Blogue

DOS LIVROS. 22

03-11-2014 13:15

«O salazarismo constitui uma falsa vivência dos valores patrióticos, um socialismo positivista e plutocrata, uma paródia mnésica que encobriu sistematicamente o que de profundamente sério motivou as quedas e as asceses da evolução histórica do nosso povo.» 

Da "Introdução" à História Secreta de Portugal

 

Os livros começam a ler-se pelas primeiras páginas e muitas vezes o leitor fica por aí. Pensamos que, neste caso, não ficaria inutilmente, se conseguisse interpretar todo o sentido do horóscopo de Portugal, traçado pelo próprio punho do grande poeta. Pela nossa parte, temos reflectido tanto sobre o facto estranho de não se encontrar nele nenhuma data para além de 1978, que, dessa reflexão, saiu este livro.

Se 1978 é a última data assinalada, significará o termo da vida da Pátria ou aponta somente o fim de um ciclo astrológico, donde Portugal sairá para novos destinos?

É esta, à luz do horóscopo, a grande incógnita histórica do momento. Por outros caminhos, aparentemente menos quiméricos, poderá chegar-se a defrontar o mesmo dilema. Não se esqueça, porém, o leitor que estamos em 1977 e, considerando as grandes transformações do ser de Portugal nos últimos três anos, não deixe de ter em conta que o horóscopo foi traçado há quarenta anos por aquele homem excessivamente lúcido, que, então, disse:

 

“Cumpriu-se o mar e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!”

 

Disse-o como se estivesse depois da queda do Império. Em 1930, ainda o Império se não tinha desfeito.

1978 não está ali somente como a última data assinalada. Regista-se também no horóscopo que, no dia 1 de Janeiro de 1978, Osíris (é como Pessoa designa o Sol) transitará da quarta casa para a quinta casa, depois de ter permanecido na primeira durante cento e um anos[1]. O que significa isto?

É a quarta casa o lugar dos antepassados, a morada subterrânea dos heróis, o Inferno do horóscopo, na designação comum dos astrólogos.

Se assim é, a entrada de Osíris nessa casa em 1877 e a sua permanência ali durante um século e um ano não podem senão significar a descida aos infernos de Portugal. Com efeito, estes cento e um anos marcam um período de extrema decomposição da Pátria, depois da morte prematura de D. Pedro V, em quem o povo, pressentindo a descida e a queda, pôs ainda o sinal da sua esperança. De então para cá, assistimos à mais pura manifestação da mediocridade política nos três últimos Braganças, a essa terrível desilusão que foi a República, obra do positivismo que tinha fatalmente de produzir Salazar e o que ele representou, que nos educou durante 48 anos e deu a geração do 25 de Abril e a sua política de cozinha, sob o nome pomposo de economia.

Afinal, a significação do horóscopo e da Mensagem é a mesma. Dir-se-á que não é a sua base astrológica e geomântica. Todavia, o poema não anuncia, como apressadamente se julga, a glória futura dos portugueses pela vinda do Rei-Messias. Toda a terceira parte da Mensagem é uma invocação e uma prece.

Não podia ser de outro modo. De uma descida aos infernos nunca há a certeza de voltar. Mas o terrível é que, sem essa descida, também não há a possibilidade de prosseguir. Este é um dos grandes sentidos da Mensagem e daí a exortação maçónica final: “Valete, Frates”.

É evidente que nada disto terá realidade à luz da história profana de Portugal, de uma história que, até essa, foi ultimamente banida do ensino. Necessita, para ser, do conhecimento da história fundamental. O salazarismo constitui uma falsa vivência dos valores patrióticos, um socialismo positivista e plutocrata, uma paródia mnésica que encobriu sistematicamente o que de profundamente sério motivou as quedas e as asceses da evolução histórica do nosso povo. Foi fácil a outros adversários de Portugal desmascarar com dois ou três slogans a relação entre o culto dos heróis e os interesses do regime, depois de terem sido chamados pelo mesmo Salazar e seu sucessor Caetano a ensinar nas nossas universidades que tudo na história se deve explicar pela economia e pela luta de classes. Ninguém vai supor que os dois chefes políticos, admiradores de Augusto Comte e de António Sérgio, se tenham enganado ao admitir no ensino e nos lugares dominantes da cultura a colaboração de todos aqueles que consideravam a economia a primeira das ciências.

Do ponto de vista positivista, o culto dos valores pátrios é uma forma persistente de sentimentalismo, cuja existência se reduz ou se estimula consoante os interesses políticos do momento. Sabe-se como o positivismo, do qual Teófilo Braga era o primeiro-ministro, se serviu desses valores, consagrando e celebrando certas efemérides para destruir a influência da Igreja que, pelos feriados e pelas festas, semanais ou solenes, dominava o horizonte ritual dos portugueses. A República, porém, não teria sido possível sem a difusão da doutrina positivista no mundo eclesiástico[2]. O reatamento das relações do Estado com a Igreja não alterou, apenas modificou, a vida mental dos portugueses. O culto a Camões e o culto a Santa Teresa do Menino Jesus[3] tinham exactamente o mesmo conteúdo sentimental. No fundo, a verdade era a economia, os grandes interesses financeiros, a aplicação da tecnologia ao domínio da natureza, a ordem social. Nestes termos, quando o regime muda, a revolução não pode ter outro efeito senão deixar tudo na mesma quanto ao essencial. Fala-se ainda em Pátria, mas ninguém já sabe o que ela é. Do ponto de vista economista, significa um grupo, que se foi progressivamente alargando até constituir uma nação, lutando contra a natureza e as outras nações, falando a mesma língua por imposição do mesmo interesse, que é o da subsistência animal. Esse grupo deu-se um sinal – a bandeira – e um domínio – o território. Mas até o território, a bandeira e a língua deixaram de ter razão de ser, logo que a economia descobre que, além de lutar contra as outras nações e contra a natureza, esse grupo está dividido em si mesmo por interesses de classe e que a obediência a chefes naturais, necessária quando era um pequeno grupo, também já não tem razão de ser e deve ser substituída pela obediência ao estrangeiro.

Sobre o raciocínio simples e falsamente evidente de que, se há uma classe que explora outra classe, esta é só uma em todos os países (idêntica em si como o uno de Platão), a ideia de terra natural deixou de ter qualquer sentido. Assim, de Teófilo Braga para Salazar e de Salazar, através de Caetano, para Vasco Gonçalves não houve oposição, mas o desenvolvimento da mesma ideia ou uma diferente aplicação das mesmas categorias mentais. E é por isso mesmo que o ensino da história, de regime socialista para regime socialista, se mantém dentro das mesmas directrizes programáticas[4].

 

António Telmo

 

 

(Publicado em História Secreta de Portugal, 1977)

 


[1] Se, no Horóscopo de Portugal, o sol sai da quarta casa em 1978, a verdade é que, do ponto de vista astrológico, isso não significa uma mutação no espírito que o rege. Essa mutação dar-se-á, sempre segundo o horóscopo, numa data situável entre 1980 e 1990, quando o sol transitar do signo da Balança, em que continuará ainda alguns anos depois da saída da quarta casa, para o signo do Escorpião, regido por Saturno.

[2]  Álvaro Ribeiro, Os Positivistas, Lisboa, 1969.

[3] Fernando Pessoa observava, referindo-se a este culto, que Santa Teresinha do Menino Jesus estava para os seus devotos um pouco acima de Deus.

[4] Ivan Illich, em Sociedade sem Escola, aponta o facto estranho de, em todo o mundo civilizado, o ensino ser o mesmo, qualquer que seja o regime político.

 

«OS MEUS PREFÁCIOS». 08

02-11-2014 14:19

Pelo menos na ordem do simbólico, conforme o desejo do poeta, 2 de Novembro, data votada à Saudade, é o dia do seu nascimento, que parece ter realmente ocorrido a 8 desse mesmo mês, no ano de 1877, em Amarante, na freguesia de São Gonçalo, numa casa da então Rua de São Pedro. António Telmo prefaciou, em 2002, o volume 21 das Obras de Teixeira de Pascoaes, publicadas pela editora Assírio & Alvim. Reunindo os títulos Londres. Cantos Indecisos. Cânticos, o livro tem edição de António Cândido Franco. É a Introdução télmica que agora oferecemos ao leitor, num dia que é de Pascoaes, e no rescaldo do Congresso "As Biografias no Pensamento Português dos Séculos XIX-XX, por ocasião dos 80 anos da publicação de São Paulo", iniciativa do CLEPUL de que o Projecto António Telmo. Vida e Obra foi parceiro.           

 

INTRODUÇÃO A LONDRES. CANTOS INDECISOS. CÂNTICOS, DE TEIXIERA DE PASCOAES[1]

 

Portugal e o seu arquétipo, tal como nos é possível concebê-lo através do que na sua situação geográfica é símbolo num espelho e também da sua história no que ela tem de secreta ou de fantástica, mas sobretudo através da língua onde os fonemas formam o arco que lança a flecha do sentido, é o que essencialmente conspira na poesia de Pascoaes para abater o espírito que nega.

Neste volume da Assírio & Alvim, aparece um longo poema sobre Londres, onde nos surpreende, por contraste com o espírito crepuscular ou outonal de Pascoaes, uma toada que lembra a de Cesário Verde, mais poeta da cidade do que do Ocidente (como queria Pessoa), pois só conhece o campo quando a ele vai em piquenique ou ao fim-de-semana acompanhado de uma mulher. Pascoaes visitou Londres e aí pernoitou durante vários dias por causa de uma jovem inglesa que conheceu no Porto e por quem se apaixonou como se ela fosse a aparição da sua mesma alma. Chamava-se Leonor Dogge ou Dagge, tenho visto o nome escrito das duas maneiras. Dogge lembra a marca de um automóvel hoje fora do mercado. Mas Leonor, pelo som e pela etimologia hebraica, é como um sol outonal todo oiro num ar quase líquido. Todas as jovens mulheres que o poeta amou chamavam-se Leonor e, como as de Camões que também amou uma Leonor ou como a Beatriz de Dante, eram luz pelo sorriso, sol pelos cabelos, céu diurno ou nocturno pelos olhos, humanas rosas. Henri Corbin fala-nos de uma cognitio matutina que é como o levantar da aurora perante o nosso espírito. Pode-se reconhecê-la nas canções camoneanas, mas em Pascoaes deve sim falar-se de uma cognitio vespertina com a estrela do terceiro céu a lucilar ao pôr do dia. Entre nós, o Sol não se sepulta no horizonte, mas casa-se com a terra porque se põe nela. O pôr do Sol também neste caso é um morrer. Os gregos viam-no afundar-se na noite que confundiam com o Oceano, a Ocidente para lá das colunas de Hércules, limite do mundo conhecido. Nas longínquas paragens para lá de onde acabava o mar mediterrâneo era a terra dos mortos, a entrada do tenebroso Hades, mas também o lugar das ilhas bem-aventuradas somente acessíveis aos heróis.

Sem a Ilha do Amor, que Camões imaginou mas Vénus realmente criou, os Descobrimentos teriam de ser interpretados como uma calamidade que se abateu sobre o mundo dos homens. Com os descobrimentos marítimos dos portugueses se inicia a fase final da Idade do Ferro, caracterizada por nela se fazer a Grande Mistura do Oriente e do Ocidente, dos povos e das raças, das especiarias e das espécies. Abre-se então o caminho a uma mutação radical na maneira de raciocinar, mutação que Francisco Bacon qualificou de Instauratio Magma, tendo para a nova ciência escolhido o seguinte emblema: uma caravela com todas as velas pandas passando as Colunas de Hércules à conquista do Novo Mundo. Jean Robin, a quem se devem estas indicações, não menciona os descobrimentos marítimos dos portugueses por de certo ignorar o mito da fundação de Lisboa por Ulisses. Para a interpretação deste mito, esse «nada que é tudo», tem grande interesse aquilo que nos diz em Le Royaume du Graal depois de ter mencionado Francisco Bacon: «René Guénon tem, a propósito das Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), curiosíssimas reflexões, sublinhando que elas «marcam os limites do mundo conhecido», isto é, que constituem a fronteira que, por razões que seria importante procurar, não podia ser ultrapassada pelos navegadores».

«Segundo Dante – continua Jean Robin –, Ulisses é condenado porque passou esta passagem estreita onde Hércules pôs os seus sinais». Para Guénon, tal como o confidenciou a Denis Roban, a menção das Colunas de Hércules por Dante «parece certamente indicar que Ulisses seguiu uma via ilegítima e, se bem que aviste de longe a montanha do Purgatório, não pôde chegar lá, nem muito menos atingir o Paraíso Terrestre que se encontra no cimo dessa montanha».

As navegações dos portugueses, tendo como ponto de partida Lisboa, como que prolongam ainda mais além dos limites do mundo conhecido as navegações de Ulisses. O Velho do Restelo não é o que se tem julgado até agora. Ele condena, como Dante Ulisses, aqueles que, imitando Prometeu ou Ícaro, seguem uma via ilegítima. Releia o leitor as três últimas estrofes do Canto IV d’Os Lusíadas.            

A ideia de que o fim do ciclo se concretiza com os descobrimentos marítimos dos portugueses conjuga-se com uma muito antiga profecia, segundo a qual o termo desta humanidade seria um dia assinalado pelo afundamento da Ursa Maior e da Ursa Menor no oceano. Com efeito, tal afundamento deu-se com a passagem das naus pelo Equador. Foi também, todavia, nesse momento que se tornaram visíveis no céu as quatro estrelas do Cruzeiro do Sul. Como se explica que Dante soubesse dessas quatro estrelas duzentos anos antes de serem avistadas pelos portugueses? Veja-se o que escreve à saída do Inferno: «Uma suave cor de safira no Oriente, manifestando-se no aspecto sereno do céu puro até ao primeiro círculo, começava a deslumbrar meus olhos logo que saí da atmosfera morta que tanto afligira o meu olhar e o meu coração. O belo planeta que incita ao amor fazia sorrir todo o Oriente, velando os Peixes que o escoltavam. Voltei-me para o lado direito e fixei o meu olhar atento no outro pólo e vi quatro estrelas que nunca ninguém antes vira, excepto os primeiros homens. O céu parecia alegrar-se com a sua irradiação. Ó região do Norte, pobre viúva, que estás privada de as contemplar!»

Uma vez cumprido com os Descobrimentos o que quer que foi de terrível, nas palavras do Velho do Restelo de simultaneamente «alto e nefando», Portugal morre em Alcácer-Quibir e volve-se no Encoberto. Ao descobrimento seguiu-se o encobrimento. Por isso Pascoaes ama, no dia, a hora do Sol-pôr, no ano o Outono, a saudade na alma humana.

Portugal não deixou mais de ser o Encoberto. O que por aí se vê há quinhentos anos não é Portugal, mas a casca do que foi, o que encobre degradando, «uma apagada e vil tristeza» semelhante à que Pascoaes viu emanar de Londres na forma de fumo e nevoeiro. Mas a tristeza londrina não é a que ele vive em Amarante, nas margens do Tâmega, em São João de Gatão. Junto ao Tâmega, é a tristeza própria do puro anoitecer. Os Cantos Indecisos são indecisos porque neles o espírito não se decide nem pela noite nem pelo dia.

Teixeira de Pascoaes é o poeta do Novo Testamento da Pátria como Camões é o poeta do seu Velho Testamento. É, no fim do ciclo, quando o vasto dia do mundo se faz noite, o poeta português por excelência. Ele é que é «o do sentimento dum ocidental». Ouçamos Luís de Camões:

 

Eis aqui quase cume da cabeça

Da Europa todo o reino lusitano

Onde a terra se acaba e o mar começa.

 

Este acabar-se e este começar são, por assim dizer, eternos, no sentido de que sempre se está acabando a terra e sempre começando o mar. Não é, pois, que acabe a terra para que só fique o mar, como se tudo se dissolvesse no absoluto. O acento ali, naqueles três versos cruciais (como diria José Marinho, o filósofo do «insubstancial substante»), é posto em Portugal como mediação e o que caracteriza rigorosamente a «mediação» é ser ela o terceiro termo da uma tríade, terceiro que é o primeiro e o segundo e que não é nenhum deles. Assim como em Hegel que Fernando Pessoa, aos vinte e quatro anos, aproxima de Pascoaes pelo transcendentalismo panteísta com o seu movimento de espiritualização da matéria e de materialização do espírito.

Ibn Arabî deu-nos o melhor ensino do que seja propriamente a mediação pelo exemplo da linha que cinde e ao mesmo tempo une a sombra e a luz, quando no solo consideramos a projecção de um corpo exposto ao Sol. Sabemos que essa linha existe por um prestígio da imaginação, mas não sabemos se é a sombra que a traça ou se, pelo contrário, é a luz. Ela vai-se indefinindo à medida que o Sol declina até que a noite tudo absorva ou à medida que o Sol se eleva tudo dissolvendo no seu esplendor. Em Pascoaes, vemos Portugal caracterizado como «o país da penumbra», o «país crepuscular», cuja verdadeira natureza somente se surpreende no lento encobrir-se da luz que perdura na imaginação eternamente.

Voltemos a Londres.

Teixeira de Pascoaes veio dali doente, decepcionado com a inglesa, que a todas as manifestações de amor só sabia ou queria dizer: I don’t know, I don’t know. Uma alma vazia como a sua casa com que deparou ao chegar, duas janelas que eram dois olhos ocos.

Chegado a Portugal, mudou de vida. Deixou a advocacia e desistiu de casar. Seria para sempre solteiro como solteiros ficaram sempre outros dois imensos poetas, José Régio e Fernando Pessoa, que formam com ele a tripeça bandárrica onde vêm interrogar o demónio de Portugal todos os que se afastaram da mentalidade inferiorizante. Abandonou de todo a ideia de ser um homem prático. Meteu-se dentro de casa, no seu solar de São João de Gatão, donde só saía para sentir a natureza ou para vir ao Porto tratar dos negócios do espírito. A sua casa tinha nas janelas sentidos para o mistério do exterior; uma delas era como o olho de Shiva. A lama de Pascoaes continua lá.

Aquela viagem a Londres faz lembrar a de Dostoiévski. É num dos seus livros que encontramos a associação da cidade ao deus Baal, o Belzebu do cristianismo, o babilónico deus inimigo do deus de Abraão, que é o nosso deus. Ernst Jünger, referindo-se à experiência londrina do escritor russo, faz várias considerações que se poderiam aplicar aos versos londrinos do escritor português. Assim, por exemplo: «Dostoiévski apercebeu-se de que era Baal quem dominava nos bastidores da espectacularidade londrina, na margem do Tamisa; Baal que o apavorava e fascinava ao mesmo tempo…»

O Tamisa e o Tâmega! Que semelhança e que diferença! Talvez para agradar ao que julgo ter sido seu amigo, Aubrey Bell, um inglês que conviveu em Portugal e a quem dedica o poema, o nosso poeta, após ter descrito Londres e a sua tristeza infernal, termina inesperadamente pela sua exaltação. Mas já não é a cidade fantástica e tenebrosa que tem em mente. É o que ela evoca: Shakespeare e Byron, o rei Artur e o seu sonho da Ilha de Oiro e das Terras do Nascente; é, diz ele, a mesma «tristeza em Deus»; é a inevitável aproximação entre Byron e Camões pelo mar que em ambos ecoa, entre o rei Artur e D. Sebastião; e tudo envolto no mesmo nevoeiro. O Tâmega e o Tamisa! Uma metade igual, uma metade diferente! Quão perto e quão longe!

Não. Pascoaes engana-se e engana-nos. Não é a mesma tristeza e o mesmo nevoeiro. Em Londres há tudo o que o deus Baal traz consigo e o nevoeiro é a sua respiração feita de vapor, de ruído, de vício, de fumo e de uma dor imensa.   

A tristeza do Tâmega é a dos Cantos Indecisos, não a tristeza sórdida do Inferno, mas a de um mundo que sofre por haver nele Deus longe de Deus.

 

Numa gramática que em tempos escrevi para uso dos poetas e a que chamei Gramática Secreta da Língua Portuguesa, pondo no secreta a ideia de que a não destinava ao uso dos linguistas, mostrei a dada altura, uma altura a que cheguei interrogando e reflectindo e procurando saltar acima dos próprios joelhos, que é em ginástica o acto supremamente poético, mostrei, dizia eu, que a nossa língua tem como característica dominante o outonal dos fonemas e que, por isso, Teixeira de Pascoaes é o poeta supremamente representativo do génio divino que a formou por acção subtil na alma do povo das radiações que transformaram a matéria original latina. O «outonal dos fonemas» é uma expressão bárbara, mas explica-se quando nos lembramos de que o Outono é o entardecer do ano, como que o seu crepúsculo e que podem incluir-se nessa designação os fonemas que condensam luz e treva, yang e yin, numa só emissão de voz. Tais são as vogais fechadas de medo e remoto, a imensa variedade de ditongos e, sobretudo, as sílabas que terminam por m, n, l, e r como por exemplo nas palavras luar, oculto, ermo e sombra. Na língua portuguesa não há palavra terminada por consoante. Os linguistas consideram os indicados m, n, l e r semiconsoantes uns, semivogais outros.

Os exemplos apresentados são precisamente das palavras que Teixeira de Pascoaes escolheu para mostrar a natureza intraduzível de numerosas palavras portuguesas, onde naturalmente se destaca a palavra saudade. Mas em saudade o que é essencial não é só o ditongo da primeira sílaba com sua correspondência num sentimento outonal, é também a repetição do som d com sua correspondência num desejo que é lembrança e numa lembrança que é desejo. O que é a memória? Não é o ser e o seu espelhar-se na mesma alma? Também na palavra memória se evidencia um redobro. Aliás, o eco ou a ressonância aparecem noutras línguas a significar o acto de lembrar, como no grego por exemplo, donde nos vêm anamnese e reminiscência.          

As pessoas, quando conversam umas com as outras, não têm qualquer consciência das frases que proferem, só têm consciência de vagas intenções. Muito menos a têm das palavras e dos fonemas. Falam sem se lembrarem de si próprias falando. Se o tentassem fazer, ficariam bloqueadas. O filósofo (não o filósofo-poeta), que lida com conceitos e juízos, sabe porque emprega determinadas palavras e não outras e como as combina; mas o poeta, se o filósofo é também poeta enquanto filosofa, tem consciência igualmente dos fonemas, torna-os significativos, carregados de intenções mágicas, de energias supra-sensíveis. Assim em Pascoaes soberanamente. A tal ponto que é possível deduzir dos fonemas que escolhe toda a sua poesia, todo o seu pensamento, no que têm de genuíno e de universal, ao modo como Cuvier, a partir de um osso, era capaz de reconstituir todo o animal e Goethe toda uma catedral a partir de uma janela.

Os linguistas, submissos como são a Saussure e à escola francesa, não aceitam a correspondência entre as sequências sonoras e os significados como uma relação necessária, argumentando com a estatística, que não confirma essa relação. Avaliam qualidades pela quantidade. Claro que só para o poeta iluminado os fonemas são qualidades, como qualidades foram no momento intemporal da criação da língua pelo povo. Mas o povo não é o homem comum, a plebe. É o homem excepcional como totalidade.

Em Cantos Indecisos não há palavras em que se quebre a sequência dos sons outonais. E as imagens que transportam, pela metáfora, sentimentos e ideias em transfigurações pertencem a um mundo que morre para ressuscitar do outro lado da alma.

Fernando Pessoa, numa evidente alusão a Pascoaes, disse um dia haver poetas que, tendo uma vez escrito um poema excepcional e em tudo admirável (pensava, talvez, na Elegia do Amor), depois o repetem, mais ou menos modificado, em todos os poemas que vêm a escrever. Não é bem assim. Aliás, os três livros que compõem este volume destacam-se uns dos outros pelo conteúdo e pela forma. Mas é verdade que há nos versos de Pascoaes uma monotonia, se nisso pensarmos lembrando o suceder-se das ondas do mar, que pode adormecer ou enfadar quem não for capaz de viver em experiência, ou em sugestão dela, o que nelas se envolve e se desenvolve. As vivências de Pascoaes são de uma rara profundidade. Podemos suspeitar da sua veracidade como quando escreve por exemplo: «E ponho-me a gritar cingido de relâmpagos!»

Mas a inveracidade deste verso precisamente é contestada pela lenda que corre há muito entre a gente humilde de Amarante. Teixeira de Pascoaes, afirmam, subia ao alto da montanha; era um Moisés levantando os braços aos céus; e punha-se a gritar clamando pelos relâmpagos. Formava-se uma trovoada e ele aparecia envolvido em chamas.

Claro que o homem moderno já não se espanta com estas coisas. A tecnologia faz muito melhor. Todavia, mesmo que pudéssemos por momentos supor que o poeta fizesse o que dele se conta, que na realidade fosse um manipulador de energias cósmicas, o que valerá isso ao pé da palavra que ilumina a alma? Sim, o que é uma experiência real, ou o que é que tem de realidade uma experiência sem que a palavra a faça viver para o espírito e para a vida mental do homem. Estamos cansados de místicos, de ocultistas e de esotéricos que não sabem o que é a relação de um substantivo como um verbo. Uns são substancialistas: só há energia que é matéria; outros são insubstancialistas: só há energia que é espírito. O Espírito Santo é, como ensinou José Marinho, o Insubstancial substante.

 

O terceiro livro deste volume é composto por vinte e dois cânticos, tantos como as letras do alfabeto hebraico ou como as lâminas do arcano maior do Tarot. Claro que o autor dos Cânticos não deve ter pensado minimamente nisso. A relação pitagórica da matemática com a poesia só se aplica em raros casos. Como mostrou Guénon, é o caso de A Divina Comédia, concebida como foi por Dante na forma ascendente de uma catedral edificada sobre o Inferno e suspensa dos Céus. É também o caso da Mensagem. Como o mistério do número nove está intimamente associado ao mistério do amor pode dar que pensar o facto de a Ilha de Vénus aparecer no Canto Nono d’Os Lusíadas, ser todo esse canto e o seguinte. Mas não devemos abusar destas relações, pois corremos o risco de cair em plena fantasia, sem qualquer proveito para a inteligência do que estudamos.

De qualquer modo, estamos aqui nos Cânticos perante vinte e duas meditações tão essências para o conhecimento do mistério de Deus no homem e na natureza quanto são essenciais para o conhecimento da natureza e do homem no mistério de Deus as vinte e duas letras do alfabeto hebraico. Cada cântico tem seu nome que o singulariza, com excepção do primeiro e do último que recebem o nome geral de cantos. Por isso, propriamente só há vinte cânticos. Com o primeiro poema ou canto fecha-se a porta do passado, ouve-se ela bater para cá da noite e dos seus fantasmas; o último é uma porta que se abre para uma vida nova no mundo do espírito, novo estádio da alma que deve resultar da vivência em profundidade do que é posto a ser nos vinte cânticos.                     

Estamos já não muito longe dos livros em prosa. Conservou-se o ritmo, mas desapareceu a rima. A reflexão tomou conta do verso. O poeta-filósofo começa a dar lugar ao filósofo-poeta. Há cânticos que são mais filosofemas que poemas.

 

Os valiosos estudos da obra de Pascoaes que até agora têm vindo a ser feitos por pensadores da tradição portuguesa, os estudos de um Afonso Botelho, de um António Cândido Franco, de um Manuel Patrício, de um Paulo Borges ou de um Pedro Sinde, se obedeceram à preocupação de situar essa obra no quadro da nossa filosofia, nem sempre o fizeram de acordo com o conceito de filosofia portuguesa, e de tudo o que nela se implica, tal como foi formulado por Álvaro Ribeiro, o mestre entre nós dos que sabem. Com efeito, para o pensador da razão animada a filosofia é uma forma de literatura e depende por isso da inspiração individual. A inspiração individual, todavia, tem como condição o exercício da crença metódica e não da dúvida metódica que fatalmente reduz a filosofia à matemática e à mecânica. Se há método, há escola. Álvaro Ribeiro afirma, em dado momento, que não há uma, mas duas escolas de filosofia portuguesa. Não diz por meio de que pensadores se faz a divisão, mas não estará errado supor que estaria pensando em Sampaio Bruno e em Leonardo Coimbra. Eu vejo, quando evoco estes dois espíritos, a Igreja de João e a Igreja de Pedro perfilando-se no horizonte destacadas uma da outra, mas iluminadas pelo mesmo sol.

Pascoaes era amigo de Leonardo e forma ambos fundadores do movimento da Renascença Portuguesa. A revista, que lançou o movimento pela palavra escrita, recebeu o nome de Águia, a ave joanina. Leonardo Coimbra via no Regresso ao Paraíso (como Pessoa na Elegia do Amor) a suprema expressão poética da alma portuguesa, mas mais tarde, numa contundente depreciação do São Paulo, escreveu palavras de indignação contra o que lhe parecia um revoltante antipaulinismo de feição maniqueia.

A corrente de religiosidade portuguesa onde Pascoaes pôs a navegar o seu barco tem a remota origem em Prisciliano, mas foi com Sampaio Bruno que se revestiu de forma filosófica.

Deixei atrás, olhando o Tamisa e o Tâmega, a ideia de ser a tristeza, tal como a sente Pascoaes nas coisas e nos entes, a de um mundo que sofre por haver nele Deus longe de Deus. Toda a filosofia de Bruno e toda a poesia de Pascoaes podem sair daqui. Não é este o momento de o fazer, porque chegamos ao termo desta introdução. Direi, todavia, ainda o seguinte: são vários os exercícios possíveis de imaginação saudosa, aquela imaginação que ajuda a evolução da natureza pelo homem, mas o ponto de partida é sempre o mesmo: lembrar-se cada um de si próprio como de Deus que sofre por não ser Deus. Este ponto de partida só se encontra por uma demorada aprendizagem, não obstante ser um dado imediato da consciência.

                                                                                                                                                 

[Maio de 2002]        

 

António Telmo

 


[1] Teixeira de Pascoaes, Londres. Cantos Indecisos. Cânticos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, pp. 7-19. 

 

INÉDITOS. 32

27-10-2014 09:52

Da saudade[1]

 

Como o espanto é para gregos (Platão, Aristóteles) o princípio da filosofia, o princípio da filosofia é para os portugueses a saudade. Mas a saudade implica espanto, o espanto de cada um se saber na sua essência mais íntima a substância amada e longínqua. Esta relação produz-se aparentemente através de uma imagem, e de alguém que amamos e que o tempo separou de nós. Na verdade, é de mim que me lembro com saudade, do que em mim é essencial que a separação daquele alguém revelou subitamente impossível de alcançar, e, no entanto, sentido como enigmaticamente próprio.

A separação que gera a saudade é um momento central de toda a nossa poesia lírica. “A alma gentil que te partiste tão cedo desta vida descontente” é a alma de Camões e não, como se julga correntemente, uma mulher que a morte levou. E é também essa mulher podendo funcionar como a imagem que desencadeia o sentimento. Teixeira de Pascoaes com a Elegia do Amor continua, desenvolve e aperfeiçoa o que está apenas indicado em Camões. Aqui, porém, a separação pela morte torna sensível em todas as coisas a presença da substância lembrada. Presença que nos reconduz a Camões pela “verdade que nas coisas anda, que mora no visível e no invisível”.

Não se entende como Sampaio Bruno tenha podido ver nascer em si a ideia de tempo puro, actualmente perdido, sem a saudade. Não chega a realidade do mal para levantar o pensamento d’A Ideia de Deus.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 31

24-10-2014 10:54

aDeus*

 

Na visita que fiz pela primeira vez à casa de Teixeira de Pascoaes, vi que a última palavra que o poeta escreveu foi a palavra aDeus, assim com o D maiúsculo. A família não tocara em nada no interior dos aposentos que, no grande solar, eram exclusivamente dele. Sobre a sua mesa de trabalho, a sua mesa de arte, conservava-se, amarelecido pelos anos, o papel com as últimas linhas que escreveu.

Soube que as últimas palavras por ele proferidas foram “até amanhã”. Nesta expressão, o primeiro a é aberto e não fechado. “Até amanhã”, isto é “até à manhã”. Fazendo reflectirem-se uma na outra a última palavra escrita e a última palavra falada, não deve ser errado presumir que Teixeira de Pascoaes, ao dizer esta, terá de facto pensado: até ao nascer de um novo Sol que é Deus.

 

António Telmo

____________

* Título da responsabilidade do editor.

VOZ PASSIVA. 35

23-10-2014 09:46

«Somente desembarcando na Ilha somos forçados a reconhecê-la como realidade»

(Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, de António Telmo)

Eduardo Aroso

 

Desembarca para saberes

Que a terra é terra

E entre ela

E para além

O céu é céu.

 

Chegar, seja em que tempo for

No oceano ou no ápice do ar,

Para saberes que existe Ilha

Ou o que seja ela toda,

A Terra florida e armilar.

 

Desembarca e chega

Para conheceres

O que é haver onde a alma for

Para tocares a árvore da vida:

Folhas, raízes do chão;

Raízes, frutos de amor.

 

Desembarca para corrigir

O reflexo da realidade,

Separando o chumbo do tempo

Que há entre esquecimento e saudade.

 

(Santa Clara-a-Velha, 21-10-2014)

INÉDITOS. 30

22-10-2014 13:07


Genealogia de Pascoaes[1]

 

A genealogia de Teixeira de Pascoaes é como se segue:

O Canto da Pérola dos Actos de Tomé gerou Prisciliano, este gerou Dinis e Isabel e as festas do Espírito Santo, Dinis e Isabel geraram Luís de Camões e a sua Ilha, Luís de Camões gerou Sampaio Bruno e os Cavaleiros do Amor. Teixeira de Pascoaes é um deles. Dizia que, no seu tempo, só havia em Portugal doze homens superiores. Dizia também que os restantes portugueses eram divinamente estúpidos. Os sergistas, entre os quais Salazar, tiraram o divinamente: ficou só o estúpido. Assim o afirmou o poeta, sem referir Salazar a quem não ligava, e assim aumentou de cinco para doze o número dos eleitos.

José Marinho era bem mais generoso. Calculava uns quinhentos. Com este número, temos mais probabilidades de sermos um deles. 

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

INÉDITOS. 29

19-10-2014 16:52

Teixeira de Pascoaes[1]

 

Quando eu era moço, pelos meus vinte anos, enviei a Pascoaes um soneto que tinha como tema a magia poética da Lua Cheia, da Lua Plena, sem quebra ou defeito, e digo assim pois acreditava que nos meus doze versos ela estava presente exactamente assim e que, por isso, o Príncipe dos Poetas Lunáticos não deixaria de reconhecer um igual. Não obtive resposta. Envergonhado, não contei nada aos amigos.

Andávamos todos então pelos arredores da filosofia portuguesa. Líamos o Teixeira de Pascoaes uns aos outros, ansiando ser em espírito levados nas ondulações dos misteriosos versos. A Elegia do Amor, As Sombras, o Marános e o Regresso ao Paraíso eram os poemas preferidos. Fernando Pessoa disse desses versos, sem nomear o autor, que eram extraordinários, mas que uma vez lido um estavam lidos todos e Unamuno numa carta aconselhava Teixeira de Pascoaes a encurtá-los, pois cansavam pela monotonia. Um e outro não eram decerto capazes de passar horas a olhar o mar, a vê-lo onda após onda desfazerem-se na praia, procurando observar a diferença qualitativa de cada rebentação, o tom de verde e azul na espuma branca.

Todavia, eram ambos admiradores de Pascoaes.

Tornou-se famoso o verso «a folha que tombava / era alma que subia» da Elegia do Amor, por ter sido interpretado por Fernando Pessoa como o exemplo supremo do mistério da relação da vida com a morte na unidade dos contrários, unidade que se realiza pela simultaneidade da materialização e da espiritualização, o que sempre acontece, mas que só raramente se reflecte na opaca brutalidade da alma.

O Álvaro Ribeiro fez editar pela Editorial Inquérito com prefácio seu e com o título de A Nova Poesia Portuguesa um pequeno livro reunindo uma série de escritos de Fernando Pessoa n’A Águia onde colhi a ideia (…)[2]

Quando dois ou três anos mais tarde vim a pertencer ao grupo dos dois filósofos portuenses, José Marinho e Álvaro Ribeiro, fomos todos avisados de que Teixeira de Pascoaes vinha a Lisboa falar no Grémio Literário.

Ficámos à porta, à espera da chegada do carro que o trazia. Vinha com uns amigos. Dirigiu-se imediatamente ao Álvaro e ao Marinho, que bem conhecia de se encontrarem na Renascença Portuguesa e, em seguida, foi-nos apertando as mãos um a um fraternalmente. Um de nós deixou-se ficar como estava e disse-lhe: Não o conheço de parte nenhuma. E Pascoaes prontamente: Dê-me sua mão. Todos nos conhecemos do Paraíso.

 

António Telmo

 


[1] Título da responsabilidade do editor.

[2] António Telmo interrompe neste ponto o manuscrito, para o retomar no parágrafo seguinte.

 

VOZ PASSIVA. 34

15-10-2014 10:41

O comentário de Eduardo Aroso à Arte Poética de António Telmo que agora publicamos é parte integrante da Marginália do II Volume das Obras Completas de António Telmo, Gramática Secreta da Língua Portuguesa precedida de Arte Poética, que sairá a lume, no trimestre em curso, com a chancela da editora Zéfiro e o apoio institucional e científico do projecto António Telmo. Vida e Obra. António Cândido Franco assina o prefácio deste novo volume, que foi organizado e anotado por Pedro Martins.

O voo da metáfora (de uma leitura de Arte Poética de António Telmo)

Eduardo Aroso

                                   «Não há progressão sem movimento triádico» Arte Poética

 

No que o título sugere, pode imaginar-se algo que está numa posição fronteiriça, podendo assim ir a um ou a outro lado. Imagens de salto na horizontal e o de um outro na vertical podemos vê-las na poesia do seguinte modo: a de um género superior, ou a que simplesmente se emaranha num jogo de espelhos multiplicado de tal maneira que a sua diluição deixa-nos sem uma saída redentora ou movimento de alma. Assim, no desconforto dessa posição fronteiriça o salto da metáfora pode ser novamente para a terra e para as águas que Heraclito não queria, e então há um tombo como quem escorrega e se vê aflito para sobreviver, sem esperança de ali sair, «formas em que cai o espírito que perdeu o poder», no dizer do filósofo de Estremoz. Há, nos antípodas disto, o salto para o que se poderia dizer o abismo, mesmo sendo ele para cima, salto esse sem qualquer espécie de paraquedas, apenas com asas de Ícaro. Este salto ou voo poético pode ter correspondência no que Telmo chama «filosofia raciocinante, a que não corresponde nenhuma espécie de transmutação interior e que constitui, afinal de contas, uma efémera evasão do mundo da acção». Disto abunda um certo género de poesia actual, tema este que não cabe aqui desenvolver.

Seja como for, a realização do «movimento triádico», apontado por António Telmo, se o considerarmos na poesia, vemos então que o salto é voo, desígnio maior da metáfora, que não se perde no caos do espaço nem se despenha na terra, mas que traz o Sopro de Deus para a carência humana, inquietação provocada pelo roubo do fogo de Prometeo. A metáfora é então aspiração sublime, transposição do ponto original, em que, como no exemplo da semente, permanece todavia sempre algo de essencial, sejam quais forem as metamorfoses e plástica do poema. Tudo isto como num outro exemplo, o das naves espaciais que no seu percurso vão perdendo módulos para poderem alcançar o longínquo ponto desejado, pois importa chegar com o essencial e não com toda a bagagem de início.

 

O que lemos no Propósito de Arte Poética, o «duplo intuito de animar a filosofia e de reintegrar a poesia no pensamento» pode significar também que, para além da ideia que na poesia deve viver, porventura a soberania da metáfora ou o voo em todas as direcções (para o céu e para a terra) é que se torna decisivo para a floração última do poema, esse que não vagueia no caos, mas que traz o Sopro Divino à inquietação humana. Nietzsche tinha essa aguda consciência da possibilidade de uma caída do pensamento ou corte com a natureza superior, mesmo a do lado de fora dos românticos (hoje abusada ilusoriamente na palavra ecologia). Por isso, num equívoco de apenas nomes trocados, a essa metáfora superior o alemão chamou Deus, na sua polémica afirmação da “morte de Deus”, sendo esta a metáfora que cai desamparada de tudo. É nuclear a seguinte passagem de Arte Poética: «o movimento da filosofia deverá consistir, pois, não em fugir para um mundo suprassensível, mas em tomar consciência da imensa força na qual vivemos e somos, - em encontrar o dissolvente universal». Dir-se-ia que do mesmo modo a poesia. O terreno do sensível (e, no caso da poesia, acrescentaria um certo conceito de “poesia social”) é uma espécie de matéria-prima disponível, dada a nossa condição de seres incarnados. Todavia, neste campo tem-se verificado dois modos de agir diversos: há, digamos assim, os mais ou menos materialistas e ateus, não afeitos ao que se pode dizer transcendente, e também os intelectualizados de tal modo que confundem mente com espírito. Uns e outros vivem no equívoco do visível-verdadeiro-real. No poeta superior, que tem asas diferentes das que usou o malogrado Ícaro, a seta sobe até onde pode e inverte o movimento até onde for necessário: «o espírito que desce dentro de si mesmo para se conhecer nas diversas formas que assume», descida que é «um movimento activo». Ou seja, todo este trajecto parte do mundo sensível para a ele regressar, sem que se despenhe no espaço labiríntico sem paraquedas. É a parábola do Filho Pródigo que sabe por que quer viajar e volta com a virtude da experiência.     

 

O automatismo das imagens que é tratado no capítulo «Mnemónicas» pode actuar na metáfora que há nessa poesia que se lança no espaço sem paraquedas, ou na outra que salta e cai, numa densidade plúmbea, trazendo mais peso ao planeta. Acontece quando há transposição de associação de imagens em que o espírito pode estar alheio, condicionado e enredado seja pelas imagens soltas e em jacto das modas várias, seja pela atitude do poeta na admiração e até fascínio por algum congénere seu, ou ainda na auto-ilusão do próprio poeta sobre o que é a representação da sua escrita enquanto acto de comunicação no leitor, ou seja, quando não há a autenticidade condição da singularidade do poeta que, tendo ou não disso consciência, no fundo de si alberga apenas uma forma (estilo) de escrever que é (ou deveria ser) o seu. E convém lembrar que a questão da autenticidade foi tema do contemporâneo de Pessoa, Adolfo Casais Monteiro. O poeta superior - leia-se o que de algum modo tem o fio de Ariadne que não o deixa perder definitivamente no labirinto das imagens – para atravessar todos estes desertos do condicionamento luta ainda numa frente (essa afectando tudo e todos) que é a das tão faladas imagens subliminares, «resistências ao poder do espírito», no dizer de Telmo, à maneira da magia negra, dirigidas nos tempos presentes e manifestamente contra a vontade da pessoa, inculcadas por forças obscuras que se esforçam por ludibriar o fulgor do espírito. Proliferam em todo o lado: na imprensa, nas televisões, nos discursos políticos e até pseudo-religiosos, e ainda nos economicistas e plutocratas.

 

Se tomarmos o que Fernando Pessoa escreveu sobre o movimento serpentino, não se descortina bem que sentido António Telmo queria dar à expressão em epígrafe do movimento triádico. Seja como for, o filósofo, que nasceu na Beira Alta, que andou pelo Brasil e viria a falecer no Alentejo, aponta para a dualidade não resolvida na busca de um terceiro elemento. Contudo, pode haver neste processo não apenas uma questão quantitativa de mais um elemento, mas uma espécie de “destilação” simultânea de tudo ou uma transdisciplinaridade em vez de uma interdisciplinaridade.

Diz Pessoa: «Ella [a serpente] liga os contrários verdadeiros, porque, ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita, ou da esquerda, ou do meio, ella segue um caminho que passa por todos e não é nenhum. Ella parte, como o caminho direito e o esquerdo, do Instincto para Deus, mas não sofre a quebra onde os triângulos se unem; não fôrma angulo comsigo mesma». Seja qual for a análise que se faça, estamos em presença de um processo holístico, que superiormente resolve todos os contrários, todas as dissonâncias e antíteses. Se, como já alguém disse, o primeiro pensamento e acto da Criação foi (é) uma afirmação, o mundo em que vivemos é fértil na negação, sob o piscar de olhos de Satan, porque sabe que o mundo sensível é um mundo de oportunidades pelo esforço, senão… o céu seria um céu de medíocres!

 

Outubro de 2014

 

VOZ PASSIVA. 33

14-10-2014 10:18

Testemunho da sessão de 3 de Outubro último, na Capela do Espírito Santo dos Mareantes, em Sesimbra, onde se procedeu à audição do registo sonoro da conferência télmica de 3 de Março de 1984, este poema de Teresa David evoca a atenção contínua que o filósofo dispensou à figura do ceifeiro na tábua de Nossa Senhora da Misericórdia, de Gregório Lopes, onde  António Telmo entreviu um autoretrato do pintor, figurando-se como um iniciado... 

O Ceifeiro!

Teresa David

 

A

Abrir-Nos o Caminho

para o Céu

O Espírito do Universo

na Terra

na Semente

na Espiga

na Ceifa

de séculos e séculos,

O Poeta-Filósofo

olha para o Segredo,

e, ledo,

Veifa[1]

ingente

a Graça

e

Anuncia

luzente

a Misericórdia!

 

                                                                  Quintinha, 7 de Outubro de 2014

 

 



[1] Forma do verbo veifar, que, entre o arcaísmo e o neologismo, pode ter uma tradução de "tecer" (to weave) do Inglês Antigo, e, até, incluir o significado de criar poemas em público, assim como "to wave". E, mais próximo do latim, ter o significado de "vibrar”.

 

 

VOZ PASSIVA. 32

10-10-2014 11:13

Amar mais a hipótese do que a verdade[1] – Teixeira Rego: filólogo esquecido, filósofo desconhecido[2]

Rui Lopo

I

Talvez venha este número dos cadernos a contribuir para se constatar a importância do tema do discipulado e do magistério na tradição filosófica portuguesa contemporânea em que António Telmo se filiou. Mereceria este tema um longo volume em que se apontassem os sentidos teóricos da relação discipular e da importância do conceito e da experiência da transmissão de uma tradição (ou várias) nesta corrente de pensadores.

É de facto algo que merece amplo e seguro tratamento devendo assinalar-se, por exemplo, o aspecto comunitário de uma filosofia que é entendida como eclodindo em reuniões, mais ou menos abertas, e que criavam um campo ideal de liberdade pensante num contexto institucional pouco propício a inovações pedagógicas ou experiências ensinantes de novo tipo;

Por outro lado, atente-se ao modo como eram estas reuniões presididas por um grande e inspirado orador dotado de grande rasgo raciocinante e fulgor discursivo – José Marinho; e por uma outra figura tutelar que, discreta e subtilmente, orientava os discípulos mediante silêncios e metáforas ou aguardando momentos oportunos onde intercedia de forma pessoal e secreta – Álvaro Ribeiro. Nesta dualidade magistral muito se decidia;

Acrescente-se, em terceiro lugar, que apesar do cariz independente e não oficial deste movimento que viveu como tertúlia mas também como escola, logrou-se realizar uma intervenção cultural pública notória;

Por último, aponte-se que a reflexão de Álvaro Ribeiro sobre o clássico problema do ensino da filosofia, a que se dedica de forma sistemática, é inseparável da sua proposta de reactualização de uma tradição filosófica nacional. Neste como noutros tópicos, a reflexão de Álvaro estava em diálogo com a teorização de José Marinho, que ao mesmo tema dedicará a obra Filosofia, Ensino ou Iniciação? Publicada em 1972, pela Fundação Calouste Gulbenkian, cenário onde Telmo situa um dos seus contos secretos, relembrando não só dados pessoais da vida de ambos como fragmentos de ditos orais de Marinho. A valorização da oralidade é, aliás, outra das características que estatuem a originalidade deste movimento, na sua dupla e mista dimensão de transmissão discipular directa, vertical, e de conversabilidade, horizontal dialogia.

 

No momento em que estes Cadernos se detêm sobre o oportuno tema das confluências, entendido este conceito como designando a convivial relação de ressonância pensante havida entre aqueles que se designaram ou foram designados como mestres, discípulos e condiscípulos, haveria que conceptualizar, questionar e esmiuçar a problematização do que seja este magistério, correlato ou contrapolar daquele discipulato. Ainda que agora não seja o momento de o fazer, concedamo-nos, pelo menos, recuar a Platão e às suas aporias sobre a ensinabilidade da filosofia, aliás, bem meditadas por António Telmo, seguindo a lição de Álvaro Ribeiro, e expressas em diversos, ainda que parcos e crípticos, comentários ao Crátilo, ao Filebo ou ao Ménon. E está por aferir e explanar de forma exaustiva a presença de Platão na tradição da filosofia portuguesa, de Sampaio Bruno a José Marinho e de Leonardo Coimbra a Agostinho da Silva.

O movimento cultural de que Telmo como um elo nos surge afasta-se do sentido habitual do exercício da razão filosófica, na medida em que assume nexos com outras instâncias mentais e por isso se manifesta em disciplinas também outras, conforme Ribeiro nos adverte:

 

A razão, por si só, não é inventiva ou criativa. O mestre é senhor de segredos que só revelará aos iniciandos e aos iniciados. Situado no seu quadro sacerdotal, Pitágoras figura evidentemente como o precursor de Platão, filósofo capaz de ver para além do visível[3].

           

Isto é, se a imaginação e a intuição são valorizadas como faculdades apreensivas, ou de outro modo dotadas de potencialidade gnósica, assumindo que incidem sobre uma realidade intermediária, entre o mundo sensível e o inteligível, será necessário conferir à filosofia âmbito mais amplo que a circunscrição lógico-gnosiológica a que costumeiramente se restringe, auto-reduz ou é constrangida. Neste sentido, a par deste pressuposto, o labor de leitura que caracteriza o exercício exegético, tantas vezes presa de estudos culturais dissolventemente desligados de adequada fundamentação filosófica, é aqui assumido como propiciatório de uma postura hermenêutica aberta ao mistério.

A importância que Álvaro Ribeiro atribuía à reflexão sobre estes temas fica expressa, por exemplo, em carta a Telmo de 30 de Março de 1971[4], onde promete publicar um escrito de ocasião fogoso e piramidal, um protesto contra o mal que se diz na imprensa sobre ensino exotérico e esotérico. Tal escrito surge aí planeado como um opúsculo que, significativamente, se deveria intitular mestrado e magistério.

Com esse preciso título não terá publicado esse trabalho, ao que julgamos saber, mas aferimos o cuidado com que o mestre declarado do discípulo assumido tratou a questão do ensino da filosofia, teorizando-a simultaneamente como uma disciplina cultural: um acervo dado, feito e aprofundável (segundo regras bem explanadas de um trívio e quadrívio redidivos e reinventados), mas também como uma arte a cultuar. Uma arte sempre im-perfeita, isto é, nunca já-dada mas sempre por-fazer e actualizar, arte que nos faz no momento mesmo em que a fazemos, participando de um património tradicional que nos constrói na hora em que a ele acedemos, segundo uma relação dialéctica. Isto é: aparentemente diádica, mas circular; tensional, mas motriz; dinâmica e ininterrupta em ordem a um ascensional movimento perpétuo.

A este propósito não podemos deixar de citar a já referida obra de José Marinho, imaginando-o, a ler em voz alta o seguinte passo a António Telmo:

 

Importa (…) sugerir a relação de pedagogia, paideia e anagogia, com magistério iniciático, educação e ensino.

A primeira via é ascendente, descendente a segunda. Não é fácil, porém, determinar o ajustamento e correspondência dos respectivos estádios. Resulta a dificuldade de a via ascendente ter mais possibilidades de determinação filosófica, sendo mais propriamente uma via de razão, não perturbada pela acidentalidade das relações humanas, objectivos sociais e programas. A pedagogia será o estádio da razão indiferenciada, a paideia, da razão diferenciada, a anagogia, da razão sublimada. Assim se explicaria que as múltiplas formas do saber não cientifico, saber poético, ou mítico-poético, as artes em geral, a mística, a religião nas suas diferentes formas, e ainda em muitos casos as que se consideram vulgares ou supersticiosas, possam ter sentido e valor anagógico ali e onde o saber da razão razoável se detém. Admitimos assim que pode haver mais fecundo saber anagógico na mãe que ensina o seu filho, do que em tantas formas de filosofia estritamente lógica ou lógico-empírica[5].

 

 

II

No sentido do que vimos dizendo, ouçamos o próprio António Telmo, no epílogo do seu trabalho dedicado às tradições heterodoxas da filosofia portuguesa, e vejamos o modo como tudo o que até aqui foi dito se concretiza:

 

Álvaro Ribeiro deu Sampaio Bruno como o fundador do movimento e acabou por revelar que a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde foi discípulo de Leonardo Coimbra, Teixeira Rego e Aarão de Lacerda, constituiu “o exemplo de como uma sociedade secreta pode funcionar aberta ao público”. Não se deve falar de “filosofia portuguesa” sem ter absolutamente em conta o conceito que dela formou o seu criador. Álvaro Ribeiro foi o nosso último filósofo; depois dele, a filosofia que criou tornou-se uma “coisa pública”, sujeita às vicissitudes sociais. Tudo depende agora de Hermes. José Marinho nos últimos meses de vida, costumava dizer: “Tudo já foi pensado; agora só precisamos de hermeneutas.”[6]

 

O texto que foi citado conclui uma longa apresentação de uma figura de seis vértices que correspondem a Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, José Régio, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Teixeira de Pascoaes em cujo centro se encontrariam Sampaio Bruno e Guierra Junqueiro. O que aqui chamamos a atenção é que Teixeira Rego não consta como um dos vértices desta ogdoada que figura os oito medianeiros da humanidade portuguesa, peninsular, euro-africana com o sobrenatural[7].

Este mestre de Agostinho da Silva (que chega a afirmar ser dele mais próximo que de Leonardo), de Álvaro Ribeiro e José Marinho, mereceu de António Telmo leitura atenta e olhar decifrante, explicitada em dois momentos bem marcados. Vejamos. Em 1955, publica António Telmo um longo e denso artigo[8], cujas últimas e conclusivas palavras qualificam o autor de Nova Teoria do Sacrifício de filólogo esquecido e filósofo desconhecido que urgiria memorar e compreender. A sua teoria explicita que a origem do estado humano actual radicaria na experiência traumática da mudança de alimentação, do regime frugívoro para o carnívoro, a qual seria rememorada por lendas e mitos de todo o mundo que fazem corresponder à ingestão de um alimento a queda de uma condição humanal anterior e superior decaída naquele conjunto de caracteres que definem a humanidade actual.

No seu artigo, Telmo prefere apontar para a existência de uma teorização (ainda que apenas implicitamente formulada) da renascença na obra de Teixeira Rego, que funcionaria como contraponto especulativo das tomadas de posição poético-doutrinárias de Pessoa e Pascoaes. Apesar do seu trabalho ser eminentemente erudito e de escopo etnográfico, a sua concepção seria tanto mais importante por, parecendo centrar-se no problema do mal, da sua origem e fim, afinal visar o renascimento do homem, ou a recuperação de capacidades julgadas perdidas. Telmo faria assim justiça à afirmação do autor que via na sua Nova Teoria apenas uma base preparatória de um futuro sistema filosófico. Telmo procura então defender o autor das simplificações que o qualificavam como um positivista, rigorosamente o qualificando de materialista, mas apenas na medida em que, preocupado em descobrir os segredos da matéria visava alcançá-la no grau em que já não aparece como sinal negativo de Deus; é neste sentido que se compreende a sua oposição à metafísica tradicional, não sendo todavia possível qualificá-lo como ateu, não só por Rego se auto-definir como agnóstico, mas por afirmar a origem metapsíquica das religiões, firmadas em experiências já não (imediatamente) acessíveis ao homem actual.

Raciocinando por analogia, e vendo a geração da Águia, de algum modo como o renascimento da geração de 70, Álvaro Ribeiro compara Leonardo Coimbra a Antero de Quental e Teixeira Rego a Teófilo Braga:

 

De Leonardo Coimbra se poderia dizer o que foi dito de Antero de Quental, a saber que a acção comunicativa da sua palavra filosófica parecia ter o condão de abrir a inteligência de quantos o ouviam, como se também fossem como o poeta homens superiores. Mas se o grupo dos colaboradores de A Águia tinha o seu Antero de Quental, também era dotado do seu Teófilo Braga, pois seja dito que a erudição séria, exacta e ampla do professor Teixeira Rego fazia o contraponto grave, terrestre e humano de todas as investigações tendentes para uma conclusão angélica ou divina.

Leonardo Coimbra acusava Teixeira Rego de “amar mais a hipótese do que a verdade”. Em suas lições de filologia portuguesa, o autor de Estudos e Controvérsias fazia nítida distinção entre as leis fonéticas e as leis gramaticais, ou gráficas, na intenção de explicar o fenómeno literário ou poético. Aludia depois às regras elementares da cabala, compendiadas nos capítulos de nomes singulares como Guematria, Notaria e Themuria.

O ilustre professor acreditava no sopro benéfico ou maléfico que da ordem sobrenatural desce à ordem natural, e admitia a inspiração na origem das obras dos génios. Deste modo aventava hipóteses temerárias sobre os relatos da Bíblia, que, no seu dizer autorizado de hebraísta e helenista, provinham de permutações das letras e das sílabas[9].

 

Álvaro Ribeiro acabou de nos informar que, apesar de se estatuir como elemento contrapolar de Leonardo Coimbra (apresentado como metafísico cujas investigações tendiam para conclusões divinas) assim preparando os discípulos de ambos para a alta compreensão do que sejam opostos especulativos, foi Teixeira Rego quem os iniciou nas regras da cabala. Além disso, apesar do seu pendor grave, terrestre e humano, o seu interesse era todo para os temas da tradição mito-poética universal, assumindo a tradução e a interpretação como modos por excelência de humanização do homem, e crendo na intervenção de elementos superiores na evolução histórica, de ordem ainda incompreendida.

Álvaro Ribeiro continua sua recordação dos tempos em que assistia às conversas entre os dois sábios, confessando a sua juvenil perplexidade não só quanto à diversidade das suas opiniões, mas também perante as aparentes contradições em que por vezes pareciam incorrer:

 

Causava-me surpresa, espanto e até indignação observar que cada um daqueles intelectuais, tão coerentes no pensamento artístico e político que haviam exposto nos seus livros, formulassem por vezes paralogismos, paradoxos e opiniões aberrantes só para terem ocasião de elevar o “verbo escuro” a uma luz que o tornasse fogoso e brilhante. As contradições licenciosas cruzavam-se no ar com os mais estranhos absurdos.

 

É notável que tanto Agostinho da Silva como José Marinho admitam a importância do influxo de Teixeira Rego na formulação dos seus pensamentos próprios. E sublinham que tal influxo confluiu com outros para se manifestar. O seu alto contributo é ainda maior quando visto no quadro contextual que o ampara e confere sentido. Álvaro Ribeiro atribui a Teixeira Rego o alto mérito formativo de o levar a adiar o juízo e a suspender conclusões: a partir daí seria necessário não recuar ante paralogismos, não excluir aparentes contradições nem fugir de paradoxos ou filosofias extravagantes. Algum sentido figurado ali deveria estar insinuado e importaria desocultá-lo e decifrá-lo. Foi a partir desta escola de contrapontos que pôde progredir da matemática para a poesia, segundo a injunção leonardina.

É denso e rico o longo trecho memorial que acabámos de citar, mas talvez ele nos ajude a compreender o tom algo áspero de Telmo em artigo que, sendo dedicado à Obra de Pinharanda Gomes, muito se debruça sobre Teixeira Rego, por se centrar no importante estudo que aquele lhe dedicou:

 

Não se vê pela leitura do livro de Pinharanda Gomes sobre Teixeira Rego se o biógrafo aceita ou não a doutrina do biografado sobre as origens da humanidade. Deve, porém, tê-lo seduzido pelo que nela se envolve da doutrina de Moisés no Génesis. Teixeira Rego situa o antropóide, que descreve coberto de pêlos, feliz entre os outros animais e fruindo dos frutos, no centro do Paraíso. A descrição do homem primitivo não condiz, como se vê, com a de um homem feito à imagem e semelhança de Deus. Uma trapalhada, em que se enreda o seu pensamento e o do seu biógrafo.

Pior do que isto é quando vem dizer-nos que o antropóide perdeu o estado paradisíaco em que vivia por ter cometido um crime horrível, o de ter morto um animal e comido a sua carne. A palavra que, no Génesis, as traduções dizem designar a maçã significa de facto carne. Em consequência deste acto, caem-lhe os pêlos, transforma-se num homem mais à nossa imagem e semelhança e, de frugívoro que era, passa a carnívoro.

O desejo de se querer conciliar o ensino bíblico com o ensino científico, neste caso com o evolucionismo materialista, leva forçosamente a estes disparates[10]

 

Parecendo ironizar com a posição de Teixeira Rego, na verdade Telmo reitera aqui certos pontos capitais do seu próprio pensamento, deixando no entanto ao leitor o trabalho de o esclarecer e explicitar totalmente. Telmo parece ter-se servido deste pretexto para alertar para os perigos da confusão entre planos de realidade e níveis de significação (do histórico ao alegórico; do erudito, exegeticamente explanado, ao sapiencial só de forma a-racional vislumbrável) e para a necessidade de, tratando de certos autores, manter cautelas interpretativas redobradas, evitando literalismos e precipitações. Recordemos as já citadas Notas sobre Teixeira Rego em que fortemente se valorizava a teoria filosófica do renascimento ainda que ela estivesse apenas implicitamente presente no seu estudo sobre o mito da queda e do pecado original. E o mesmo tema é aqui aflorado, agora em clave interrogativa:

Só há religião por ser necessário re-ligar algo que se cindiu. Mas, no passar do antropóide ao selvagem e do selvagem ao homem, cindiu-se alguma coisa do divino? A Religião é uma Renascença, um nascer de novo em quê? No antropóide?[11]

 

Mais que uma mudança de perspectiva sobre Teixeira Rego, quase cinquenta anos depois de sobre ele ter escrito o incisivo ensaio a que aludimos, preferimos sublinhar a constância temática da obra de Telmo, pautada pelo prolongado olhar para uma mesma estrela, deixando sinais aos vindouros, e nunca deixando de lembrar os mestres ou, melhor ainda, o que deles foi ficando para que possamos nós agora enfrentar a noite do mundo e prosseguir a demanda. Numa entrevista intitulada “Pensar o Irracional”[12], pedindo-lhe que comentasse uma sua expressão literária de um desejo de renascer, Telmo relembra que

na tradição esotérica do Cristianismo, e não só do Cristianismo, o que conta é a doutrina de que nós somos seres decaídos, em virtude de um mistério tremendo que não se sabe o que seja, a que chamam o pecado original e que eu penso terá sido o aparecimento da antropofagia. Mas isso é apenas uma conjectura. E então nós nascemos para esta vida, mas é como se morrêssemos (…).

Quando, perante qualquer fenómeno, acontecimento, pessoa ou estado de alma, sentimos que está ali qualquer coisa enigmática, que nós não sabemos o que é, e que temos a sensação desse enigma, então isso para mim é que é o saber, o saber autêntico, ou o princípio do saber, que é o que ensinam Platão e Aristóteles. (…) É o que eu digo… não sei como, começo a saber qualquer coisa disso. Mas isso é intransmissível, não é? 

 


[1] Expressão de Álvaro Ribeiro, recordando um dito de Leonardo Coimbra sobre Teixeira Rego, adiante reproduzido no seu contexto.

[2] Expressão de António Telmo sobre Teixeira Rego, adiante retomada.

[3] Álvaro Ribeiro, Memórias de um Letrado, Lisboa, Guimarães editores, 1977, volume 1, pp. 34-35.

[4] Recentemente divulgada por estes mesmos Cadernos no volume Interiores, pp. 133-134.

[5] José Marinho, Filosofia / Ensino ou Iniciação?, Lisboa, Instituto Gulbenkian de Ciência - Centro de Investigação Pedagógica, FCG, 1972, página 103, nota 3.

[6] António Telmo, Filosofia e Kabbalah, Lisboa, Guimarães Editores, 1989, pp. 97-98.

[7] Filosofia e Kabbalah, p. 84

[8] “Notas sobre Teixeira Rego” in Diário de Noticias, ano 91º, nº32185, Lisboa, 29 setembro de 1955, pp. 7 e 6.

[9] Álvaro Ribeiro, Memórias de um Letrado, Lisboa, Guimarães editores, 1977, volume 1, pp. 55-57.

[10] Referimo-nos ao artigo de António Telmo “Pinharanda Gomes – O Filósofo Autodidacta” (incluído em O Pensamento e a Obra de Pinharanda Gomes, Lisboa, Fundação Lusíada, 2004, pp. 193-200). Grande parte do artigo centra-se no facto de P. Gomes ser autor do importante volume: A Renascença Portuguesa: Teixeira Rego, Lisboa, ICLP, 1984. 

[11] Op. cit. p. 195.

[12] Entrevista concedida a Américo Rodrigues em Praça Velha, nº 16, Guarda, 2004, reproduzida no volume destes Cadernos dedicado a António Telmo pp. 12-22. V. esp. p.13.

 

<< 43 | 44 | 45 | 46 | 47 >>