia);

i. – Finalmente, seria necessário, mais do que recuperar o indianismo, resgatar Canudos e António Conselheiro e “o seu sebastianismo nascido ao contágio de António Vieira, de Agostinho da Silva, de Ferreira de Castro e de todos os bandeirantes, que se misturaram com esses índios e também com os negros da África para que o Brasil fosse também Macunaíma” (Macunaíma – 1928 -, romance modernista de Mário de Andrade que explicita uma nova representação social do índio brasileiro, contraposta à imagem romântica do índio expressa por José de Alencar nos romances Guarani – 1857 – e Iracema - - 1865. Neste sentido, a imagem realista, sem deixar de ser fantasiosa, do índio brasileiro – dedicado ao ócio, sem planos racionais de vida, vivendo por emoções fragmentárias e desencontradas… - apresentada por Mário de Andrade, seria mais valorizada por Telmo do que a imagem nativista e romântica patenteada por José de Alencar).

 

3. – CONCLUSÃO

Mais do que um António Telmo esotérico e cabalista, encontramos no artigo de 1968 da revista Panorama um António Telmo providencialista.

 

Colares, 15 de Agosto de 2014.

 


[1] Panorama: revista portuguesa de arte e turismo, n.º 27, 4.ª série, Setembro de 1968, pp. 45-49.

 

21-08-2014 00:00

QUATRO ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

[António Telmo com os seus filhos, Anahi e Manuel, em Santana, Sesimbra, em 1970]

 

Sonhos

 

Sexta-feira, 27 de Outubro de 2006

Na grande cozinha-sala em minha casa com a minha Maria Antónia e a minha filha Anahí. Entrando não sei por onde, talvez pela chaminé, apareceu voejando por cima de nós um lindo pássaro azul que identifiquei na altura com um Guarda-Rios, ou como os franceses o designam, por um Martin-Pêcheur. No sonho só me lembrava do pêcheur e com algum esforço.

O pássaro desceu e recebi-o na mão direita em concha, com grande espanto de todos nós e também alegria. Disse então que ia libertá-lo pela janela.

Mas transformou-se num lindo livro azul com as letras em ouro e que continha uma grande sabedoria. Afinal não me podia desfazer dele, porque devia lê-lo.

Deu-se outra metamorfose. Sempre na minha mão transformou-se num gatinho. O Tejo rosnou e as duas gatas olharam-no com ódio felino. Saí para a rua. O gato agora era um lindo menino de três ou quatro anos com uns calçõezitos, muito tranquilo. Havia outros rapazes mais velhos. Um deles disse que a criança morava ali perto. Disse o nome da rua e o número da porta.

Desfez-se o encanto e eu acordei.

 

Nota: Quando tentava lembrar-me do sonho, identifiquei, já acordado, o pássaro com um “colibri”, tal como os conhecera e observara no Brasil, alimentando-se de flores, sem cessarem de bater as asas até à invisibilidade. Observava-os a três palmos de distância.

 

António Telmo                                               

19-08-2014 12:57

António Telmo

(Na ara do tempo)

Eduardo Aroso

 

Sangrar o pinheiro

Ao calor de Agosto.

A resina escorre

De cima abaixo,

De manhã ao sol-posto.

O pensamento é que define

As estrias por onde passa

As camadas que atravessa.

A loucura de a beber

É para saber entranhas do dia,

E metamorfoses da morte,

Enquanto o Anjo da Vida

Sorri do esforço e da porfia.

 

Agosto de 2014

13-08-2014 18:10

Na edição n.º 452 do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, que saiu hoje, Pedro Martins, na sua habitual coluna, evoca António Telmo, agora que se aproxima o quarto aniversário da partida do filósofo.

Do lado esquerdo*

Pedro Martins

 

– Não recuse o socialismo que há em si. Procure antes o que ele tem de superior… 

Foi assim, quase à queima-roupa, no Rossio de Estremoz, defronte do Café Águias d’Ouro onde escrevera a História Secreta de Portugal e tantas outras laudas da sua obra genial, que António Telmo, surpreendente, me exortou a tentar via, como diria o preclaro Bruno, José Pereira de Sampaio de seu nome, graça a que os leitores amigos se vão já acostumando. Deste último, no parecer de Pessoa o único homem que no seu tempo, em Portugal, mostrava compreender, e portuense ilustre que, na visão mítica de um Augusto de Castro, ao balcão da sua padaria na Rua do Bonjardim, aos Aliados, recebia, humílimo, a insigne, insólita visita de um Dom Miguel de Unamuno (foi, na verdade, esperar o basco à estação ferroviária, para depois com ele conversar no recato do lar), até António Telmo Carvalho Vitorino, o Tó, filho do doutor do Registo que muitos, entre os mais velhos, ainda recordam em Sesimbra, corre uma fieira de nós na corda luminosa das gerações que, da informal Escola Portuense ao movimento da Filosofia Portuguesa, com estação central na gesta da Renascença Portuguesa, procuraram, a cada instante, pensar audazmente os problemas humanos e os segredos da Natureza, os pés firmes como raízes no chão dilecto da Pátria, olhos fitos no mistério do firmamento, onde estrelas lucilam as letras que há no imenso tinteiro de Deus.  

Quando, pelos meus vinte anos, descobri Teixeira de Pascoaes e a sua Arte de Ser Português, logo me maravilhou que ideias como a de Deus, a de Pátria e a de Família, a despeito da concisa homonímia, pudessem ali ser tratadas bem nos antípodas do salazarismo. No breviário pascoalino haveria por certo, interposta, a insuspeição da palavra grandiloquente: Humanidade; mas o jeito arejado com que o vate de Amarante se antecipara a revirar os termos triádicos que o tiraninho de Santa Comba, lustros mais tarde, tornará impraticável por décadas, despiu-me de preconceitos pelo avesso.

Apesar de Sampaio Bruno haver encabeçado a frustrada revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891; e de, no seu livro maior, A Ideia de Deus, protestar mais não ser do que um sectário jacobino (no que aliás, com proverbial modéstia, falta sem mácula à verdade da sua grandeza); apesar de Teixeira de Pascoaes, o heterodoxo impenitente, expressar publicamente, alto e bom som, em 1949 o seu apoio ao candidato oposicionista Norton de Matos; apesar de Leonardo Coimbra, que viera do anarquismo, haver afrontado, enquanto Ministro da Instrução Pública da I República, a anquilosada e retrógrada alma mater conimbricensis de então, ao estabelecer, no Porto, a Faculdade de Letras que, em uma só geração, dará à terra mais antifilosófica do planeta (assim Leonardo se referia a Portugal) a plêiade gloriosa onde pontificam pensadores de escol como Álvaro Ribeiro, José Marinho, Agostinho da Silva e Delfim Santos; apesar de Marinho, por mor de acrisolada oposição ao Estado Novo, se ter visto impedido de aceder ao magistério e, anos a fio, sobreviver, aos baldões, de explicações angariadas pelo prestígio do génio com que iluminava os espíritos; apesar de Álvaro, vindo da Renovação Democrático, primeiro grande movimento de oposição ao Estado Novo, haver passado as passas do Algarve sem nunca porém passar de um modesto emprego como editor do Mensário das Casas do Povo, prestimoso repositório ainda hoje subestimado; apesar de Agostinho da Silva, com indeclinável dignidade e coragem cívica exemplar, no curso da abominável Lei Cabral (que Pessoa, intimorato, execrara em magistral artigo de imprensa) se ter recusado a proclamar perante os áulicos que não era mação nem comunista; apesar de tudo isto, e de muito mais, aquilo a que, com razoável extensão, sói chamar-se Filosofia Portuguesa tem surgido conotado, urbi et orbi, com uma certa ideia político-religiosa a que, por comodidade de expressão, cabe o nome de reacção, ali onde o autoritarismo e o dogmatismo dão as mãos à repressão. 

No entanto, haverá que reconhecer como, adentro da casa de Portugal, em indisfarçada insídia, lavravam os germes malsãos. Cingindo-me ao testemunho pessoal da década exaltante que com António Telmo me foi dado viver, deporei, anónimos, dois casos reveladores de como, ao redor do filósofo, nas suas cercanias, pude colher ventos inquietantes.

A vez primeira que tomei parte da roda convivial, na sequela vespertina de um repasto de caldeirada (estávamos em solo sesimbrense, já se vê!), alguém me abordou com um zeloso panegírico de Salazar, mal ciente, porventura, de que à sua ilharga, tutelar na bravura, mas alheado do dislate, estava o homem que, em 1971, enfrentando, à sombra do campanário, com a barba suspeita de bolchevismo, a intriga de alguns tiranetes provinciais, ousara fundar no Redondo a primeira escola democrática de Portugal.

Anos mais tarde, no decurso de uma tertúlia em Arruda dos Vinhos, onde, com Telmo, revisitávamos o paraíso terreal da sua infância, descobri, com assombro e protesto, como os pederastas insulares, deixados na penumbra do esquecimento devido a um louvor que o maioral da Madeira, intuitu personae, endereçara à Filosofia Portuguesa, eram passíveis de benévola destrinça perante os continentais, de muito mais duvidosa inclinação política. Quando saímos do café, António Telmo acercou-se de mim e disse: – Você tem razão!

Entre muitos outros benefícios, devo-lhe, com efeito, o aviso sério de quão baldada é a progressão no pensamento sem a observância da estrita imparcialidade. Não há mais alta posição no exercício difícil de se ser livre. Exprobrar com justeza um regime caduco como aquele em que hoje vegetamos como pátria e como nação não pode, notadamente, implicar o renovo de uma mordaça que, como freio infamante, foi aposta aos portugueses durante meio século. E a verdade é que escrevo agora estas linhas sem sombra de receio daquelas outras que os lápis azuis outrora traçavam.

Como bem notou Miguel Real, em tempos de plebeísmo foi António Telmo um aristocrata do espírito, em permanente comunhão com o povo, e desdenhando, com íntima solenidade, de uma burguesia de falsete que, em sua irresponsável pulsão juvenil, muito amesquinha quando tudo julga poder comprar. Assistido pela coragem suprema da liberdade, só por si dignidade bastante ao crédito de reverência com que sempre nos interpela, perseguiu Telmo a difícil via crucis de reclamar, a um tempo, à esquerda e à direita da cruz, o direito a afirmar o santo nome de Deus e o de pensar livremente a sua ideia, caminho dos mais estreitos numa terra como a nossa, em que os campos tão extremados se confrontam. Não sem engulhos entre alguns dos mais próximos, fê-lo pelo lado de dentro, desoprimindo no recôndito da alma o costado hebraico soterrado por séculos de labaredas e fumos negros. Tenho para mim que, nele, o marrano haveria por força da dar o cabalista e este o iniciado que, ao revelar publicamente, mais do que a sua condição, o seu pensamento maçónico, pôde mostrar como poucos homens se lhe avantajaram numa vida veramente religiosa.

Com António Telmo, que, pressentindo, com lucidez e argúcia, a elevação do sacerdote, teve a coragem de defender Joseph Ratzinger quando tantos o verberavam no começo do seu pontificado breve, mas germinal, muito gostaria hoje de conversar a propósito deste extraordinário Jorge Bergoglio que a Providência nos designou. Creio que Telmo (que em seus escritos tardios revelava crescente compreensão pela Companhia de Jesus, de onde o Papa Francisco provém) lhe apreciaria o desprendimento frugal, o diálogo franco e exemplar (Skorka, o amigo rabino, evocando o kabbalista Nathan vis a vis com Thomé, o cristão gnóstico, personagens dos diálogos télmicos), a coragem escandalosa de tolher sinecuras, desmandos e perversões, ou a irreverência deposta nos gestos, simples mas autênticos, com que se acerca dos pobres e de quantos sofrem.

Evoco Telmo prestes a completarem-se quatro anos sobre a sua partida, lembrando a sua coragem, a sua autenticidade. Como daquela vez em que, já director da Biblioteca Municipal de Sesimbra, numa recepção a Américo Tomás, tocado de apetite, irrompeu pelo meio da mesa em U aprontada para o banquete oficial, encetando, à revelia dos comensais, a lagosta que dominava a távola. Ao erguer o rosto, com um pedaço na mão, deparou-se o filósofo, à sua frente, com o olhar censório, fulminante, quase patibular do chefe de estado. Não vacilou, porém, este homem incomparável, a quem o astrólogo Hórus, que consultara a instâncias de Rafael Monteiro, predissera, anos antes, ser ele o único capaz de derrubar Salazar. Com um sorriso intrépido, propôs a Tomás:

– Prove. É uma maravilha! Ou não fosse de Sesimbra!...

Foi isto pelo meio da mesa em U. Aqui o recordo. Do lado esquerdo, que é onde pulsa o coração... 

25-07-2014 09:24


Ensino e Cabala

 

A doutrina de Álvaro Ribeiro sobre educação e ensino funciona como uma alavanca que tem como ponto de apoio a puberdade. A educação é um movimento por iniciativa do adulto que tem por fim acompanhar e transformar o movimento natural do homem, da infância até ao termo da adolescência, numa viagem de pensamento e de conhecimento. Este movimento natural progride por fases, que transitam de umas para as outras por mutações subtis ou do corpo subtil, talvez de sete em sete anos, com sinais evidentes no comportamento biológico do ser humano. Álvaro Ribeiro procura pôr a iniciativa do movimento educativo de acordo com essas fases, renová-lo e alterá-lo no momento das mutações, de modo a fazer do ensino uma arte de imitação da natureza, não uma imitação servil, mas que espiritualize o movimento da alma incorporada, acompanhando-o e iluminando-o. A mutação crucial é a da puberdade. Inicia a fase da adolescência e é precedida pela puerícia, caracterizada nas Memórias de um Letrado como “idade mimética”. A adolescência será a idade poética, entendendo o adjectivo poética pelo étimo que originou a noção leonardina de “criacionismo”. A idade adulta ou “adultidade” é a idade política.

A criança é o ser que cresce. Álvaro Ribeiro censura, isto é, propõe a cesura desta palavra híbrida, responsável pelo ensino homossexual do homem e da mulher. O primeiro ensino é o materno. Sendo o infante o ser que não fala ainda, mas pode falar, a mulher, cuja missão é inconfundível com o destino animal, só completa a natividade quando acaba de formar no filho o corpo inteligente que sabe falar, isto é, quando anima esse corpo de sensação com o sopro da inteligência. O primeiro período vai até à segunda dentição, mutação brusca para novo alimento, termo de uma fase biológica durante a qual a alimentação não pôs ainda com suficiente clareza a distinção entre o subjectivo e o objectivo. É tal a ligação entre a mãe e o filho que dir-se-á que o ser humano, durante os primeiros sete ou cinco anos, se alimenta de si próprio. Prolongar a infância para além dos sete anos é conservar e manter um estado psíquico, uma concentração energética, de índole narcisística, em que o eu mal se distingue da natureza que o originou. Com a segunda dentição, a agressividade própria da infância muda de direcção e de intenção. É o momento que os legisladores têm escolhido para início da pedagogia do Estado. Álvaro Ribeiro prefere para a puerícia o termo de instrução ao de educação, porque, durante a idade mimética, convirá aperfeiçoar e fortalecer o intelecto passivo com estruturas mentais que mais sirvam ao intelecto activo de suporte para a criação espiritual. O ensino, nesta fase, deve ser mnemotécnico, mas as mnemónicas devem assentar sobre paradigmas matemáticos, aritméticos, geométricos e mecânicos – apresentando-os como sequências de palavras: o esquema da árvore da cabala, formado por pequenas ou parciais totalidades (três, seis, sete, dez, por exemplo) dará ordem e sentido ao mundo das percepções. A analogia entre as séries ou sequências será mais tarde desenvolvida e compreendida poeticamente, mas deve já presidir à sua composição: sete anos, sete dias da semana, sete vogais, sete planetas, etc.… O professor hábil e inspirado encontrará, a partir da analogia, as séries que convenham para sistematizar pela mnemónica a matéria e a forma da disciplina que lhe cabe ensinar.

É pela analogia que se estabelece a ligação da aritmética (estudo dos números), da geometria (estudo das figuras e dos sólidos) e da mecânica (estudo dos movimentos de motor externo) com o logos ou o verbo, interpretando pelo Trivium disciplinas que, mais tarde, se integrarão, de outro modo mais alto e mais profundo, no Quadrivium.

Até aos catorze anos, o rapaz e a rapariga, não distinguem o bem do mal. A sua imaginação, oscilando entre a contensão e o impulso, oscilação que reflecte a mecânica da explosão, tende para a associação mental indefinida. Álvaro Ribeiro adopta o ensinamento da Cabala, segundo o qual somente pelo acto sexual o homem e a mulher se podem purificar do mal. O mal é o narcisismo, a redução, cismática ou violenta, de toda a realidade ao próprio eu. Só pela sexualidade se estabelece a relação criativa com o outro. O outro tem de apresentar-se como o diferente, como aquele que vem do outro hemisfério. Só a relação sexual dá a garantia duma autêntica sociabilidade.

É de observar aqui a oposição do cabalista Álvaro Ribeiro à moderna orientação do ensino, que se esforça, através da sua programação e metodologia, por anular a consciência do próprio sexo no rapaz e na rapariga. Foram distribuídas recentemente aos professores estagiários do ensino preparatório e secundário planificações de sequências de aulas com o objectivo explícito de anular a diferença dos sexos. Tal estratégia é comandada por monitores suecos que doutrinam os funcionários, mais bem colocados para dirigir as operações do Ministério da Educação Nacional. Não surpreende que a doutrinação de Álvaro Ribeiro tenha até agora sido silenciada, ignorada, hostilizada, activamente por aqueles que pretendem fazê-lo passar por reacionário, passivamente por aqueles, mais chegados, que se negam a aceitar e reflectir o seu pensamento esotérico.

Com efeito, lê-se no Zohar:[1]

 

(…)

 

Álvaro Ribeiro responsabiliza o ensino neomaniqueu de manter na adolescência, na puerícia, e até na infância a maioria dos portugueses. Não é ironicamente que observa haver muito poucos que conseguem atingir a idade mental própria do adulto. Serão aqueles que se distinguem pelo favor da sorte, homens que Leonardo Coimbra classificava com o termo de extravagantes. No entanto, é impossível que não tenha existido, para esses, ao lado ou por detrás do ensino oficial, uma escola secreta ou esotérica, que lhes conferiu imunidade. O nosso filósofo acredita, porém, que a certa orientação do ensino levaria todos a atingirem a idade mental que, por direito natural, está ao alcance de todos os homens.

Com a puberdade, a instrução do intelecto passivo dá lugar à educação para o intelecto activo. Educar é agora ensinar a pensar, a criar pensamento, capaz de conhecer, pela sua progressiva adaptação às várias realidades ou planos significados na escala das sephiroth. O pensamento não deve ser subordinado ao conhecimento, mas sim orientado para o conhecimento. Será, em relação aos conhecimentos dados, a sua unificação activa, mas terá como enteléquia o movimento futurista para conhecimentos mais altos, ou mais profundos. O étimo da palavra “filosofia” indica o superior paradigma que deve guiar as relações do pensamento com o conhecimento.

Com isto, põe-se uma importante afirmação: é a de que só há ensino da filosofia. O modo mais astucioso de se ter [palavra ilegível] a negação desta afirmação foi a de limitar a filosofia ao ensino de uma disciplina. Alguma culpa têm também aqueles que dissociam as artes e as ciências da filosofia. Para Álvaro Ribeiro que a concebe como uma arte, a arte, por excelência, da palavra, ela procede por condução para a Cabala das várias direcções assumidas pela actividade do pensamento que procura o saber universal. Sendo assim, todo o ensino é compreendido como um movimento da filosofia. O programa de filosofia elaborado por Leonardo Coimbra para os liceus merece, por isso, todo o seu aplauso, na medida em que tem por suporte a hierarquia das ciências de Augusto Comte, mas recebe o seu reparo, porque nele se esquece a importância das disciplinas de letras constitutivas do Trivium.

A classificação das ciências de Augusto Comte, corrigida pela introdução da Psicologia (já proposta por Herbert Spencer), constitui, no seu movimento progressivo (matemáticas, física; química, biologia; psicologia e sociologia) uma escada de três graus compatível com o esquema da árvore sefirótica. O primeiro livro de Leonardo Coimbra, O Criacionismo, constitui-se, como Álvaro Ribeiro indica, sobre o suporte daquela classificação.

Os três pares estudam sucessiva e progressivamente os três planos que a analogia refere simultaneamente ao homem e ao cosmos: o plano dos corpos, o plano das almas e o plano dos espíritos. Álvaro Ribeiro, embora compreendendo como a sociologia está em Leonardo Coimbra referida à fraternidade universal dos espíritos, receia que a teologia a ela se reduza pela tríade Deus, Cristo, Igreja, própria do positivismo católico francês, parecendo acenar para um quarto plano que viesse completar o quadro das categorias, ou restabelecer a progressão por quatro vias, isto é – o Quadrivium.

A doutrina cabalista da incompletude do homem sem mulher tem uma larga aplicação na doutrina alvarina do ensino. Estamos em condições de aprofundar essa doutrina no leitor que queira estudar o capítulo deste livro sobre Aristóteles. Segundo o Zohar, ao ente humano masculino correspondem nove das sephiroth; o décimo é a mulher. A mulher corresponde a Malcuth ou, nos termos aristotélicos, ao domínio da paixão. Como a árvore é um todo, dir-se-á que a parte mais importante, aquela para a qual convergem todas as correntes, está separada. É o amor que desce de Yesod, onde a acção tem a sua base ou fundamento, a energia física, psíquica e espiritual que faz tender para a perfeição o ser humano.

Noutros termos. A mulher é o princípio de vida, que o espírito do homem solteiro está incapacitado de conhecer. A redenção tem por condição, depois do conhecimento do bem e do mal, o conhecimento da árvore da vida, por tal modo que os processos orgânicos de crescimento e de gestação possam ser compreendidos pela imaginação, cujo segredo mais íntimo só pelo amor pode começar a desvendar-se.

Álvaro Ribeiro propõe um ensino divergente durante a puerícia dos dois sexos, de sorte que a diferença de natureza e de potencial psíquico se traduza em formas distintas e provoque a atracção de um pelo outro, isto é, a consciência de uma incompletude ou imperfeição, não só no plano natural dominado pelo instinto, mas também no plano psíquico dominado pela actividade do pensamento e da palavra. É através do homem, e só através do homem, que a mulher pode ter notícia do espírito. Ela, diz Álvaro Ribeiro, se permanece solteira, é incapaz, só por si, de pensar o monoteísmo. A sua ideação é, por natureza, mitológica, no fascínio sentimental do facto, do feito e do feitiço, que se traduz religiosamente pela veneração das imagens representativas de santos ou de santas.

Convém não esquecer que o homem, no pleno sentido da palavra, é o composto do masculino e do feminino, que só pelo património e pelo matrimónio tende eficazmente para a sua realização. A dialéctica que opõe o homem à mulher como se ele não fosse somente nove décimos e ela um décimo e que ignora o significado qualitativo destes números, não quantitativo, procederá sempre como se opusesse um ser completo a outro ser completo, que não precisassem um do outro para se realizarem. Álvaro Ribeiro descreve demoradamente as consequências lamentáveis desta dialéctica, que só aumenta o sofrimento no mundo dos homens, e, por isso, confia no ensino, tal como se organizará um dia a partir dos princípios da Cabala para que seja a medicina que libertará a humanidade da adolescência dolorosa e infeliz.

Falámos de matrimónio e de património. Estes dois termos relativos entre si por um terceiro que é o filho ou constituído pelos filhos é costume empregá-los separadamente. É, no entanto, pela relação destas duas noções que se formará a noção de família. O múnus da mãe e o múnus do pai correspondem a dois númenes ou nómenos diferentes, embora complementares. É curioso que quando se fala de património se refiram os bens da família, mas que se entenda por matrimónio a união do marido e da mulher. Não é assim em Álvaro Ribeiro. Matrimónio é o que diz respeito à maternidade e património à paternidade. O segredo do matrimónio pertence à mulher, senhora do númen que lhe corresponde e que oculta dos próprios filhos e até do próprio marido. O adultério consiste em dizer a outro homem aquilo que, mais ou menos, o exponha. A família fica em perigo, porque, em geral, é com um homem solteiro que ela entra em confidências. Mas o património, entendido restritamente como a posse dos bens materiais, tem também o seu segredo.

O decagrama das sephiroth recebe, na Tradição, vários nomes. O mais divulgado é “árvore”. Há também “balança” e “homem”, e a ideia de “templo” está dada na referência a três colunas: a esquerda, a direita e a do meio.

Na imagem do “homem” a coluna do meio é a coluna vertebral. O homem é, assim, o próprio templo.

Dado que o homem integral está representado no decagrama, qual é a parte que significa a mulher?

Há várias perspectivas. Uma delas, a mais corrente, é a que identifica o feminino com Malcuth, a séfira separada que não entra numa relação triangular. Todas as sephiroth convergem para Malcuth, onde desaguam as águas através de Yesod, significativo como já sabemos do poder fecundante masculino. Em cada uma das colunas há três sephiroth; há também, acima de Malcuth, três tríades. Três sephirot x 3 colunas = 9 = três tríades. Assim, tudo se entrelaça e estrutura. O centro da estrutura novenária é Tiphereth, o nódulo da teia. A Coroa liga-se indirectamente com a sétima e oitava sephiroth. Yesod também indirectamente com a segunda e a terceira. A ligação estabelece-se através de Tiphereth. Tiphereth é também uma representação da Schekina.    

 

António Telmo

____________                                 

Comentário

António Carlos Carvalho

No livro do Génesis (6, 16) encontramos a seguinte passagem: «Tu dotarás a arca de uma abertura luminosa». Arca, Têvah, também significa palavra – o que permite a seguinte leitura cabalística: «Tu dotarás cada palavra de uma abertura luminosa, a fim de que brilhe como um sol em pleno meio-dia.»

António Telmo fez esse exercício constantemente: ele, que sempre buscou a luz, iluminou as palavras de muitos textos, abrindo os nossos olhos para o sentido real do que estava escrito.

É precisamente o que vemos neste seu inédito, «Ensino e Cabala», em que mais uma vez se debruça sobre as palavras do seu mestre Álvaro Ribeiro. Professor e pedagogo, Telmo interpreta os ensinamentos do também pedagogo Álvaro Ribeiro, que via a educação como um movimento, «uma viagem do pensamento e do conhecimento», progredindo por fases que transitam de umas para outras por «mutações subtis ou do corpo subtil», de sete em sete anos. Esse movimento educativo deve ser feito de acordo com as mutações, a fim de que o ensino seja uma arte de imitação da natureza que «espiritualize o movimento da alma incorporada, acompanhando-o e iluminando-o».

E assim temos a puerícia (a idade mimética), a adolescência (idade poética) e depois a idade adulta ou idade política. O primeiro ensino é feito pela mãe, que só completa o acto de dar à luz quando «acaba de formar no filho o corpo inteligente que sabe falar», ou seja, quando «anima esse corpo de sensação com o sopro da inteligência». Uma fase que deve durar sete anos e não mais do que isso, sob pena de manter um estado psíquico de índole narcísica.

À puerícia convém o termo de instrução, porque na idade mimética é suposto aperfeiçoar e fortalecer o intelecto passivo com estruturas mentais que sejam adequadas ao intelecto activo como suporte para a criação espiritual. Nessa fase o ensino deve ser mnemotécnico, assente sobre paradigmas matemáticos apresentados como suportes de palavras: «o esquema da árvore da Cabala, formado por pequenas ou parciais totalidades (3, 6, 7, 10, por exemplo), dará ordem e sentido ao mundo das percepções» -- 7 anos, 7 dias da semana, 7 vogais, 7 planetas, etc.

(Encontramos aqui um eco da «Gramática Secreta da Língua Portuguesa». E logo a seguir o comentário de Telmo reflecte a leitura da «Carta sobre a Santidade», de Gikatila, leitura feita por Telmo mas não por Álvaro Ribeiro – o qual, no entanto, soube expor doutrina semelhante, como o próprio Telmo sublinhou na sua conferência de 1996, «A influência da Cabala em Portugal».)

Afirma Telmo: «Álvaro Ribeiro adopta o ensinamento da Cabala, segundo o qual somente pelo acto sexual o homem e a mulher se podem purificar do mal» (o mal que rapazes e raparigas até aos 14 anos não conseguem distinguir do bem). Esse mal é o narcisismo; logo, só pela sexualidade se estabelece a relação criativa com o outro, «só a relação sexual dá a garantia de uma autêntica sociabilidade».

Lembra Telmo que o «cabalista Álvaro Ribeiro» sempre foi um opositor da moderna orientação do ensino, que se esforça por anular a consciência do próprio sexo no rapaz e na rapariga. Daí que não seja surpreendente que a doutrinação de Álvaro Ribeiro tenha sido «silenciada, ignorada, hostilizada», «activamente por aqueles que pretendem fazê-lo passar por reaccionário, passivamente por aqueles, mais chegados, que se negam a aceitar e reflectir o seu pensamento esotérico».

Repare-se na tremenda acusação contida nesta segunda metade da frase: mesmo os mais próximos de Álvaro Ribeiro têm-se recusado a aceitar e a reflectir o seu pensamento mais profundo. Infelizmente (e incompreensivelmente), essa afirmação mantém toda a sua actualidade. Podemos mesmo acrescentar que Álvaro Ribeiro e António Telmo continuam a ser pensadores incómodos para muita gente, por vezes mesmo para os que invocam os seus nomes.

O comentário de Telmo prossegue com uma observação de Álvaro Ribeiro – graças ao efeito perverso do ensino oficial, muito poucos conseguem alcançar a idade mental que se deve esperar num adulto. A esses poucos, Leonardo Coimbra chama-lhes «extravagantes», mas Telmo afirma que a imunidade deles só se explica pela existência de uma «escola secreta ou esotérica».

E porque «educar é ensinar a pensar, a criar pensamento capaz de conhecer», percebemos o papel superior da filosofia. Álvaro Ribeiro concebia a filosofia como uma arte, a arte da palavra, por excelência. Ou seja, conduz para a Cabala as várias direcções que assume o pensamento em busca do saber universal. Logo, todo o ensino é compreendido como um movimento da filosofia, que não é uma «disciplina» escolar.

A partir daqui, e porque a redenção exige o conhecimento da Árvore da Vida, o comentário de Telmo remete para o esquema da Árvore Sefirótica ou das emanações divinas – um esquema também ele luminoso porque mostra como a criação e a formação do homem se fez (e faz) através da condução da palavra divina ao espírito e à consciência humana e ao próprio cosmos. Sempre sob o signo do 3 (3 graus ou planos dos corpos, das almas e dos espíritos, tal como – acrescentamos nós – 3 são as almas, 3 são os níveis no sonho de Jacob ou 3 são as etapas do estudo da Torah; se o 1 é o processo inicial, primário, e o 2 é o processo secundário, a elaboração, o 3 é a síntese integrada, com vista à sublimação).

Na Árvore, 3 tríades convergem para a décima Sefira (ou Safira, como Telmo preferia). Essa décima Sefira, Malcuth, a Mulher, é o «princípio da vida», que «o espírito do homem solteiro está incapaz de conhecer».

Telmo sublinha que a própria doutrina cabalista da incompletude do homem sem mulher (tal como é afirmado por Álvaro Ribeiro em «A Literatura de José Régio») tem ampla aplicação na doutrina do ensino exposta pelo seu mestre: a proposta de um ensino divergente durante a puerícia dos dois sexos, de tal modo que a diferença de natureza e do potencial psíquico se traduza em formas distintas e suscite a atracção mútua – a consciência de uma incompletude ou imperfeição igualmente mútua nos planos natural e psíquico. Daí que Álvaro Ribeiro colocasse toda a sua confiança na possibilidade de, um dia, o ensino, organizado a partir dos princípios da Cabala, fosse a cura que viesse a libertar a humanidade da adolescência «dolorosa e infeliz».

E Telmo termina o seu comentário com uma alusão significativa à Presença Divina.

 

Resumindo: estamos perante uma importante reflexão de Telmo sobre as ligações íntimas existentes no pensamento mais profundo de Álvaro Ribeiro entre o ensino e a Cabala – e que, aliás, serão desenvolvidas pelo próprio Telmo nas suas próprias obras (veja-se, por exemplo, «Filosofia e Kabbalah»). E, tal como Charles Mopsik -- estudioso destes temas muito apreciado por Telmo -- sublinhava que o «Zohar» é acima de tudo um livro de comentário sobre a Torah que adopta o modo, a língua e o tom das exgeses rabínicas do final da Antiguidade, também nós podemos dizer que António Telmo desempenhou esse mesmo papel: abriu as palavras de Álvaro Ribeiro para quem quiser ver.

 


[1] António Telmo não concretiza, no manuscrito, o trecho do Zohar que pretende citar. 

 

23-07-2014 10:19

De um caderno de apontamentos. 07

Hoje, o dia amanheceu chuvoso, mas, pela tarde, entre os cúmulos pacificados, abriram-se belas extensões azuis.

Os meteorologistas anunciaram isto mesmo ontem na televisão. A sua ciência é igual à minha sobre o movimento dos autocarros. Posso saber a que horas chega a Estremoz um autocarro, desde que conheça a que horas partiu de Lisboa.

Quanta seriedade e quanta profundidade na adivinhação do tempo pelos camponeses! A sua é uma ciência de sinais e de qualidades. Não conta, não pesa e não mede. Lê palavras, aquelas que se desenham no céu ao nascer ou ao morrer do Sol e da Lua, na origem e no fim das luzes diurna e nocturna.

É possível combinar as duas ciências, a do meteorologista e a do camponês. Os frequentes desacertos do boletim meteorológico com o tempo do dia seguinte levaram a encarar esta possibilidade. Seria mau, porque o menos culto depressa cederia ao fascínio da quantidade. Além disso, bastava um erro seu para lhe caírem em cima, ridicularizando-o e desacreditando-o. Os médicos enganam-se frequentemente e muitos pagam morrendo o preço levado por esses enganos. Se um curandeiro, um endireita, um bruxo se mostra ineficaz uma só vez que seja logo bradam apontando o charlatão.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

18-07-2014 00:25

Agostinho da Silva em Setúbal

António Mateus Vilhena

 

 

Exm.ª Senhora Representante da Governadora Civil de Setúbal;

Exm.º Senhor Vereador da Câmara Municipal de Setúbal;

Exm.ºs Colegas,

Estimados Alunos;

Meu Senhores e Minhas Senhoras;

 

Graças a uma iniciativa dos professores do 8.º grupo A e B da Escola Secundária de Bocage, desde a primeira hora acarinhada pela Câmara Municipal de Setúbal, sobretudo através do pelouro da Educação e do Serviço de Relações Públicas, os quais desenvolveram todos os esforços para que tal iniciativa viesse a concretizar-se, temos hoje o enorme prazer e a subida honra de receber, no Salão Nobre do Município da nossa cidade, o Prof. Dr. Agostinho da Silva, um dos mais fecundos e originais pensadores portugueses deste século, que proferirá uma conferência subordinada ao tema “Problemas da Cultura Portuguesa”.

Tratando-se de uma personalidade que, pela sua projecção na vida cívica e cultural do país, é de todos tão conhecida, não me alongarei na sua apresentação, deixando, por assim dizer, de parte quaisquer considerações acerca das traves mestras da sua obra, uma vez que, por um lado, não é meu intento fazer uma conferência e, por outro, espero que este encontro constitua mais um incentivo para que em Setúbal, nas Escolas e fora delas, se venha a reflectir cada vez mais sobre as cativantes linhas de força do seu pensamento.

Filólogo, poeta, ficcionista, crítico literário, investigador em áreas científicas, professor, filósofo e sobretudo homem atento aos problemas do homem do seu tempo, dele se poderia, com propriedade, afirmar, parafraseando o dramaturgo latino Terêncio: “É homem: nada do que é humano lhe é estranho”.

O Prof. Agostinho da Silva nasceu na cidade do Porto, em cuja Universidade se licenciou e doutorou em Filologia Clássica (1929). Costuma até dizer que aí fez “a licenciatura em liberdade e o doutoramento em raiva” (Dispersos, p. 52).

Após a obtenção do grau de Doutor, frequentou a Escola Normal Superior de Lisboa e foi bolseiro em França, na Sorbonne. De regresso a Portugal, em 1933, ano em que publicou a única tradução portuguesa moderna das Poesias do escritor latino Catulo, passou a exercer funções docentes no Liceu de Aveiro, vindo a ser demitido do cargo dois anos depois, por se ter recusado a assumir o compromisso de não vir a pertencer a qualquer associação secreta. Com a sua extraordinária capacidade para transpor obstáculos, não baixou os braços perante tal arbitrariedade e injustiça. “Obstáculo – disse uma vez – foi coisa que jamais me importou;  procurei sempre seguir nisto a lição dos rios: tirar a extensão e variedade de seu curso daquilo que se lhes opõe; ou das pedras: depende do que somos esbarrarmos nelas e nos queixarmos ou subir-lhes em cima e vermos mais longe” (Dispersos, p. 24).

Após residir algum tempo em Madrid, como bolseiro, voltou a Lisboa, onde viveu vários anos, de aulas no ensino particular e de explicações, e se relacionou profundamente com o grupo da “Seara Nova”.

Em 1944, “encontrando-se – como afirmou numa entrevista – em estado de cepticismo quanto ao futuro de Portugal, além de não saber bem como ganhar a vida” (Dispersos, p. 59), resolveu partir para o Brasil, país de que é cidadão, e aí permaneceu até 1969, empreendendo algumas deambulações pela América Latina e pelo Japão, Macau e Timor. Para atestar o extraordinário e multiforme labor desenvolvido pelo Mestre, nas suas queridas paragens sul-americanas, durante esse quarto de século, basta recordar que traduziu para português, prefaciando-os e anotando-os, textos capitais da literatura latina, como o Poema da Natureza, de Lucrécio, a Germânia, de Tácito, o Sonho de Cipião, de Cícero, uma antologia das comédias de Plauto e de Terêncio; realizou estudos no domínio da histologia, estes no Uruguai; efectuou pesquisas no campo da entomologia e da parasitologia; “seguiu no dia-a-dia – são afirmações suas – a criação da Universidade da Paraíba (…), a da Universidade de Santa Catarina, (…) a da Universidade de Brasília, (…) a da Universidade de Goiás; [acompanhou] com Jaime Cortesão, o surto do Departamento de Pesquisas Históricas do Itamarati; (…) com Jânio Quadros, o início das relações culturais com a África; com Jaime Cortesão ainda, Mário Nunes e Silva Bruno, a Exposição do Quarto Centenário de São Paulo” (Dispersos, pags. 23-24).

Foi director do Centro de Estudos Filológicos da Universidade de Santa Catarina; fundou o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia, o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da Universidade de Brasília; integrou o Centro de Estudos Ibéricos da Universidade de Mato Grosso e de Estudos Europeus na Universidade do Paraná. Ainda no mesmo período o Prof. Agostinho da Silva exerceu funções docentes em várias Universidades e publicou diversas obras que de seguida enumeramos.

Em 1953, aparece Herta, Teresinha, Joan, a sua única obra de ficção, que a maioria dos leitores desconhece existir e cuja 2.ª edição será lançada na próxima semana. No entanto, a Livraria Culsete, desta cidade, obteve das Edições Cotovia e da distribuidora Diglivro a amável autorização para hoje fazer um pré-lançamento do livro com que homenageia o insigne Mestre na sua vinda a Setúbal; em 1957 sai do prelo Reflexão à margem da literatura portuguesa, que um crítico definiu como uma verdadeira filosofia da nossa história; de 1959 data Um Fernando Pessoa, livro sedutor e polémico, que constitui um dos marcos essenciais da bibliografia pessoana; em 1960 é dada à estampa outra obra, As Aproximações.

A partir de 1969, o Prof. Agostinho da Silva passou a residir em Portugal, na qualidade de cidadão brasileiro.

Senhor de uma mundivivência plurifacetada, sempre atento ao evoluir quotidiano dos acontecimentos no nosso país e no mundo, continuou a reflectir e a escrever sobre a essência, o destino e a missão de Portugal e os problemas do nosso tempo; ao longo destes anos, sobretudo após o 25 de Abril, tem sido frequentemente solicitado a proferir conferências sobre os mais variados temas, assistindo-se sempre a um renovado e crescente interesse do público pelas suas ideias, tão originais e contagiantes, que foi expondo em ensaios como ”Fantasia Portuguesa para Orquestra de História e Futuro” (1982), “De como os Portugueses Retomaram a Ilha dos Amores” (1982), “Dez Notas sobre o Culto Popular do Espírito Santo” (1984), para já não falar do volume Carta Varia (1988).

Desde 1984, o Instituto de Cultura e Língua Portuguesa convidou o Prof. Agostinho da Silva para seu conselheiro, podendo, assim, usufruir de muitas sugestões ditadas pelo saber e a longa experiência do Mestre, profundo conhecedor, autêntico paladino e apóstolo da cultura luso-afro-brasileira.

Foi sob o patrocínio do ICALP que, no final do ano transacto, surgiu, com o título de Dispersos, um volume de textos esparsos e inéditos e de entrevistas, que pode considerar-se, na sua essência, uma suma das meditações do Mestre acerca do ser e da missão de Portugal no mundo. Portugal que é para ele, na esteira de Pessoa, “todo o território de língua portuguesa” (Dispersos, p. 127), em prol do qual decidiu, há meses, criar a Fundação Mensagem, “destinada a fazer que a terra, o mar e o céu (desse espaço português) possam ser objecto de pleno amor.”

Só então a nossa grande Raça – diria Pessoa – partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os sonhos são feitos.” (in A Nova Poesia Portuguesa).

 

Abril de 1989



 

16-07-2014 10:21

Em A Aventura Maçónica, livro póstumo saído a lume já em 2011, António Telmo incluiu uma longa carta dirigida a Eduardo Aroso, onde a Rainha Santa, traço de união entre Estremoz e Coimbra, é o motivo central da reflexão do filósofo. O escrito de Aroso que agora publicamos pode ser visto como um diálogo com esse texto de Telmo, sobretudo no que toca à "alquimia operativa" de Isabel de Aragão.

Registos - A Rosa e o Pão entre abertura e oclusão
Eduardo Aroso
 

«As direcções dos ventos têm origem no ponto central da Rosa, donde irradiam para todas as partes do Universo. Não é ainda a rosa perfeita, porque essa é, para lá do mundo subtil, a rosa de treze pétalas»  (António Telmo)

 

Ela imita, no reino vegetal, a receptividade da noite servindo de sacrário a certas espécies que na mais densa penumbra descansam para assegurar a continuidade possível. Mas no repouso do escuro, onde a lucidez, às vezes, acorda de repente nos seres humanos para fazer surgir o fotão das palavras «a intacta glória de Deus». A Rosa conhece a lei das alternâncias, a cronometragem dos ciclos da Grande Obra e diariamente esforça-se por falar do aroma e dos espinhos. É uma linguagem mais encriptada do que a do Sermão de Santo António aos Peixes, porque a palavra primeira é silêncio (silêncio apenas vigiando o esforço invisível e universal) enquanto os pés não tiverem passado antes pela lição das Bem-aventuranças da Montanha e, doloridos, por fim, sintam que não é ilusão ouvir-se a palavra que a Rosa pronuncia – o seu indício é apenas rosácea. Foi colocada nos templos como garantia. Antes do verbo religar tempos, vidas e solidão de puros anseios, requer-se a faina constante de edificar sem «ruído de martelo» e nada de agitar publicidades fora do templo, quando entram no espaço onde pouco ou nada se distingue do que seja alma.

A Natureza ensina: as pétalas abrem-se ao mavioso toque da manhã, merecido afago, indiferenciado todavia para o mundo vegetal, havendo, ainda assim, respostas diferentes. Mas ao ser humano, que vai no caminho consciente, isto é, o que foi talhado - não encontrado - há um outro sol que se levanta no horizonte da busca árdua, que pode trazer a palavra vinda da seiva intacta. Aí talvez o som dos pássaros se capte de outro modo; não apenas ultra-sons, mas outros sinais que indiciam boas-novas, como as que habitavam de esperança nas «flores de verde-pinho». Do anoitecer à aurora, entre o piar e os chilrear, esconde-se a escala de outros hinos. Já sabemos tudo sobre os ninhos circulares nas árvores (da lida e da vida) também eles circulares como as rosáceas?

A Rosa não escolhe cátedra, podendo vicejar num jardim real ou encostar-se a um humilde muro. Seja como for, utiliza sempre a mesma linguagem, um estilo onde o sentido é como se sente, porque os que a ela chegam, venham de onde vierem, distinguem claramente a palavra que é a mesma do Bom-Pastor, a que soa sempre, porém inaudível para a turba.

No decorrer dos tempos, quando se torna necessário, a Rosa cria também os seus heterónimos! Um deles tem o nome de Pão. Nasceu num dia límpido como os da certeza que há nos sonhos que se vão realizar. A Rosa distingue o pão dos pobres de espírito do pão dos pobres em espírito. Ninguém melhor do que uma real Senhora (e Senhora real) pode mostrar isso. E pode fazê-lo para ambos os pobres. Esse é o verdadeiro bodo, o mais acolhedor. Uns pobres vêem o cereal, outros vêem ainda e escutam a palavra vivente, tradução da seiva, o verbo que abre e fecha a operação no verso e no inverso.

 

14-07-2014 09:36

UMA CARTA INÉDITA DE ANTÓNIO QUADROS PARA ANTÓNIO TELMO (NO 91.º ANIVERSÁRIO DO AUTOR DE PORTUGAL, RAZÃO E MISTÉRIO)

Transcrição de Pedro Martins

Cascais

8.7.87

 

Meu caro António Telmo:

  

(…).

O ano de 1986 foi sobretudo de batalha intelectual comigo próprio: para completar a organização das Obras em Prosa de F. Pessoa para a Europa-América; para completar e entregar a tempo o vol. II de Portugal, Razão e Mistério; para preparar o curso sobre Filosofia Portuguesa que dei no Rio de Janeiro…

À chegada, já sabe, os meus problemas cardíacos. Só há pouco terminei a longa série de análises complicadas no Hospital de St.ª Cruz (coronariografia, isótopos, etc., etc.), pois suspeitavam de algo mais grave do que afinal parece que tenho. Foi pois posta de lado a cirurgia, mas terei que tomar sempre uns 5 ou 6 remédios, fazer regime constantemente e reduzir o “stress” da minha vida, no que o IADE tem a parte maior, hoje com cerca de 100 professores e cerca de 1.000 alunos. (…). Mas… meti-me nisto e já não poderei sair tão facilmente, pois sinto a responsabilidade perante as pessoas que trabalham no IADE, os alunos, etc. É qualquer coisa da ordem do dever, mas que distrai do que seria essencial: pensar, reflectir.

E é do que sinto mais falta. Decerto, o meu trabalho intelectual ressente-se deste misto de falta de tempo e de pressa, pois me pesa muito não saber se ainda terei os anos suficientes para completar a obra, que imodestamente julgo poder realizar dentro das minhas possibilidades e faculdades, obra esta que afinal, depois destes anos todos, povoados de tanta inutilidade, ainda vai no princípio, nas primeiras frases…

Assim, o ano de 1987 foi mais marcado pela luta pela saúde, o que graças a Deus, e de momento, parece já quase controlado, embora ainda chegue ao fim do dia bastante cansado, sobretudo quando o passo todo em Lisboa. Entretanto, tenho escrito alguns textos e ensaios, como a comunicação que em Agosto vou fazer à Áustria, no Alpbach European Forum (“Do Império do Espírito Santo ao Mito do Quinto Império”), como outra que fiz na Universidade Católica sobre a Justiça e a Paz ou o longo texto sobre a Filosofia Portuguesa no século XX para a revista Democracia e Liberdade (para o qual você também colaborou e que, segundo diz o Pinharanda, deve sair em Setembro); e também fui falar de temas semelhantes à Escola Superior de Belas Artes, à Universidade Nova, à Sociedade Histórica da Independência de Portugal e ao Instituto D. João de Castro, sempre a convite de estudantes e gente moça (excepto no último caso), o que mostra o interesse que os temas portugueses voltam a despertar na juventude. Mas tudo isto é… viver dos rendimentos, de certo modo repetir os temas já tratados! Nalguns destes lugares tenho coincidido com o Agostinho da Silva, com o desgosto de verificar que está cada vez mais acérrimo na sua campanha contra a filosofia portuguesa. Portugal não tem filósofos (apenas o Spinoza) e aliás não tem importância, porque o que importa é a Sabedoria (e isso o povo português tem-na com seus mitos e crenças) e a matemática ou pragmática!

Não é preciso filosofar, o que é preciso é agir, para o que basta o fundamento de uma sophia por assim dizer inerente ao nosso povo, com a graça do Espírito Santo a soprar no nosso sentido, etc. Em tudo isto, muitos compromissos com a política do momento, com o socialismo, com o terceiromundismo, com os nomes em voga, Soares, Saramago, etc. É muito esquisito mas não me arrependo de lhe ter dedicado o livro, pois tenho que ser justo: foi ele que me inspirou o seu tema central, além de que há nele um fogo na oratória, que leva muita gente nova para fora dos enquadramentos positivistas ou comunistas, abrindo-lhes portas.

No entanto, não o sigo, longe disso, pois sou acima de tudo discípulo de Leonardo Coimbra e de Álvaro Ribeiro, estando pois do lado das suas teses e procurando defendê-las e expandi-las.

Receei na verdade que você, ou não tivesse recebido o livro, ou nada me quisesse dizer a seu respeito por o achar demasiado cristão, ou católico.

Aliás, você foi direito a um dos tópicos mais controversos, uma pedra de toque, a questão dos Jesuítas. Na realidade, julgo ser um livre-pensador, só que não quero perder a ligação directa, vivencial, a uma Igreja pontifícia. A ponte com o sobrenatural pode decerto dispensar a Igreja, como sucede com os místicos e os gnósticos, mas, não me sentindo ou não sendo agraciado com tais faculdades, ao menos situo-me na ponte entre o hoje existencial e o eterno divino, representado na herança de Cristo Jesus a Pedro e aos Pontífices. Contudo, é ainda mais funda (embora dificilmente expressável) a minha ligação também pontifícia, à Igreja de João e do Espírito Santo, o que me defende de cair no clericalismo e no dogmatismo. Há aqui um acto de humildade, como penso que terá sido o de Leonardo, na sua conversão pública. A metanóia era muito, muito anterior. Mas, com a sua conversão pública, não quis ele diminuir o ego e juntar-se ao povo que não tem acesso a outras pontes, senão a ponte por Pedro?

No fundo, este meu segundo volume foi (ao menos para mim) um livro luminoso.

Que vai ser o terceiro (que ainda não comecei a escrever), se é no terceiro que tenho de defrontar os problemas da Contra-Reforma e depois do Iluminismo? Julgo que vai ser um livro labiríntico, de luz-sombra ou de sombra-luz, mas mais sombrio do que aquele.

Pensei muito em si, quando, espectacularmente, marquei as datas de 1321-1521 para o projecto áureo. Claro, isto foi um pouco de provocação, pois as vidas não se podem datar com tanta precisão. O fim do ciclo é a morte de D. Manuel (como eu marquei) ou a época infamante em que D. Manuel, por ambição, cede aos Reis Católicos, obriga à conversão artificial dos Judeus, à figura do Cristão Novo, à expulsão dos Judeus Velhos, como no seu conceito, caro António?

Pois apesar de tudo forço na figura de D. Manuel, não só porque acho que ele quis sobretudo enganar os espanhóis, para obter o trono das Espanhas, mas também porque ele era da Ordem de Cristo e lhe devemos a Arte Manuelina e Gil Vicente. Mas fi-lo em dúvida íntima!        

Que significa, aqui, passar da Ordem de Cristo à Companhia de Jesus? Eis um tema em que tenho de lutar corpo a corpo. Eu não faço propriamente distinção entre os Jesuítas espanhóis e os portugueses. Os portugueses da primeira vaga, da geração de Loyola, foram de facto iguais aos espanhóis.

Põe-se-me no entanto a dúvida quanto aos das vagas seguintes. É que, com o período filipino, eles descobriram-se portugueses – e daí Vieira, a quem F. Pessoa chamou Mestre da ordem dos Templários! Estiveram na luta pela restauração, colaboraram na expansão, lutaram contra holandeses e ingleses, e, na luta contra Pombal, de que lado deveremos estar? Aí eles defenderam o tomismo e o aristotelismo contra a filosofia das luzes e a reforma de Verney.     

Como vê, são temas para os quais estou desperto e para os quais não tenho de momento solução pronta. Vai ser um dos pontos mais difíceis do vol. III. Uma coisa é certa: serei tão objectivo e livre-pensador quanto possível. D. João III e a Inquisição são imperdoáveis. Os Jesuítas… a questão é ambígua e controversa. Preciso de estudar melhor o problema, pelo que a sua ajuda seria preciosa. Como vê você os problemas que levantei? Mas a minha conclusão final será sempre criacionista. A regeneração passa, depois da fase dos mitos, pela fase do criacionismo filosófico, por uma filosofia teleológica, segundo o magistério dos nossos mestres.

Bom, esta carta já vai demasiado longa. Que está você a fazer neste momento? Estou certo de que tem muitas coisas pensadas e escritas, que nos irão surpreender e iluminar, como sempre.

Gostaria muito de ir visitá-lo. Mas vai ser difícil!

Viu o livro do Álvaro, organizado pelo Pinharanda? É esmagador…

 

Saudades à sua mulher e um abraço do seu amigo dedicado,

 

António Quadros

 

P. S. Não me disse nada acerca da minha “leitura” dos Painéis. Que achou? Fiz uma interpretação claramente gibelina: a Casa de Avis a dominar o Alto Clero, a Nobreza e os Condestáveis…

Quanto ao meu horóscopo: n. a 14 de Julho às 7 da manhã – 6,20 h. exactamente, parece que sou um Caranguejo com ascendente de Leão. Fortemente lunar, a verdade é que tenho passado o meu tempo a fazer reflectir a luz solar dos outros (os Portugueses, Álvaro Ribeiro, Marinho, Leonardo, Pessoa, Pascoaes, etc.), do que a emitir uma luz própria. Mas é um papel que hoje assumo com consciência e com alegria. Talvez pudesse fazer mais por exprimir o meu próprio pensamento, e talvez tivesse alguma coisa a dizer, mas vou-o sempre adiando, nas urgências de valorizar a filosofia e a paideia portuguesas, o magistério do Espírito através dos nossos Mestres, etc. Já era imenso se nesse capítulo conseguisse algo. Querer mais do que isto seria estultícia da minha parte. Já me tenho classificado, não como filósofo, mas como filo-filósofo. Aliás, a tarefa de receber o sol de Portugal e do seu espírito ou pensamento é tão enorme que pouca margem deixa (ou o meu inconsciente o escolhe assim) para um mais que provavelmente seria menos.

Por curiosidade, mando-lhe fotocópia do Horóscopo que o Vasco da Gama Rodrigues me levantou aí por 1950. Parece-me bastante acertado, se descontarmos um certo tom de elogio ou de simpatia…

 

Um grande abraço do

                                                                         António 

11-07-2014 10:27

Álvaro Ribeiro*

Rafael Monteiro

 

Algo de insólito se verificou na sessão da Assembleia Nacional, realizada no dia 21 deste mês de Janeiro, ano de 1970.

A evocação tardia (porque feita após o termo da vida terrena) de José Régio permitiu a Veiga de Macedo, associando-se calorosa e sentidamente à homenagem, nobres e justíssimas palavras de apreço por Álvaro Ribeiro, pela obra e pelo escritor, «extraordinário pensador que da sua vida tem feito sacerdócio».

O ilustre deputado leu aos seus pares trechos da «Dedicatória» do último livro do mais português dos nossos pensadores: A Literatura de José Régio – o mais humilde livro que a um homem pode ser dado escrever, «livro porventura único na nossa literatura de pensamento», segundo as certas palavras do editor.

Há muitos anos, certamente, que tão alta e representativa Assembleia não escutava palavras de tão justos louvor e apreço para com a obra de dois dos mais nobres espíritos da nossa terra, de dois dos mais inteligentes portugueses das últimas gerações.

Se podemos pensar que nem toda a assembleia desconhecia o nome de José Régio, cremos ser, para a maioria, nome sem significado, o de Álvaro Ribeiro. Louvemos, por isso, o acto de Veiga de Macedo, o acto de lembrar aos políticos eventos e verdades que, transcendendo-os, importa conhecer: verdades e eventos cujo desconhecimento não dignifica os homens.

Insólito dissemos ter sido o acontecimento; bastará, como demonstração da nossa asserção, o relato da Imprensa, que conta: Veiga de Macedo, a uma interrupção que lhe foi feita, houve que responder, respeitosa e firmemente: «Não estou a fazer retórica! Estou a prestar homenagem a um pensador!»

Tão desabituados andam os homens de ouvir palavras nobres, tão afastados estão da beleza e da verdade!

 

 * * *

 

Álvaro Ribeiro é, como Régio foi, um vivo entre mortos, ente acordado que pensa e age entre seres adormecidos. Despertá-los tem sido a missão do seu génio; no reino onde dormem, embora adormecidos se entronizem. Se não quereis que vos chamem retóricos, não os desperteis.

Os despertos que durmam – eis a regra de todos os que, à luz, preferem a treva, regra que os obrigou, por feminino temor, ao culto de um deus nocturno; cega-os os raios do Deus luminoso e verdadeiro. Não correspondendo neles a idade cronológica à idade do espírito, continuam adolescentes entre adultos – e o diálogo é de surdos quando estes falam e aqueles escutam.

Álvaro Ribeiro, pensador português agraciado, fez da sua vida – onde há dores e soluços – gratuito dom a todos os portugueses. Entre os anos de 1943 e 1965 escreveu e publicou onze livros magistrais; não podem eles deixar de ser lidos e meditados por todos quantos se dizem honrar com a condição de portugueses.

Depois da influência exercida por Leonardo Coimbra, na Faculdade de Letras do Porto (de 1919 a 1931), Álvaro Ribeiro foi o filósofo português de mais magistral influência em Portugal, quer se reconheça ou se negue tão importante verdade.

Pouco habituados ao reconhecimento, não manifestámos ainda a Álvaro Ribeiro a merecida gratidão que lhe devemos – manifestação que há-de ser, necessariamente, diferente do banquete encomendado ou da homenagem em dia certo…

«Dos trinta anos para cima, e até aos cinquenta, já servi o tempo propício à expiação», escreve o filósofo, citando os Números. Que, para ele, agora, a vida terrena seja de paz, e que nela lhe permitam realizar um dos seus desejos, ainda não há muito manifestado: o de dirigir a publicação de uma edição popular da obra de Aristóteles. Conceder a Álvaro Ribeiro o necessário para – em paz – tornar real o seu desejo, será o modo digno de lhe manifestarmos toda a gratidão que lhe devemos, que todos lhe devemos.

Há, no nosso país, meios suficientes para concretizar aquele desejo; esperemos (a esperança é uma virtude) que os homens inteligentes e bons possam contribuir para que o homem e o pensador viva em alegria e paz os últimos anos da sua vida – entrecortada por dores e por soluços.

____________

*Publicado originalmente em Jornal da Costa do Sol, de 31 de Janeiro de 1970, e republicado em Sesimbra Eventos, n.º 35, Fevereiro/Março de 2005.

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António Telmo. Vida e Obra antoniotelmovidaeobra@gmail.com