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CORRESPONDÊNCIA. 12

02-06-2014 12:01

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 06

Lisboa, 7 de Junho de 1972

 

 

Meu caro António Telmo:

 

Há meses que vivo no desejo de ir até Redondo, conversar consigo, cumprimentar Maria Antónia e beijar seus filhos. Não me esqueço do Manuel. Parece ter chegado, enfim, a ocasião de vos visitar. O Germano e a Conchita ofereceram-nos uma “boleia” durante a volta que irão dar pelo Alentejo nos feriados nacionais. Talvez não se demorem em Redondo, mas dar-nos-ão oportunidade, à Maria Júlia e a mim, de mais uma vez exprimirmos a simpatia e a amizade que temos por vós.

Encerro este aviso, enviando os nossos cumprimentos que na epistolografia nunca logram perfeita expressão

Álvaro Ribeiro

UNIVERSO TÉLMICO. 02

30-05-2014 09:45

Agostinho da Silva*

António Reis Marques

 

Por mercê do meu amigo António Telmo, tive o privilégio de conhecer o Professor Agostinho da Silva, e depois com ele conviver durante muitos anos.

Muitas vezes lhe ouvi dizer que gostava de contactar com as pessoas simples, com as quais, como também dizia, sempre aprendera muito.

A esse propósito todos nós conhecemos a referência que faz aos faroleiros do Cabo Espichel, no seu livro “Reflexão”.

Eu sou um dos muitos homens simples que ele conheceu mas, no meu caso, obviamente que fui eu que aprendi com ele, e disso vos quero transmitir alguns, também simples, testemunhos e pequenas notas de recordações que traduzem, para além da alma límpida e da inteligência cristalina, a grandeza humana desse saudoso amigo.

 

 * * *

 

Uma vez manifestou-me o desejo de visitar uma loja de companha, para os que não sabem uma espécie de armazém onde se guardam os apetrechos de pesca, visto querer conhecer de perto o trabalho dos pescadores.

Acompanhei-o então a uma dessas lojas, infelizmente já desaparecidas, dada a decadência que se tem verificado na vida piscatória.

Um grupo de pescadores, bem como o respectivo mestre, entretanto prevenido da visita, dispuseram-se a explicar, na sua linguagem característica, que por vezes tive de “traduzir”, as várias tarefas em que estavam ocupados para a pesca com aparelhos de anzol.

Sempre atento e interessado por tudo, a certa altura surpreende-nos quando, pedindo para ser ele a fixar o anzol na respectiva linha, o fez com a rapidez e a destreza de um pescador experiente.

Haveria de segredar-me depois que, talvez por ter pensado em ser marinheiro, aprendera a arte de fazer nós, e por isso tinha exposto numa parede da sala da sua casa um quadro com alguns dos nós mais usuais.

Na conversa que manteve com os pescadores, deixou-os admirados com o à-vontade com que falava de pesca, dos peixes e de navegação, emocionando-os até quando lhes disse:

“Vocês são os descendentes desse sesimbrenses que correram mundo nas naus e caravelas dos Descobrimentos.

“Foi com pescadores como vocês que os nossos mareantes aperfeiçoaram a arte de navegar, e foi também com eles que, velas desfraldadas, conseguiram um dos maiores feitos das navegações portuguesas: aprender a navegar à bolina, ou seja, navegar contra o vento”.

 

 * * *

 

Como todos sabemos, o Prof. Agostinho gostava muito de gatos. E até é bem conhecida uma fotografia sua com um gato ao colo.

Poucos saberão porém que ele se deslocava muitas vezes a Sesimbra, propositadamente, para distribuir comida pelos gatos vadios que existiam perto do seu apartamento na falésia.

Numa dessas vezes convidou-me para conversarmos.

Era um dia de Verão e a praia estava cheia de gente que, à medida que o sol declinava, se ia retirando.

Sentámo-nos na sua varanda, donde se avistava em toda a extensão a praia e a baía, e começou por me dizer: “Veja só! O areal está cheio de gente, que não sei porquê chamam de banhistas, visto que passam horas só a apanhar sol, com o objectivo de se bronzearem, que é hoje uma moda com muitos seguidores.

“Agora que se aproxima aquela hora mágica do entardecer, é que todos se vão embora, quando podiam pelo menos contemplar um daqueles poentes que todos os dias lhes são oferecidos. E que tão belos são, ali para as bandas da serra que leva ao Cabo Espichel.”

“Leonardo Coimbra tem um magnífico texto sobre isso”, acrescentei eu. “É verdade”, respondeu-me, “mas quantos são hoje os que o lêem?”

A conversa prolongou-se noite dentro, com muito gosto e proveito para mim. Os gatos, coitados, é que ficaram prejudicados, pois dessa vez só comeram no dia seguinte.

 

* * *

 

Num período difícil e doloroso da minha vida, motivado pela doença incurável dum filho de vinte anos, tive mais uma vez ocasião de verificar a extraordinária dimensão do homem bom, generoso e amigo que ele era.

Por ter deixado de o visitar com a regularidade habitual, e não tendo conseguido contactar-me telefonicamente, procurou saber junto de amigos comuns o motivo da minha ausência.

Logo que o soube, tratou imediatamente de averiguar junto de alguns dos melhores médicos que então havia, quais as possibilidades de tratamento.

Inclusivamente, telefonava para a América, onde então se encontrava uma sua amiga, a cientista portuguesa Maria de Sousa, com quem se aconselhava sobre o problema.

Para além disso, chamou-me a sua casa e disse-me: “Embora eu o conheça, nestas circunstâncias, por mais fortes que sejamos, nunca o somos o suficiente.

“Quero portanto prepará-lo para enfrentar a situação, tanto mais que é casado e tem um outro filho menor, o que torna tudo mais complicado.”

A partir daí, todos os dias passava por sua casa e, com ele, consegui de facto fortalecer o meu ânimo para melhor suportar a fatalidade que se deu.

Nessa altura, falando-me das contingências e fragilidades da vida, ouvi-lhe aquilo que considero um dos seus mais lúcidos aforismos: “Nós fazemos planos para a vida, mas nunca sabemos que planos a vida tem para nós!”

 

 * * *

 

Certo dia telefonou-me de Lisboa, informando-me de que vinha a Sesimbra no dia seguinte e, se estivesse em casa, aproveitaria para me visitar.

Assim aconteceu e, para minha surpresa e satisfação, presenteou-me com uma miniatura de um veleiro, visto saber do meu gosto pelos barcos.

Perante a honra da visita, e da oferta, manifestei-lhe, naturalmente, o meu agradecimento, e disse-lhe que tinha pena de não saber retribuir-lhe tanta gentileza.

De imediato, me retorquiu: “Uma coisa que nunca deve haver é conta corrente entre os amigos”.

Logo dois dias depois dessa visita, chegava nova surpresa para mim. O correio trouxe-me uma carta dele, acompanhada de uma poesia que me dedicara, e passo a ler, sendo a primeira vez que a divulgo.

 

Vou pelo justo que houver

No que seja atribuir,

Pelo generoso impulso

Da acção de distribuir,

Ou pela fraternidade

Que vem no contribuir,

Mas por amor do gratuito

Que tem de haver no sentir,

Nem gosto de ouvir falar

No verbo retribuir.

 

 * * *

 

A última vez que o visitei em Lisboa, já ele não estava bem de saúde.

Toquei à campainha e a porta abriu-se, pensando por isso que teria sido por ele.

Qual não é o meu espanto quando o vejo, sozinho, encostado à parede do patamar do segundo piso. Ele morava no terceiro.

Não respondendo ao meu bom dia, reparei então que estava de olhos fechados e, pouco depois, fez-me sinal para esperar.

Durante alguns momentos, daqueles que em certas circunstâncias nos parecem uma eternidade, entre surpreso e preocupado, esperei que me dissesse alguma coisa.

De repente, abre os olhos, cumprimenta-me e diz-me:

“Sabe, fui aqui surpreendido por uma dor, que me obrigou a parar. Quando você chegou, estava já na fase de conseguir que eu estivesse aqui e a dor ali, lá consegui afastar-me da dor.”

Por alguma coisa que me ensinou, julgo saber o que ele fez.

Como o fez, julgo também saber que isso será apenas do domínio de quem tenha uma preparação especial, melhor dizendo, uma iniciação de grau elevado, a que só podem aceder alguns homens superiores como ele de facto era.

 ___________

 * Comunicação apresentada ao colóquio “Uma conversa com Agostinho”, realizado em 23 de Novembro de 2002, no Auditório Municipal Conde de Ferreira, em Sesimbra.

FOTOS COM HISTÓRIA(S). 04

29-05-2014 10:01

29 de Maio de 2010. Visivelmente doente, António Telmo faz a sua derradeira oração pública na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra, casa de que foi o primeiro director. É manifesto o sacrifício com que o orador, bastante debilitado, fala para a assistência. Surpreende, porém, pelo tom empolgante com que a arrebata num apólogo estrénuo da República, suscitando-lhe, a final, tremenda ovação. No âmbito do colóquio "Anarquia, Monarquia e República", do ciclo Portugal Renascente, Telmo fala sobre "Monarquia e República". A seu lado, António Cândido Franco aborda o tema "Anarquia e República", além de apresentar o livro Luís de Camões, de Telmo, lançado nesse mesmo dia.

VERDES ANOS. 05

29-05-2014 09:37

Seja pelo estilo, pela orientação temática ou pelo fundo da ideação, as marcas da influição alvarina estão bem patentes neste artigo ensaístico que António Telmo dá à estampa no Diário de Notícias em Agosto de 1957. Pensamos, notadamente, na reflexão antropológica que pauta o discurso, tributária, como é óbvio, de A Razão Animada, saída a lume meses antes; e na anglofilia que o perpassa, bem conforme ao sentimento de Álvaro Ribeiro. Mas o que neste escrito se assoma e avulta com foros de novidade é a assunção nele implicitada pelo novel filósofo -- ao que sabemos pela primeira vez -- da hermenêutica da épica de Camões como plano de trabalhos para o porvir. Neste sentido, "Características heróicas da novela inglesa" firma um marco histórico na biobibliografia de António Telmo, e permite-nos afirmar que a sua demanda camonina se cumpre, ao menos em potência, por mais de meio século -- uma vida inteira! --, tal o ponto recuado a que a revelação do filósofo faz remontar o início daquela sua gesta espiritual.  

____________   

Características heróicas da novela inglesa[1]

 

[Somerset Maugham]

 

Ainda que haja outras opiniões, a verdade é que, desde o século XIX, a literatura inglesa sempre atraiu, em primeiro lugar, os escritores portugueses, como se verifica com os exemplos de Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Júlio Dinis. Para o observador superficial, pode parecer que esse lugar pertence à literatura francesa, mas só para o observador superficial, distraído da verdade pelos letreiros das livrarias e pelas citações e suscitações dos críticos. O facto de os professores liceais e universitários, geralmente melhor informados de literatura francesa, desviarem os futuros escritores dos estudos ingleses não prova que são inoperantes as afinidades profundas entre os dois povos atlânticos. Todos conhecem a importância das viagens para a revolução filosófica. Se a viagem das três naus «S. Gabriel», «S. Rafael» e «Bérrio» contribuiu decisivamente para o conhecimento do mundo, não menos as viagens do «Mayflower» e do «Beagle» representam movimentos simbólicos na evolução da humanidade.

Conviria, além disso, ver se os escritores franceses, com maior notoriedade entre nós, por sua vez não foram influenciados pelos ingleses, como é o caso de Daudet, considerado pela crítica um imitador de Dickens.

Caracteriza-se a literatura inglesa pela constante evolucionista das respostas que os seus escritores dão aos três únicos problemas filosóficos, indicados por Bergson na «Energia Espiritual»: «Donde vimos, quem somos, para onde vamos?». Muita gente prefere ler contos, novelas e romances a estudar livros de filosofia, talvez porque assim encontra melhor resposta, ou, pelo menos, mais adequada aos enigmas obsessivos. Quando o filósofo interpõe entre a nossa consciência e a nossa inconsciência problemas fictícios ou que parecem longe da temática existencial, como, por exemplo, o problema do ser e do não ser, compreende-se que a consciência proteste em nome da inconsciência, isto é, da ignorância, e busque refúgio na inacção mental e na fantasia aparentemente sem responsabilidade. Mas, ao procurarem passar o tempo, em devaneio, na leitura de romances, homens e mulheres regressam, por esse caminho, à preocupação dos temas e dos problemas a que só a filosofia poderá dar adequada resposta.

Toda a novelística inglesa descreve os homens vivendo em razão das suas obscuras origens. A influência de Darwin tem de ser considerada, porém, ao mesmo tempo, com as influências de Carlyle, Ruskin, Stuart Mill, Herbert Spencer e Matthew Arnold. A tese darwinista da origem animal do homem, aproveitada depois pelos positivistas para negar a nossa progénie heroica, é contrapolar da tese defendida por Carlyle. Os novelistas, atentos, por determinação artística, aos vários processos de enovelamento da intriga, afirmam todos a agência do elemento heróico, como motor da evolução.

Ocorrem-nos os nomes de três romancistas bem representativos do evolucionismo inglês: George du Maurier, D. H. Lawrence e Somerset Maugham.

São três escritores completamente individualizados, no modo de conduzir a narrativa, no tipo de imaginação, na escolha dos temas e caracteres, na forma de articulação do diálogo, da descrição e dos comentários. Todavia, os três convergem pela introdução do elemento heróico na fabulação da intriga. Para George du Maurier, o divino revela-se pela queda no sonho, e todo o enigma humano se desdobra aos olhos de quem pratique sabiamente a arte de sonhar. Este escritor continua em Inglaterra a tradição dantesca que Gérard de Nerval estudou, em França, no seu romance «As Salamandras». – D. H. Lawrence considera, pelo contrário, a reclusão do espírito na autognose adversa do impulso vital, que para ele reside na atracção dos sexos. Imagina, porém, o elemento heróico pela figuração de «os anjos que reduziram as filhas dos homens». – Somerset Maugham é, aparentemente, o mais superficial dos três. O êxito dos seus livros, lidos em todo o Mundo, é, em parte, explicável pela simplicidade do estilo, pela sua admirável arte de contar uma história, pelo interesse que transmite às existências de toda a gente. Em livros como «O Agente Britânico» e «Servidão Humana», sem dificuldade se vê que, para Somerset Maugham, o heróico se revela e realiza pela progressiva consciência do mal.

É oportuno notar, a propósito destes três escritores, como sempre nos romances se incluem teses que podem estar mais ou menos explícitas. O romancista apresenta ao leitor, em imagens adaptadas à sua vivência pessoal, concepções que, expressas na linguagem dos filósofos, seriam apenas atendidas por uma minoria intelectual. É extraordinária e incalculável a influência do romancista na vida dos homens. Ele move, molda e transforma os caracteres, menos pela crítica e pelo riso (como no caso de Eça de Queirós), os quais apenas promovem a dissolução dos caracteres na homogeneidade social, do que propondo modelos imitáveis e admiráveis até aos arquétipos, pelo desenvolvimento, através da vida das personagens, das virtualidades existentes na alma do leitor em estado seminal.

A transmissão do pensamento esotérico aos profanos, os quais emergem em ondas sucessivas da grande noite do subconsciente popular, passou da poesia para o romance, com a decadência da epopeia, mas o cinema, hoje, é sem dúvida a forma artística que maior influência exerce.

Após um dia de trabalho mecânico, o cinema vem ocupar as horas de ócio. Ali, como no mundo do sonho, «onde nunca se vê o sol», é interior a luz que ilumina as imagens; vem essa luz das costas do espectador, e actua, durante a contemplação, como se viesse, por assim dizer, da subconsciência. Forma-se um complexo estado psíquico. O espectador sofre e goza, em completa passividade do corpo, mas a representação íntima das imagens, íntima na sua exterioridade, pois o cinema é um duplicador de vida anímica, provoca movimentos imperceptíveis, que aumentam, por falta de conteúdo, os efeitos tóxicos dados na representação.

É curioso observar como uma das tendências mais marcadas da novelística de hoje, em vários países europeus, é a de representar cinematicamente a vida interior, fluídica e movente. Mas aqui ainda se afirma a superioridade dos ingleses, principalmente por meio de Virginia Woolf e James Joyce.

Sempre o elemento líquido, em imagem sem fim, caracteriza essa literatura de épicos. Não admira, portanto, que para ela vá a nossa simpatia profunda. Serão diversos, certamente, os nossos modos e caminhos de cruzar o Atlântico, mas ainda está por fazer a hermenêutica de «Os Lusíadas» segundo o ensino de Hermes Trimegisto, cifrado pelos mediterrâneos no símbolo do Tridente de Neptuno.

 

António Telmo



[1] Diário de Notícias, ano 93.º, n.º 32843, Lisboa, 1 Ago. 1957, pp. 7 e 8 (supl. Artes e Letras).

 

«OS MEUS PREFÁCIOS». 05

28-05-2014 12:41

Escrito em 2007 como prefácio ao livro Barros Basto - A Miragem Marrana, de Alexandre Teixeira Mendes, é um dos trinta escritos que, entre dispersos e inéditos, A Terra Prometida, I Volume das Obras Completas de António Telmo, com lançamento aprazado para o próximo dia 21 de Junho, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, irá pôr à disposição dos leitores. Nele o filósofo se confessa marrano; nele desenvolve uma significativa classificação dos marranos portugueses, já aflorada em "As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa", ensaio axial de Filosofia e Kabbalah, de 1989. O marranismo será aliás um dos tópicos fundamentais de A Terra Prometida, onde, a este propósito, um inédito télmico sobre Natália Correia e A Madona prepondera. Mas, ali reintitulado de "Sepharad", este é também um escrito fundamental sobre a visão télmica de Agostinho da Silva, assim renovada à luz do marranismo. Aliás, no ano em que se comemora o 20.º aniversário da morte do autor de Um Fernando Pessoa, o livro inaugural da opera omnia de Telmo apresenta-se como um documento fundamental para se compreender o modo como o autor de Arte Poética olhava para o seu compadre. D' "O Horóscopo de Agostinho da Silva" a "Agostinho da SIlva e os Titãs", passando pelas referências nas várias entrevistas coligidas e por este escrito prefacial, Agostinho é uma presença viva e imortal n'A Terra Prometida.

 

CARTA PREFACIAL A BARROS BASTO - A MIRAGEM MARRANA, DE ALEXANDRE TEIXEIRA MENDES

 

Meu caro Alexandre Teixeira Mendes

 

Esta carta é uma coisa íntima entre descendentes de marranos ou, como diz no seu livro, de cabalistas da noite e aqui cabe lembrar a árvore da noite de Sampaio Bruno; mas, sendo íntima embora, se achar por bem publicá-la como prefácio do seu interessantíssimo livro, nada haverá a opor da minha parte, porque estão por aí outros, talvez muitos, que saberão viver connosco na intimidade do que deveria ser inefável. 

Pouco ou quase nada sabia, antes de o ler a si, de Artur Barros Basto. Levantou-o do túmulo em que jazia na minha memória e é agora, graças à inteligência do que escreveu, uma figura admirável de «guerreiro», no duplo sentido material e espiritual do termo.

Devo, porém, confessar que o que mais me interessou no seu livro foi a ligação desse «guerreiro» com o movimento heróico da Renascença Portuguesa de Teixeira Rego, de Teixeira de Pascoaes e de Leonardo Coimbra, porque tal ligação poderá trazer muita luz, não só sobre a identidade profunda de Barros Basto, mas, para muitos de modo inesperado, sobre o que realmente foi e é esse heróico movimento sem fim enquanto houver Portugal sem renascer.

Digo que poderá trazer muita luz. O seu livro é já o alvor dessa luz. O Alexandre Teixeira Mendes sabe muito bem e di-lo por vários modos, que Portugal, terra das três religiões do livro até D. João Terceiro, tornou-se, pelas sucessivas investidas da Inquisição, o país marrano por excelência, o país secretamente judaico, subconscientemente judaico, embora disso só tenham séria consciência os cabalistas da noite que, desde 1857, durante cento e cinquenta anos, até Pedro Sinde, Pedro Martins, até si (2007) têm sabido compreender o que é o movimento da filosofia portuguesa que Sampaio Bruno fundou e Álvaro Ribeiro criou.

Teixeira de Pascoaes, como muito bem viu António Cândido Franco, criou o Marános para cifrar o Portugal Marrano contra aqueles traidores que teimam em ver a luz nas labaredas da Inquisição. Sabemos ambos a que traidores aludo. O cristão-novo é, na origem, um ser dividido, dividido entre a religião de seus pais que é obrigado a renegar e a religião cristã que o forçam a praticar. Desse ser dividido formaram-se vários subprodutos: aqueles que foram incapazes de suportar a tensão tornaram-se ou materialistas ateus ou materialistas católicos, esquecendo (no melhor dos casos) ou odiando (no pior) a religião de sangue; outros tornaram-se judeus secretos, praticando ao mesmo tempo as duas religiões, forçados a serem ao mesmo tempo valentes e hipócritas. Mais e diversos resultados são possíveis. Todavia, aquele que me parece decisivo é o dos que procuram os caminhos difíceis, não daquela dificuldade do marrano que pratica às ocultas a sua verdadeira religião, mas de outra mais profunda dificuldade. São os que o Alexandre Teixeira Mendes me ajudou a ver: os da Renascença Portuguesa, os da Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra (com Artur Barros Basto o ensino da língua hebraica), por fim os filósofos portuenses exilados em Lisboa e os que se lhes seguiram, vindos de toda a parte.

Nestes, a tensão gera a inquietação e a inquietação é um princípio de movimento silogístico. A tensão é entre dois termos: o judaísmo e o cristianismo; ambos são sentidos como verdadeiros, não na ideia de um prolongar o outro, mas na do segundo ser a antítese do primeiro. Então, ou a inquietação se torna perpétua, sem saída para nada, gerando inacabadas oscilações de alma entre duas luzes ou se transforma no que verdadeiramente ela é, princípio de movimento para uma nova religião: aquela que cada cabalista da noite vê à luz do pensamento como a superior síntese dos dois sublimes contrários.

É nesta linha que devemos entender o Novo Deus Infante do Regresso ao Paraíso, a Igreja Lusitana de Sampaio Bruno e de Teixeira de Pascoaes, a Idade do Espírito Santo de António Quadros e de Agostinho da Silva.

Este homem extraordinário pensava que a Idade do Espírito Santo deveria necessariamente ser precedida de pão para todos e confiava na tecnologia por esta vir resolver todos os problemas materiais, criando o ócio que, vencida a miséria, não serviria para preguiçar mas para viver em activa contemplação o esplêndido renovado mundo.

Na famosa afirmação de Cícero «primo vivere, deinde philosophare» Agostinho da Silva via o seu sentido integral, donde não o devemos acusar de pertencer àquela espécie de cristãos-novos que prestam culto ao Bezerro de Ouro.

Por Bezerro de Ouro ou simplesmente Bezerro entendo aqui a Economia, a Deusa global. Dela esperam muitos a resolução de todos os problemas materiais dos homens e das mulheres. Por enquanto, mantêm-se as longas extensões de miséria, pelo que somos levados a pensar que a Economia ou não é uma ciência exacta ou então os que nela são entendidos não acertam com o seu ritmo.

Num livro meu recente, do qual saíram por enquanto só cinquenta exemplares, Congeminações de um Neopitagórico, lembro oportunamente a função mágica que Fernando Pessoa atribui à letra S e a asserção que faz de vir essa letra a ser a inicial dos homens intelectualmente e politicamente actuantes para bem ou para mal na vida da Pátria.

Com efeito, Sérgio, ainda no tempo de Pessoa, como Sidónio Pais, pelo poeta identificado com D. Sebastião e a que chamou Presidente-Rei, como Salazar, em quem de início acreditou e que depois desprezou foram, por diferentes modos, destacadas figuras de políticos. António Sérgio, explicando toda a nossa gloriosa história medieval com razões economicistas é a cabeça de uma longa série de personalidades cujos nomes começam por S. Será uma curiosidade de almanaque, mas nem por isso menos intrigante essa fileira de nomes: Spínola, Soares, Sá Carneiro, Cavaco Silva, Sampaio, Santana Lopes, Sócrates e outros que de momento não encontro. Estes, porém, são suficientes para mostrar como os cristãos-novos adoradores do Bezerro de Ouro estão, se Fernando Pessoa não erra, sob a influência da misteriosa Ordem da Serpente de que só nos diz um em dez.

Agostinho da Silva, também no último nome com S inicial, passou da Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra para o grupo da Seara Nova, destoando do republicanismo romântico dos seguidores de Sampaio Bruno e preferindo de longe Fernando Pessoa a Guerra Junqueiro e Teixeira de Pascoaes. A Seara Nova era uma promessa de pão, uma messe, uma missa, uma mensagem dirigida à acção imediata, esteada em razões susceptíveis de serem ensinadas onde houvesse mente de homem. Todavia, Agostinho da Silva foi ao mesmo tempo um grande admirador de Teixeira Rego e por ele, seu mestre de religião na Faculdade de Letras extinta por Salazar, através dele, autor de uma Nova Teoria do Sacrifício, sabia qual virá a ser o destino do Bezerro no dia do Grande Sacrifício com as águias de Deus voando acima do mundo. 

Meu caro Alexandre Teixeira Mendes, a carta já vai longa e não tem assim grande jeito para servir de prefácio. Termino com uma palavra de remorso. Evoco aqueles católicos como António Quadros e Dalila Pereira da Costa, Carlos Aurélio e Pinharanda Gomes e presto-lhes homenagem como a outros por aí ignorados que caracterizo assim: são católicos pelo espírito que não identificam Deus com a Igreja, que acreditam em Deus para além da Igreja e que por isso devem ser associados à heróica linhagem de republicanos para a qual, como ensinou Leonardo Coimbra, «a filosofia é o órgão da liberdade».

Não serve então de prefácio esta carta? É a obra de um marrano, cheia de paradoxos e duplicidades, de desvios súbitos, de contradições, de certezas e de incertezas. Como o seu livro que bem haja! Essa estrada aberta para Sepharad…

 

António Telmo       

 

DOS LIVROS. 10

27-05-2014 11:12

Sobre o mestre e o discípulo, entrevista conduzida por um anónimo

J: Durante o congresso que se realizou no Ateneu Comercial do Porto sobre Álvaro Ribeiro, v. afirmou que ninguém se podia dizer discípulo do filósofo, porque, sendo o mestre quem escolhe o discípulo, não há qualquer declaração de Álvaro Ribeiro que prove que ele tenha escolhido alguém. Eu sinto que naquela afirmação sua se envolvem problemas mais fundos ou escondidos, no quadro das relações, do ponto de vista não digo pessoal mas doutrinal, entre os que se dizem discípulo do filósofo portuense. Ficou patente durante o congresso que eles não formam um corpo homogéneo.

T: O que eu pretendi pôr em questão foi a relação mestre-discípulo, coisa que entendeu muito bem o Paulo Borges. Tal relação não tem, na obra de Álvaro Ribeiro, o peso que tem, por exemplo, na de José Marinho. Como é praticada no Oriente, o discípulo deve ao guru completa submissão e obediência. É o caso mais conhecido. Mas não é só no Oriente que isso acontece. Pratica-se o mesmo tipo de relação nas tarikas muçulmanas, entre os cabalistas hebreus e, entre nós, na Companhia de Jesus, onde o mestre recebe o nome de guia espiritual. Você que é jovem conhece certamente os livros de Carlos Castañeda, onde a recepção do ensino de D. Juan é conseguida à custa da mais completa escravidão da alma. O que porventura ignorará é que esses livros dão a forma idealizada do ensino duríssimo ministrado nas escolas criadas por Gurdjieff.

Aquilo que eu, de facto, pretendi significar com a minha intervenção no Porto é que tal relação nunca existiu nem existe no grupo de filosofia portuguesa.

 

J: Eduardo Lourenço, no entanto, não deixa de atribuir a Álvaro Ribeiro a função de guru no grupo. E vimos, no congresso, Afonso Botelho, que também lá andou e anda, privilegiar a relação mestre-discípulo.

T: Eu não creio que Afonso Botelho a veja como a viu Eduardo Lourenço. Pelo menos, está mais bem informado. Veja só! No grupo da filosofia portuguesa havia dois mestres. Era um grupo com dois mestres, Álvaro Ribeiro e José Marinho. Como qualquer pessoa pode verificar lendo o que o primeiro escreveu sobre o segundo em Cisão e Indecisão na Casa Portuguesa, estavam longe de pensar o mesmo, de conceber a filosofia do mesmo modo, embora olhassem para a mesma estrela. Logo isto anula à partida a calúnia de Eduardo Lourenço.

 

J: Acha que é uma calúnia dizer que Álvaro Ribeiro era o guru do grupo? Se, em vez de guru, tivesse dito guia espiritual já não havia calúnia?

T: Meu caro amigo, a filosofia portuguesa ensina a liberdade e não a submissão e a obediência, seja a homens seja a ideologias. Eu admito que por amor de Deus uma pessoa se deixe escravizar por um mestre que diz conhecer o caminho, mas gosto mais de pensar que Deus prefira os homens e as mulheres que o servem livremente. Sabe por que é que no grupo de filosofia portuguesa se privilegia o pensamento sobre os outros modos de mediação? É porque só se pode pensar individualmente. Ali, nunca soubemos o que era trabalhar em grupo.

 

J: Não havia uma tertúlia?

T: “A tertúlia é o lugar onde sopra o Espírito Santo, quando se reúnem homens de boa vontade.” Conhece esta frase de Álvaro Ribeiro? Acha que há, na tertúlia, assim concebida, qualquer semelhança com o trabalho de grupo? Acha que o Espírito Santo é o promotor da servidão a um líder ou a um grupo?

Na vida, meu caro amigo, só há uma forma de alegria sem mácula, é a de ser pelo espírito.

 

J: Como é, então, possível falar num grupo de filosofia portuguesa se ele é formado por indivíduos que nada têm em comum?

T: Eu não disse que não tínhamos nada de comum, o que se pode inferir das minhas palavras é que tínhamos em comum o amor da diferença. Nesse sentido, podemos todos dizer-nos discípulos de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Eles também tinham isso de comum.

A relação humana que Álvaro Ribeiro mais privilegia é a do homem e da mulher. Por isso considerava o oaristo a forma superior de diálogo. Em geral, a relação entre o homem e a mulher não é olhada com bons olhos pelos partidários da relação mestre-discípulo. Até para amar, o discípulo ou a discípula têm de pedir licença ao mestre. V. conhece sem dúvida, a doutrina que tem a energia sexual e a energia espiritual como duas formas da mesma energia. Por isso mesmo, o guia espiritual julga-se no direito de controlar a energia sexual do discípulo.   

 

J: Falou em oaristo. É a primeira vez que ouço a palavra.

T: Nunca leu Eugénio de Castro? Tem um livro com esse nome.

 

J: Vou procurar.

T: O oaristo é o diálogo entre os amantes e, sobretudo, a forma que ele assume entre duas almas que procuram conhecer-se na intimidade misteriosa onde se gera a vida. A palavra mais banal tem uma infinidade de sentidos e, no entanto, significa uma só coisa ou uma só ideia.

 

J: Pareceu-me admitir há pouco não haver diferença entre a relação mestre-discípulo e a relação mestre-discípula. Mas esta última relação não corre o perigo de se transformar numa relação entre dois amantes?

T: Deveria fazer essa pergunta aos partidários desse tipo humano de relação. Álvaro Ribeiro também pensou na hipocrisia de um ensino que, dizendo-se espiritual, tantas vezes decai numa relação infra-animal, isto é, em que as almas não estão ali para nada. É a razão porque afirma que o amor só se realiza integralmente pelo casamento, pela vida em comum na mesma casa. Incapaz de compreender o subtil alcance desta proposição, há logo quem o acuse de retrógrado e de reaccionário. Há também as almas românticas que não vêem como se possa trazer da natureza para casa a forma suprema do oaristo que é o Cântico dos Cânticos de Salomão.

 

J: O senhor julga-se um génio? Alguém que não precisa de mestre?

T: Não veio entrevistar-me para me insultar…

 

J: Perdoe-me. Não tinha a intenção de ofendê-lo. Pensei uma série de perguntas e esta é uma delas que me parece, ainda por cima, vir na corrente. Nada mais. Mas considera um insulto perguntar-lhe se se julga um génio?

T: Não há nenhum homem que seja um génio. Os génios pertencem a uma categoria diferente da humana. É a existência dos génios e de outros seres espirituais que permite haver artistas inspirados. Incluo na classe dos artistas inspirados também os homens de ciência. Digo isto porque, quando se fala em inspiração, supõe-se em geral que há nessa ideia qualquer coisa de poético e até de irreal incompatível com o exercício sóbrio e austero da razão.

Sampaio Bruno, nas Notas do Exílio, escreve umas linhas bem interessantes sobre o assunto.

 

J: O que é que ele diz?

T: Tenho o livro à mão. Sei exactamente a página. Quer ouvir?

 

J: Sem dúvida.

T: «Para mim, o processo de ideação da descoberta passa por três instantes, bem particularisticamente categorizáveis.»

«O primeiro consome-se na aquisição do problema, no seu conhecimento, na sua relacionação com os elementos conexos, na sua proporcionação com os lemas da ciência geral.»

«O segundo é o da explosão na consciência, por isso, genial, de uma ideia que talvez resolva a dificuldade.»

«O terceiro é o da ulterior verificação desta presunção. Aí vem examinar se os fenómenos conhecidos se comportam dentro da ideia concebida.»

E mais adiante:

«A primeira e a terceira destas fases mentais não exorbitam da mera intelectualidade, a segunda é a região monopolizada pelo génio.»

 

J: Julgo apreender a relação entre esse texto e o que me disse há pouco sobre a inspiração. Mas o senhor, ao combater a relação mestre-discípulo, não deixa ao acaso o progredir da ciência e a operatividade da ciência e a operatividade poética ou filosófica?

T: Sem aprendizagem, e séria aprendizagem, não é possível o primeiro momento analisado por Bruno. Ele não é só necessário em ciência. Há também o que lhe corresponde em poesia, por exemplo.

Eu não combato a relação mestre-discípulo a não ser quando ela assume a forma de dono e cão. Prefiro os gatos, como o Agostinho da Silva. “Os cães, disse ele, vão para onde a gente os manda; os gatos vão e vêm como querem e quando querem.” É evidente que o homem precisa de aprender com os outros homens, aprender sobretudo a saber estar disponível. É sempre bom que tenhamos alguém acima de nós. Leva-nos a olhar na direcção do céu.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

 

CORRESPONDÊNCIA. 11

26-05-2014 09:34

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 04



Ler mais: https://antonio-telmo-vida-e-obra.webnode.pt/news/correspond%c3%aancia-09/

 [Domingos Monteiro]

 

CORRESPONDÊNCIA DE ÁLVARO RIBEIRO PARA ANTÓNIO TELMO. 05

 

 

Lisboa, 1 de Outubro de 1971

 

Meu caro António Telmo:

 

Venho pedir-lhe notícias suas, de sua mulher e de seus filhos. Desejo em especial saber se ainda moram em Sesimbra, aonde os iria visitar num próximo domingo, acompanhado pela Maria Júlia.

Encarrega-me a Conchita de vos pedir a devolução do “parque” que já não deve ser de utilidade para o Manuel. Depois se combinará o modo ou processo de transporte até  Lisboa.

O Dr. Domingos Monteiro, que partiu para o estrangeiro onde vai gozar as suas férias de Outubro, deseja mandar compor e imprimir o meu livro durante o mês de Novembro. Avisei-o de que só entregaria o original quando ficasse cumprida a promessa devida ao António Telmo. Estamos de acordo.

Ainda não consegui resolver as dificuldades que resultaram do meu casamento. Mais uma vez terei de viajar até ao Porto, onde permanecerei por cinco dias. Quando voltar para Lisboa, esperarei notícias telefónicas ou epistolográficas do meu bom Amigo.

Com os melhores cumprimentos para a Maria Antónia, um abraço do

Álvaro Ribeiro

 

[em cartão timbrado da Junta Central das Casas do Povo. Praça de Londres, 2 – 14.º. Tel. 766181-761181. Lisboa-1]

UNIVERSO TÉLMICO. 01

23-05-2014 12:24

António Reis Marques, símbolo vivo de Sesimbra, decano da cultura sesimbrense e do projecto António Telmo. Vida e Obra, amigo de António Telmo e Agostinho da Silva, festeja hoje o seu 87.º aniversário. Parabéns!!! Aos nossos leitores, e em jeito de celebração, oferecemos agora um testemunho de Reis Marques sobre outro seu inseparável companheiro, e bem assim de Telmo e de Agostinho: Rafael Monteiro. Com ele se inaugura uma nova secção da nossa página: "Universo Télmico". 

Rafael Monteiro*

António Reis Marques

 

Aqueles que vão percorrendo, durante mais tempo, os caminhos da vida, para além do peso dos anos, e da amargura pela inexorável aproximação da decadência, acumulam ainda a miríade de recordações deixadas pelos que partiram mais cedo. É aquilo a que chamo o ónus da anciania.

Devo ser hoje um dos mais antigos amigos de Rafael Monteiro e, certamente por isso, e só por isso, me terá sido feito o convite para falar neste acto.

Todos quantos me conhecem sabem que sou avesso a discursos e, assim, quem me convidou terá de partilhar comigo o risco da minha intervenção não corresponder ao desejado.

Todavia, e para ser coerente, não irei fazer propriamente um discurso, mas apenas deixar-vos algumas considerações sobre a vida e a obra do homem cujo nome foi, felizmente, escolhido para patrono do Centro de Documentação que se inaugura.

Numa época em que ser pensador, artista ou homem de letras, não despertava nem o respeito nem a admiração de ninguém, suscitando pelo contrário uma certa condescendência indiferente, e cultivando-se o espírito do não vale a pena perder tempo com tudo aquilo que não dá dinheiro, naturalmente que Rafael Monteiro era considerado um sonhador, um excêntrico ou um louco.

São dele as palavras que passo a citar e que bem o caracterizavam: “longe e perto de mim, apodam-me de louco e irreverente, e por diversos meios têm tentado, às vezes com amizade, que acerte o meu passo largo com o saltitar e o coxear de alguns, que me “acomode”, que “tenha juízo”, até que tema e respeite aqueles que pela bolsa buscam suprir o que a cabeça lhes nega e nunca lhes dará.

Sem títulos nobiliárquicos, sem títulos universitários, sem títulos na Bolsa, sem condição social, de meu só tenho a minha própria loucura.

É pouco o valor dela, mas porque é um bem, um bem meu, estimo-o, defendo-o, acrescento-o, e a meu modo o uso, perante o riso e o sorriso dos que se esquecem de que se a Deus devo o existir, algo de divino tem de haver na loucura que possuo.”

Rafael Monteiro foi, no seu tempo, um dos mais altos expoentes dum certo tipo de sesimbrenses que, ávidos por saber e por fazer, foram criadores ou animadores de agremiações de cultura, de recreio, de desporto, de benemerência, dedicados até ao sacrifício pela manutenção duma banda de música, dum jornal, dum grupo cénico ou de um coro paroquial, fiéis depositários de tradições e costumes ancestrais, a quem se deve o que ainda hoje resta da verdadeira identidade desta velha terra de pescadores e mareantes.

Trabalhando devotada e gratuitamente, eram amadores na verdadeira acepção da palavra, isto é, aqueles que amam, sem outra retribuição que não fosse o gosto, a satisfação pelo cumprimento dum indeclinável dever cívico.

Não foi em circunstâncias felizes da sua vida que, nos primeiros anos de década de 50, passou a habitar o eremitério do Castelo, como na altura lhe chamou, somente acompanhado de sua mãe que, na vila, dava escola a algumas crianças e disso auferia o parco rendimento de que se sustentava.

Aqui isolados, sem conforto, sem água, electricidade ou telefone, difícil foi para ambos a ruptura, brusca, com todo um passado de vida diferente, junto de familiares, parentes, vizinhos e amigos, na pacata e rotineira vida na antiga Sesimbra da beira mar.

Como uma vez disse, isso trouxe-lhe, todavia, uma vantagem importante que era poder continuar a olhar o mar, mas a partir da bela perspectiva da sua vista aqui do alto e a uma certa distância, o que lhe permitia plena capacidade na sua contemplação, com a qual, como também referiu, se aprendia mais do que a ler os livros.

Com a sua extraordinária capacidade de tirar partido de todas as situações, mesmo as mais graves e difíceis, conseguiu, praticamente sozinho, tornar o então abandonado Castelo de Sesimbra num lugar de referência, quer pelas investigações arqueológicas que promoveu e que despertaram o interesse e até a colaboração de alguns dos mais distintos especialistas da época, quer pela loja de antiguidades que instalou e onde se expuseram e transaccionaram algumas raras e valiosas peças que os melhores antiquários de Lisboa lhe consignavam e que foi, durante anos, o seu ganha pão.

E esta casa, que habitou e salvou da ruína pela completa remodelação e melhorias que custeou, num dos raros períodos da sua vida em que a fortuna o bafejou com um episódico negócio de terrenos, tornar-se-ia num baluarte da cultura sesimbrense, pelas tertúlias que reuniu, pelos serões culturais nela realizados, que tiveram a participação de eminentes figuras das artes e das letras nacionais.

Contrário ao culto do efémero, do frívolo, que caracteriza a apressada e absorvente vida dos que têm o dinheiro por único ou supremo valor, procurando ver para além das aparências um sentido para a vida, soube rodear-se de alguns daqueles que, como ele, primavam pela busca dos valores expressos pela sublime trilogia: o bem, o belo, a verdade.

Onde quer que estivesse provocava a atenção dos que o cercavam, pela sua vasta cultura, pela facilidade e riqueza do verbo, por um dito de espírito, e até por vezes, por uma piada sarcástica que causava a gargalhada de uns e o sorriso amarelo de outros.

Não vou fazer aqui a sua biografia nem um panegírico de circunstância que me leve a esconder, eu que tantas vezes dele discordei, que na totalidade do seu perfil se encontram erros e defeitos, acções e opções controversas, que jamais ofuscarão porém o valor e extensão de sua obra em prol de Sesimbra, a qual representa também marca inconfundível da época em que viveu.

Os seus detractores, que os teve e muitos, tinham geralmente tendência para salientarem somente os aspectos negativos da sua personalidade multímoda, o que ainda hoje por vezes acontece.

Recordo, a propósito, um pensamento de autor anónimo que, em tempo, tive necessidade de citar a alguém que, por despeito, dele me falava de modo algo ofensivo: “as grandes inteligências discutem as ideias; as medíocres discutem os acontecimentos; as inferiores discutem as pessoas”.

Porque estamos perante a abertura dum centro de documentação que irá disponibilizar aos estudiosos e ao público em geral, entre vários textos e documentos sobre o Castelo, todos os livros e uma ampla colecção dos mais importantes artigos que publicou, importa salientar essa sua actividade que, para além do mais, é reveladora do seu indefectível bairrismo e testemunho dum insuperável amor à terra e às suas instituições.

Afirmar-se que esses livros e artigos constituem marcas e referências de vulto na bibliografia sesimbrense, embora seja um lugar comum, é também uma verdade axiomática.

A um ilustre amigo de ambos, ouvi um dia dizer que ele era um artista da palavra, e muitos dos seus escritos podiam considerar-se autênticas obras de arte.

Será isso que dele irá perdurar na memória dos sesimbrenses, pois tal como, aliás, bem o sabia “a vida é curta e só a arte é longa”.

É costume dizer-se, em relação aos poetas, que a melhor homenagem que se lhes pode prestar é decorar os seus versos.

Em relação ao Rafael Monteiro será divulgar a sua obra, não só através das novas tecnologias do centro de documentação, mas principalmente com uma condigna publicação de todos os seus escritos que esperamos, confiadamente, venham a ser contemplados nas próximas iniciativas editoriais da Câmara Municipal.

____________

*Discurso proferido na inauguração do Centro de Documentação Rafael Monteiro, Castelo de Sesimbra, em 25 de Abril de 2000.

INÉDITOS. 14

23-05-2014 09:49

À semelhança de A Dama de Oiros, Um Conto Policial, O Batoteiro ou O Contador de Histórias e a Mesa de Bilhar, o fascínio do jogo domina este conto inédito de António Telmo, passado entre Estremoz e Évora.

A história sonhada do jogador de Poker

 

Há quarenta noites que perdia continuamente e estava agora sem recursos, endividado por todos os lados, mas não podia deixar de jogar porque era o mesmo que morrer. Nesta situação, só um milagre! Faltavam três dias para receber o ordenado. Teria coragem para arriscá-lo, logo que o recebesse, deixando a mulher e os filhos sem pão para comer? Se perdesse mais uma vez, o que faria depois?

Pensava: “Se nunca ninguém se governou a jogar, porque é que somos tantos a teimar?”

Recordou a última jogada da noite anterior, em que arriscara toda a cave e a perdera. O outro só ganhava com o valete de paus e o valete de paus saiu.

Decidiu: “Vou deixar isto de uma vez para sempre”. Mas sentia uma grande tristeza.

Ah! Se ele pudesse substituir o jogo por outra coisa qualquer em que não arriscasse o dinheiro e a vida, mas que fosse na mesma fascinante! Uma amante? Nem pensar nisso. Era arriscar à mesma o dinheiro e a vida. Além disso, ele era um homem casado e honesto, amigo da casa e dos filhos e já tinha quarenta anos. A lembrança dos filhos comoveu-o. Lembrou-se de si quando era pequeno e sentiu vontade de chorar. Viu-se numa ribeira a caçar pássaros com uma fisga. Quase que deu um salto. A caça! Aí estava a solução:

– “É isso mesmo, vou vender a espingarda.”

Vendeu-a nessa mesma tarde por metade do seu valor. Tinha de novo dinheiro para ir jogar. Mas tinha de esperar pela noite. Aos sábados, era uma estupidez não haver batota à tarde. O que é que haveria de fazer até à hora do jantar? Pensou em ir para casa ver televisão. A televisão aborrecia-o e não se sentia disposto a ler ou a conversar. Pensou profundamente como um general antes de uma batalha e resolveu ir conhecer a parte antiga da cidade. Há quinze anos que vivia em Estremoz e nunca ali tinha ido.

– Vou ver esse famoso Castelo e, entretanto, passa o tempo.

Lá em cima, depois de se ter estafado por íngremes ruelas, a alta torre medieval não despertou nele qualquer entusiasmo e pôs-se a observar de perto um casal de turistas que, de cabeças sobre as costas, olhavam para as ameias. O homem dirigiu-lhe a palavra:

– Qual é a data de construção desta torre?

– É do tempo do rei D. Dinis. Do Rei de Ouros.

– Eu sei. – disse o outro muito sério – Do rei avarento. Aquele que tinha por mulher a rainha Santa Isabel. Não é dela aquela estátua? – e apontou a estátua da Santa.

– Sim, a Dama de Copas. – ciciou o jogador.

A mulher riu cristalinamente.

– Foi aqui que se deu o milagre das rosas? – perguntou ela. Antes que pudesse responder, o que parecia marido interpelou-a:

– Porque é que te ris?

– De nada. Lembrei-me do milagre das rosas por causa deste senhor ter chamado ao rei Rei de Ouros e à rainha Dama de Copas.

Sorriram os dois e, fazendo uma leve vénia com a cabeça, afastaram-se para tirar uma fotografia à estátua da santa.

Fosse como fosse, mais isto mais aquilo ou mais aquilo mais isto, tanto fazia, chegou finalmente a hora do jogo. Noite adiante foi perdendo a espingarda… Sempre que sobre a mesa caía o Rei de Ouros, exclamava:

– Aposto tanto no rei D. Dinis. 

E o mesmo quando caía a Dama de Copas:

– Aposto tanto na rainha Santa Isabel.

Os outros riam e ele perdia.

Em dado momento de uma dessas apostas, um deles, de quem não gostava e com quem mantinha um convívio difícil, enterrou-lhe na alma irritada esta frase como uma espada:

– Este está à espera do milagre das rosas ao contrário.

– Ao contrário?

O outro não teve tempo de responder.

– O pão dos meus filhos não vem para aqui. – e atirou-lhe com o baralho de cartas contra a cara. O agressor levantou-se ofendido e seguiu-se uma cena de pancadaria em que foi tudo pelos ares. Foi o nosso homem dali para o hospital com o fígado espetado por uma faca. De Estremoz transportaram-no para Évora, onde foi operado de urgência. Tocou os confins da morte, mas regressou. A convalescença foi demorada. Um dia, a mulher perguntou-lhe:

– Queres que te traga livros?

– Não. Traz-me um baralho de cartas.

Ficou a mulher preocupada:

– Não me digas que vais pôr-te a jogar com algum enfermeiro.

– Não é nada disso. Depois te explico. Traz-me um baralho de cartas. Tenho visto coisas que não sabia que existiam.

O que ele tinha visto era o próprio pensamento, que não sabia que tinha.

E o pensamento era uma corrente de significados que, no seu espírito, se revestiam de formas e de figuras que eram as cartas de jogar. A Dama de Copas era, de facto, a Dama do Amor. Mas o rei D. Dinis não era o Rei de Ouros, era o Rei de Paus. E os paus ardiam em fogo e esse fogo caía em gotas nos corações das copas e as espadas tocavam e feriam os corações e o sangue transmudava-se em ouro animado de vida que se movia incessantemente em círculo. E sentia a alma apaixonada e liberta no palácio do seu corpo.

Na véspera daquela visita da mulher, falara nisso ao doente que ocupava a outra cama do seu quarto. Este tinha-lhe dito muito sério:

– O senhor tenha cuidado. O fígado tem atirado muitos para o manicómio. – e explicou que a loucura era um corte da realidade e o espírito ficava do lado de cá dela sem saber o que fazer e apareciam aquelas maluqueiras.

Não. As cartas que ele via não podiam ser maluqueiras. Se fossem maluqueiras, como é que ele podia saber que o rei D. Dinis não era o Rei de Ouros, mas sim o Rei de Paus? Foi para ter a certeza que assim era na realidade e não só no seu espírito que pediu à mulher que lhe trouxesse um baralho de cartas.

No dia seguinte, ela veio mais o baralho, mas encontraram-no muito doente, cheio de febre e de suor, agitando-se constantemente. Com muito custo, conseguiu dizer:

– Trazes o baralho?... Dá-o cá.

Tomou-o das mãos da mulher, mas não teve força para se levantar na cama e para abrir o baralho.

– Procura-me aí o Rei de Ouros e o Rei de Paus e mostra-mos.

A mulher obedeceu-lhe, fazendo um grande esforço para não chorar. Pôs-lhe diante dos olhos os dois reis. Como havia pouca luz no quarto, debruçou-se para ver melhor o rosto do marido. Os olhos tinham uma estranha fixidez. Estava morto.

Temos muita pena de não podermos dizer ao leitor a conclusão a que chegou.

 

António Telmo

 

VOZ PASSIVA. 23

22-05-2014 10:42

Contos de António Telmo*

Avelino de Sousa

 

I

De acordo com Álvaro Ribeiro, a perscrutação de uma obra literária coloca em movimento ou pede o exercício de três capacidades fundamentais da mente: «a judicidade que caracteriza o crítico, a compreensão que caracteriza o psicólogo, e a generalização que caracteriza o filósofo». Na ausência ou na insuficiente maturação de cada uma dessas faculdades, melhor seria o intérprete abster-se de comentários escritos, guardando para si próprio as impressões recebidas na leitura de qualquer obra de imaginação, como é o caso dos contos reunidos por António Telmo em volume com o mesmo título. A isto me sentindo impelido, acabei no entanto por aceitar o convite que me foi endereçado para participar nesta singela homenagem a alguém que desde há muito prezo como pessoa e como escritor. Como também há muito que perfilho ou partilho daquela posição de Rilke, que escreveu «as obras de arte são de uma solidão infinita: para as abordar, nada pior do que a crítica», não poderia nunca ser nessa qualidade que me abalanço agora a lançar ao papel estas palavras, mas apenas mas na de amigo do autor. E é somente nessa condição que desejo deverem ser lidas estas linhas que se vão seguir.

Quis António Telmo dar ao seu livro de contos o simples, recto e justo título de “Contos”, sem aposição de outro qualificativo que nos esclarecesse que contos são esses, de que tratam, para que fim existem ou, porventura, a quem se dirigem. Procedeu, a meu ver, acertadamente, pois caberá de preferência ao leitor interessado inteirar-se ou aferir por si mesmo desses motivos, quer dizer, daquilo que terá movido o autor quando os concebeu.

A nudez da designação talvez oculte já, ou embora, o propósito da significação. Se focalizarmos a atenção num pequeno detalhe, constatar-se-á que a palavra “contos” está muito próxima da palavra “cantos”, variando apenas a primeira vogal. Deste pormenor aparentemente anódino, mas significativo, se atendermos a que António Telmo se estreou em livro precisamente com uma “Arte Poética”, quer dizer, com uma reflexão sobre a criação e os seus processos, poder-se-á talvez inferir que estes contos podem ser vistos simultaneamente cada um deles como um canto, do ‘canto maior’ que seria o conjunto de todos eles. E se ‘quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto’, não haverá canto sem encanto. Esse encanto surde como murmúrio de regato no canto de água límpida e pura que atravessa todo o fio narrativo, pontilhando estes contos de reflexos com todas as cores do arco-íris.

Caberia neste momento interrogar qual o estatuto que poderia apresentar um género de obra como esta, de contos, num autor que à meditação filológica e filosófica, aos artistas do pensamento e da palavra, tem dedicado o melhor do seu mester de escritor. Caberia isso interrogar, se não soubéssemos de antemão que para António Telmo é artificial a separação dos géneros literários, derivada de uma classificação em grande medida convencional, exclusivamente por motivos funcionais, próprios de uma necessidade taxiológica do espírito humano. E é por essa mesma razão que a sua obra vem sendo capaz de albergar no seu seio, de forma dispersa mas não díspar, antes formando uma plena unidade, aforismos, contos, histórias, poemas, ensaios, interpretações, filosofemas e outros textos de difícil classificação, se bem que em todos eles se possa constatar a “valorização do pensamento sobre o sentimento” (cf. p. 75), cara ao autor.

Por outro lado, numa hipótese puramente poética, a palavra portuguesa ‘contos’ contém em si, descontada a letra c, o termo grego “oνtωs (óntos), substantivo feminino para dizer a realidade, cuja forma verbal, tα̃ων ou tα̃ “oνtα̃ significa as coisas existentes. Neste sentido, esta obra, estando longe de ser um estudo ontológico ou tratado acerca do ser, mas porque o ser se diz de diferentes modos ou em diversas categorias, não deixa de constituir uma indagação das “coisas existentes” sob a esfera celeste. Mais concretamente da realidade do homem, e do homem situado, pelo que pressupõe a construção de personagens diferenciados em que a tessitura psíquica e lógica, ou psicológica, dos mesmos é pacientemente urdida. O mistério do princípio de individuação sempre há-de interpelar o escritor que se propõe perscrutar a fundo a natureza humana. Vários dos contos aqui reunidos testemunham esse mesmo intento – com especial relevo para o primeiro deles, intitulado “Os Dioscuros” ou mesmo “Doutoramento e Incesto” –, se bem que sob perspectivas ou pontos de vista diversos.

Fiel à tese alvarina, segundo a qual «a literatura, para não dizer a escritura, tem por missão revelar aos homens os acontecimentos de ordem preternatural e sobrenatural», objectivo esse a que o conto, de resto, se presta de forma excelente, pois se caracteriza, no dizer de Álvaro Ribeiro, «pela presença colaborante ou neutralizante de seres sobrenaturais», António Telmo será dos poucos autores vivos que dessa máxima soube extrair todas as consequências. Nos “Contos” se arquitecta uma obra de imaginação de impressiva sugestão sobre os espíritos, que da interrogação sobre as causas dos acontecimentos procuram fazer regra de vida, e da meditação pão quotidiano. Por aqui se vê que estes contos não são especialmente dirigidos a crianças, embora também elas possam lê-los com proveito, educando a imaginação, já que a imaginação futurante e adivinhante do que é ou se mantém incógnito, antecede o movimento da intelecção como factor gnósico e desperta na alma daquelas a perspicácia e o desejo de conhecimento, num trânsito do desconhecido para o conhecido ou, melhor dito, num movimento que está implicado ou implícito no acto de conhecer.

De resto, e será bom dizê-lo neste momento, face ao materialismo estéril e indigesto e à sociologia barata de que boa parte da literatura portuguesa contemporânea está cheia, mesmo aquela de autores tidos como “consagrados”, os quais antes deveriam ser considerados como profanadores da arte de bem escrever, que frescura e limpidez se desprendem destas páginas, em que os diálogos e as descrições, a clareza da linguagem e a variedade de meios expressivos, emprestam ao acto de bem dizer e contar um aroma de rara especiaria e lhe conferem um estilo cuja sublimidade está ao alcance de poucos.

 

II

Segundo testemunho oral do próprio António Telmo, os contos seriam «a filosofia servida á mesa do pobre», o que talvez possa significar o seguinte: mediante a arte narrativa do conto, sob o véu das imagens e do jogo de relações que as personagens entre si entretecem, qualquer pessoa medianamente culta que os leia poderia aceder, ainda que simbolicamente, ao plano de certas ideias que lhe são dadas de modo translato, como que metaforizadas em elementos sensíveis ou que se apresentam de modo concreto.

Mas esta dialéctica descendente – para utilizar uma terminologia platónica – em que o escritor faz descer a ideia do “céu” dos inteligíveis à “terra” do sensível ou experienciável, encarnando-a em pessoas e acontecimentos visíveis ou audíveis, não se faz sem a correspondente dialéctica ascendente que é a de suscitar no leitor o percurso inverso: levá-lo pela palavra a acordar o poder da imaginação e a conceber na sua alma «a figura do que apenas tem forma», para recorrer uma vez mais a uma expressão de Álvaro Ribeiro. Esse mesmo é o sortilégio da faculdade imaginativa, se entendermos este conceber não tanto como raiz da conceptualização lógica e abstracta, mas como concepção maternal ou matricial, em que o gérmen, ponto ou ideia inicial se vêem envoltos progressivamente, e em simultâneo, da criação “espiritual” (oferecida pelo escritor, em acto de dádiva ou de graça) e da compreensão “subtil” a ser conseguida pelo leitor, mediante um esforço de elevação desde a concreção “carnal” do texto que lhe é dado ao plano ou esfera ideal que, ínsito, nela cripticamente se insinua ou significa.

Se há ou pode haver um convite à decifração que o escritor dirige ao leitor avisado, nem por isso deixa de haver também um convite ao simples leitor, para que imagine qual possa ser o sentido ou trama da história que se lhe apresenta. É a este segundo tipo de leitor que convirá o epíteto de “pobre”, a cuja mesa a filosofia se serve. A subentendida metáfora do manjar ou da degustação – e repare-se que aqui não se fala de banquete, imagem mais apropriada para os iniciados na filosofia, mas de «mesa do pobre» – imediatamente nos coloca na conta de que estes contos, na mestria do seu lavor, são como que um alimento que tanto se pode pôr à disposição do vulgo como, sobretudo, dispensar aos alunos dele necessitados para sua instrução. Porque pelo sabor se pode aquilatar do caminho a percorrer ou que para o saber converge. O que acaba de dizer-se pode ter alguma relação com esta sibilina afirmação do filósofo de “Escritores Doutrinados”: «O dar às obras de arte como títulos, e não como subtítulos que designem o género literário, as palavras contos ou histórias é já uma indicação». Os contos seriam, portanto, uma forma discreta mas eficaz de mapear rotas; de pontuar e apontar caminhos para solver os enigmas de quem se depara com a perplexidade das encruzilhadas, de cruzes silhadas ou tão-só de seladas ciladas.

Não se estranhe por isso que, com este mesmo objectivo, um livro chamado de “Contos” tanto possa conter histórias, que propiciam a evasão, como memórias mais ou menos ficcionadas, como é o caso dessa que se apresenta sob o título de “Trabalho de Grupo”, ou ainda momentos de suspensão e de advertência, como aquela apresentação que surge a páginas 81-82, antecedendo o conto “A Dama de Ouros” e onde se podem ler estas palavras significativas: «Na profundidade de cada um de nós, que é a profundidade de todo o desconhecido, há uma Dama de Ouros. Ela é também aquilo que, em cada um dos restantes contos, se procura. Daqui o poder ter chamado a este livro A Dama de Ouros, se não houvesse os outros a protestar».  Pergunta-se: quem ou o quê são os que protestam? Os outros indivíduos, pessoas, amigos, ou os outros contos, se tal fosse possível, porque, cientes da singularidade ou da unidade do seu núcleo expressivo, não veriam de que modo poderiam subordinar-se a um título de apenas um deles, por mais que o autor diga o que diga.

Como julgo já ter referido o que me interessava assinalar a propósito dos “Contos” de António Telmo, e não me assistindo particulares qualificações exegéticas ou interpretativas, não irei entrar pela análise dos mesmos, o que seria errático e fastidioso. Prefiro deixar ao cuidado de cada leitor o escrutínio dos títulos e ver por si como cada um deles se adequa plenamente ao conteúdo das histórias narradas, bem como a eventual relação que estas poderão ter com a “bordadura” das doze gravuras do Zodíaco que as encimam ou ainda ao exame da disposição geral dos contos.

Para pôr fim a este meu excurso, um pouco a voo de pássaro, pela obra, não quero deixar de referir que aos acima mencionados doze contos inéditos, entendeu o autor agremiar uma outra obra anterior, “O Bateleur”, que se vê assim reeditada em diferente contexto, também ele como que uma história, mas desta vez em nove pontos ou capítulos ordenada; terminarei todavia citando um excerto do conto “O Trevo” que bem pode ser considerado a vários títulos exemplar da qualidade intrínseca e da beleza que anima estes contos de fio a pavio. É que esta colecta de histórias-ensinamento, como as da “Mil e uma Noites” ou as histórias da tradição sufi, são mais um dos odoríferos frutos da casta soberba de uma prosa que dir-se-ia tocada pelos fulgores de aurora da Língua, colheita essa que sem exageros e poderia qualificar de paradisíaca, e a que António Telmo, escritor doutrinado, desde sempre habituou os seus fiéis leitores.

«Em dado momento (que momento!) suspendeu a leitura e deixou cair o olhar sobre um tufo de trevos que crescia à volta de uma roseira. Meio alheado do que lera, passou-lhe pelo espírito uma cena de infância. Ia com os outros rapazes para o campo à procura de um trevo de quatro folhas. Tinham-lhe dito que tinha o Dom de dar a quem o encontrasse a perfeita felicidade. Crianças que eram, embora não sabendo ainda o que é a infelicidade, acreditavam, sem a menor dúvida, no poder de tal planta. Procuravam-na, porém, não porque desse a suprema felicidade, mas obedecendo àquele instinto da alma pelo qual ela sente que no excepcional reside o segredo da vida.

De súbito, não soube se estava a ver bem. Tinha diante dos olhos um trevo de quatro folhas. Levantou-se da cadeira e aproximou-se da roseira. Não havia dúvida. Um pouco acima dos outros, estava ali, como que por milagre e sem que tivesse sido deliberadamente procurado, um belo trevo de quatro folhas. Murmurou para si: “Meu Deus, o símbolo da Tétrada e logo no meu quintal!» (cf. pg. 56-57).

 

____________

*Publicado em António Telmo e as Gerações Novas, Lisboa, Hugin, 2003, pp. 155-161.

Nota: Excepto as citações dos “Contos” de António Telmo feitas neste texto, as referências a Álvaro Ribeiro são extraídas de duas das suas obras, a saber: A Razão Animada (1957) e Escritores Doutrinados (1965).

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